quarta-feira, fevereiro 14, 2024

Rádio fora do tempo

O jornal Intransmissível, reencarnação em formato semanário do jornal "i"  publicou esta semana uma reportagem alargada sobre o rádio em Portugal e um dos artigos, assinado por Sara Porto, foi dedicado aos "programas históricos", uma dezena deles, ao longo das décadas. 

A jornalista que não deverá ter ouvido nenhum desses programas, entreteu-se a fazer o jornalismo que lhe ensinaram: foi ouvir e ler relatos alheios sobre tais programas que nunca ouviu, consultou alguns livros ou a internet e escreveu o artigo que lhe pediram. Assim:







Como sou do tempo da maior parte dos programas elencados ( só dois deles- Companheiros da Alegria e Em Órbita, primeira fase de 1965 a 1969- não escutei no tempo próprio) vou dar o meu contributo para o óbulo com vários buracos factuais no artigo em causa. 

O primeiro programa citado, Pão com manteiga,  começou em 1980, da autoria principal de Carlos Cruz que aliás fala de tal programa no artigo ( embora em termos muito semelhantes aos que se podem ver aqui) e acompanhado de colaboradores como Bernardo Brito e Cunha ( o arranjador das músicas) e José Duarte, o dos 5 minutos de jazz e Mário Zambujal, do livrinho da Crónica dos Bons Malandros
Comecei por embirrar com o título que associava comida gordurosa a um programa de rádio. Segundo Carlos Cruz, citado no artigo, diz que como o programa era ao domingo de manhã, queriam associar o mesmo ao pequeno-almoço. Sendo assim, teria sido preferível  o nome de "pão tostado", já sem a dita e com uma eufonia bem mais catita.
Enfim, o teor do programa, demasiado idiossincrático para o meu gosto, como aqui se pode ouvir, nem sequer se aproveitava pela música, mesmo em Fm, com predomínio jazz-rock e fusão, julgando, salvo o erro que o indicativo era de Herbie Hancock, no primeiro tema, Chameleon, do disco Headhunters, de 1973, uma pequena estopada funk de baixo sintetizado por meios electrónicos e relativa novidade há 50 anos. 
O programa teve algum sucesso, com livrinhos editados com as tais temáticas idiossincráticas e mesmo com uma revistinha avulsa cujo interesse principal residia na profusão de ilustrações de vários desenhadores nacionais, já de renome, alguns deles, como Vasco ou António e Carlos Zíngaro, o Vaughn Bodé nacional, autor do desenho da capa do primeiro lp da Banda do Casaco, em finais de 1974, Dos benefícios de um vendido no reino dos bonifácios


O programa Quando o telefone toca, um clássico desses tempos gloriosos do rádio em Onda média, era programa a evitar e só escutado em audição forçada em ambiente alheio. A exposição do gosto popular dos pedintes de discos avulsos era demasiado pindérica para se ouvir regaladamente. 

O Rock em Stock, de finais dos anos setenta já pouco me interessava, mesmo com os "berros" do apresentador, pois a música popular dos anos oitenta, deixava-me muito a desejar relativamente à década anterior que ainda nem tinha ouvido na sua plenitude de discos perdidos num tempo em que não havia acesso aos mesmos e então passou a ser mais facilitado com o advento do cd.
Falhou no artigo a menção aos programas de rádio de um António Sérgio, esse sim, mais conhecedor da nata anglo-saxónica e menos da manteiga apresentada no tal Rock em Stock.

O programa que me traz a este comentário, porém, é o Página Um, cuja descrição é de tal modo pobre em referências que quem o não ouviu fica sem saber como era. 
Como o artigo do jornal começa a mencionar o cantor José Mário Branco, no caso do Página um quem ler o excerto fica a pensar que era um programa essencialmente de música portuguesa dos cantores progressistas da época, com alguns estrangeiros para compor o ramalhete. 
Aliás a fonte de informação privilegiada para a descrição é um sítio na net, denominado, Hypotheses, uma loca infecta de referências sociológicas sem eira nem beira, a não ser a esquerdista, da estirpe ISCTE e com factos errados. 
Assim, como "fait-diver"(sic) o programa não terminou exactamente em Fevereiro de 1975 como se escreve na loca infecta, porque se estendeu até ao início do Verão desse ano. O que sucedeu em Fevereiro de 1975 foi uma interrupção, por um par de meses,  por causa das greves da época que preparavam o PREC. 
O Página Um era um programa-farol ( "carro-chefe") muito devido a um conjunto de circunstâncias que se explicam melhor que no artigo em causa, desde modo:

Em primeiro lugar com uma citação de um dos seus locutores da época prè e pós 25 de Abril de 1974, Luís Filipe Paixão Martins, no seu livrinho "Tinha tudo para correr mal". 




 
Ou então para ainda melhor informação, uma passagem do livrinho  Biografia do ié-ié, de 2014, de Luís Pinheiro de Almeida, também citado no artigo,:



Ou então para completa informação acerca do conteúdo do programa, que ia muito para além da música baladeira, progressista e revolucionária nacional ou estrangeira, esta lista de músicas passadas nos últimos programas de Maio e Junho de 1975 e que mostram a predominância da música anglo-saxónica dos discos estrangeiros, alguns deles trazidos da Inglaterra por correspondentes do programa e que antecipavam em largos meses a divulgação por cá, em lp´s nacionais ou importados. O apontamento é dos dias do programa...


De resto, o enviesamento do artigo mostra-se bem no destaque dado ao despedimento de Adelino Gomes, ainda antes do 25 de Abril de 1974, por razões políticas ( o locutor aproveitava o microfone para divulgar mensagens ideologicamente comprometidas e de esquerda comprometida com o comunismo...)  mas não referir nada sobre o despedimento igualmente abusivo, segundo tal lógica, daquele Luís Filipe Paixão Martins, nas circunstâncias que o mesmo conta e ocorridas já em 1975: "despedido de braço no ar em plenário". De trabalhadores, entenda-se...e sem qualquer motivo, sequer ideológico.
É o que faz fiar-se em sítios aparentados ao ISCTE. 
O rádio e os programas elencados foram muito mais do que a descrição permite vislumbrar à distância de décadas e só ouvindo se poderia aquilatar sobre tal facto. 
Infelizmente, sobre tais programas há muitíssimo pouca informação disponível, seja por escrito em papel, seja na Net. 
Parece que quem os protagonizou os esqueceu ou nem quer lembrar e por isso as memórias por vezes são...inventadas. 

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