quinta-feira, agosto 19, 2021

Os filhos de algo nas universidades portuguesas

Sábado de hoje, com reportagem profusamente ilustrada com fotos que dispensam palavras a mais. Ainda assim o que mostram é o fenómeno endogâmico ( do grego endón+gámos, `dentro´ e `casamento´, respectivamente) que ocorre nas universidades portuguesas, particularmente naquelas onde o Direito é rei e as leis se formam a partir dos tratados dos mestres. 

O que a reportagem mostra, afinal, é a pinderiquice nacional, vistas bem as coisas e espelha a profunda reversão de princípios e  valores que deveriam ser cardeais em tais locais de produção e transmissão de saber. 

O fenómeno não pode explicar-se por efeito de mera coincidência, mas terá explicação lógica, se mais não fosse. Afinal é recente, tem alguns anos, poucas décadas e reflecte o nosso atraso económico e social, derivado do que sucedeu nos últimos 40 anos.

Mais: se tal ocorresse no tempo em que os pais destes rebentos todos foram escolhidos para leccionar nas mesmas casas que os ascendentes, isto não teria acontecido. Explica-se: antes e imediatamente a seguir a 1974, as faculdades de Direito escolhiam professores de carreira, atendendo a um mérito prè-definido por regras conhecidas. 

Lembro-me de em 1975 haver na FDUC vários assistentes que tinham sido aparentemente escolhidos sem terem nome conhecido na genealogia paternal nas academias. Cito de cor: Fernando Nogueira, Calvão da Silva, Alves Correia, Nogueira Serens, Anabela Rodrigues, Coutinho de Almeida, etc.etc. etc. 

Foi tudo gente que vindo da modéstia e pobreza da terra estudou, teve mérito intelectual e concorreu. Eventualmente começou em 1974 outro fenómeno anterior ao citado, endogâmico, mas aparentado: em vez de família genética, as escolhas também se começaram a fazer pela família política e amigos adjacentes. Os partidos principais como o PSD, o PS e o PCP, no caso de Coimbra, instalaram os seus feudos e escolheram os seus amigos qualificados para os lugares  pretendidos por muitos mas vagos para poucos. As cunhas e tráficos de influência nestes meios foram sempre tradição e nunca deixaram de o ser. Coloco em dúvida é a integridade moral de quem sabe ter alcançado o posto profissional desse modo e depois durante a vida que valores adotou, mas enfim nem quero entrar por aí que me parece ser uma completa desgraça e portanto um terreno demasiado escorregadio, moralmente. 

Assim, a questão genérica acabou por  colocar-se. Por exemplo e em concreto, sem maldade mas apenas por isso mesmo, como mero exemplo do que pretendo dizer:  um Alves Correia, mero assistente de direito administrativo em 1975, (de um professor Queiró vindo do fassismo) , de origem pobre e humilde, tal como Fernando Nogueira e quase todos os demais, quando teve filhos em idade escolar o que quereria como destino para os mesmos? O melhor, tal como todos os pais. 

Um dos filhos estudou, foi bom aluno, estava por dentro do sistema da FDCU porque o pai entretanto ascendeu na cátedra, uma vez que  também estudou, doutorou-se e foi por aí fora, com ajuda do meio ambiente ( e do PS eventualmente) e de amplos pareceres remunerados a preceito.  O filho tornou-se candidato a professor universitário, quando terminou o curso porque certamente procurou sempre ter as melhores notas e tê-las-á obtido. Mas...quantos outros não tiveram também? E porque é que o filho de Alves Correia ficou na universidade e outros foram para outros destinos, mesmo que quisessem ter o que aquele obteve? É a resposta a esta pergunta que explicará o fenómeno. 

Por mim, especulo apenas e novamente sem maldade intrínseca e só por exemplo flagrante: porque o filho de Alves Correia, sendo capaz e com mérito,  tinha também a vantagem competitiva que porventura noutros tempos não teria, por causa de outros valores e princípios. Os actuais permitem esconder a motivação real das escolhas efectuadas através de formalismos cumpridos e inquestionáveis. No entanto, a verdade pode ser outra e a coincidência e profusão de casos similares, tal como a revista Sábado de hoje mostra, permite a especulação, a dúvida e a tristeza de se poder pensar que chegamos a este ponto, em Portugal: a endogamia resulta mais uma vez da nossa pobreza, tal como os pais daqueles foram conduzidos a integrar um sistema de ensino como saída profissional que de outro modo nunca teriam. Ou seja e em resumo: o Alves Correia pai porventura nunca chegaria onde chegou se tivesse nascido no tempo do filho...e isso parece-me claro, porque se os valores de então fossem os de agora, os que lá estavam na FDUC teriam aberto caminho fácil para os seus filhos e ipso facto impedido outros de fora de se candidatarem sequer aos lugares. 

Por outro lado porque razão se tornam tão apetecíveis tais lugares para os filhos dos professores que já lá estão?

Por mim vejo algumas razões: em princípio um recém-licenciado ou doutorado que seja, não tem emprego garantido em muitos lugares de empresas ou instituições privadas e a ganhar bem. E todos querem ganhar bem, muito acima dos milénios que andam por aí em empregos precários por causa deste sistema instituído com estas regras de facto e de direito. O Estado paga relativamente bem, comparando com o que sucedia há 40 anos. Portanto, a opção é lógica para quem não tem espírito de iniciativa, mesmo sendo muito inteligente: arranjar um lugar seguro e com rendimento suficiente. A segurança é coisa que as mães gostam muito... e depois de terem entrado no sistema a ascensão garante-se por outras vias. Actualmente por via dos partidos e amizades correlativas ( daí o tráfico continuado de influências, na raia do crime de colarinho branco, mas nem sequer entendido como tal , por esta gente) e por isso a maior parte destas pessoas está umbilicalmente ligada a partidos políticos e acham-se no pleno direito a terem direito a estas benesses. Todos os que citei estão e estiveram desde sempre relacionados com partidos políticos, mormente o PSD e o PS e também o PCP e desafio a comparar com o que era antigamente. Os filhos sabem o caminho...e por isso vemos actualmente em lugares de destaque, em diversas instituições da Administração Pública nacional, entidades reguladoras e afins, pessoas que são filhos de algo, e que ganham muito mais que os pais ganhavam quando começaram a vida profissional. O Estado que está assegurou tais privilégios porque o Estado que está também é composto pelos indivíduos em causa. E quem parte e reparte e não fica com a melhor parte...

É esta a perversão do sistema que está instituído e parece-me que quem lá está nem sequer quer ver tal coisa. O que é triste. Muito triste porque acaba por degradar a universidade e transformá-la noutra coisa que de universidade só o nome terá. Cooperativa, será? 








Compare-se tudo isto com a noção de "professor" que Marcello Caetano deu no escrito reproduzido em postal anterior e tirem-se as conclusões. 

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