sexta-feira, outubro 29, 2021

O SNS na urgência do S. João

 Entrevista no Inevitável de hoje ao "responsável pela unidade de gestão da Urgência e Medicina Intensiva do Hospital de São João, no Porto". 

Não conheço o indivíduo que é médico há duas dúzias de anos e continua a "fazer" 500 horas de trabalho suplementar para complementar o ordenado, em exclusividade. Com tanta hora extra e serviço  médico de duas dúzias de anos, tem o dever de saber o que se passa no SNS e particularmente no serviço de urgência que dirige. Mal, muito mal, a meu ver e explicarei porquê a seguir.

De acordo com uma experiência particular de que tive conhecimento, nesse serviço de urgência, há uns meses, poderão extrair-se ilações a propósito da competência profissional deste médico dirigente de um serviço, a contrastar com este tipo de afirmações que sacodem água do capote habitual, para cima de um "sistema" que pelos vistos o indivíduo não domina e apenas entrevê.  Procurarei fundamentar as razões para que se não diga que as críticas são gratuitas e infundadas.






Este médico "responsável pela unidade de urgência" entende que os sistemas de urgência funcionam mal porque se permite que as pessoas lá vão, por dá cá aquela palha de queixas anódinas. E também porque a maioria esmagadora dos médicos que prestam serviço de urgência são "tarefeiros" e sem especialidade que o mesmo julga ser necessária e até encontra uma explicação: interesses corporativos de médicos "internistas". Na primeira página da entrevista, são estas as razões essenciais que topa para o mau funcionamento das urgências, mormente no hospital central em que trabalha. Só estas razões deveriam ser mais que suficientes para se demitir ou nem sequer ter aceite o cargo, pois denotam uma má vontade contra o sistema que não controla e que não aceita como funcional. E tal com reflexos na mentalidade de gestão, obviamente, pois quem não gosta do sítio onde está e não consegue fazer melhor, não está lá a fazer nada de jeito. Antes pelo contrário.  

Na segunda página lá vem a comparação parola com a "Europa" e a insistência que o serviço de urgência deveria ser apenas para urgências verdadeiras, como acontece "lá fora", no "Norte da Europa". Até dá um exemplo da sua particular noção de urgência: na Suécia um braço partido não é situação de urgência! 

 Só esta menção é uma confissão de incompetência atroz, porque denota uma ridícula ausência de posicionamento geográfico e cultural.  Os portugueses não são do norte da Europa, são do Sul, mediterrânico, sempre o foram e nunca irão mudar! E isso é condição sine qua non para alguém entender um problema e o poder resolver. Querer à viva força que os portugueses tenham a cultura, rotinas, ambiente e hábitos dos povos estrangeiros é parolice pura. A comparação entre o Sheraton e o Ibis denota algo que não compreende e a médica citada identificou muito bem: as pessoas vão às urgências dos hospitais, em vez de ir a outros sítios porque podem e noutros sítios não são atendidos nem sequer o podem ser devidamente. O problema, para o "responsável" é dos "governos", das "autoridades". E portanto fora do seu âmbito de responsabilidade. O que está a fazer no cargo?!

Na terceira página continua a catilinária contra os "utentes" que o vão incomodar nas urgências e o problema do "covid" que afinal serviu de desculpa a muita coisa. Na página seguinte continua a sacudir a água do capote acusando a ausência de planificação central dos "governos" do sector. E até considera que "isto não é um problema de número de profissionais, mas de organização", como se soubesse resolver o problema! E é alguém que já foi "responsável pelo apoio de emergência médica ao Euro", em 2004, altura em que tomou conhecimento acerca do sistema de urgências da Suécia, pelos vistos. 

 Na última página faz profissão de fé no SNS apesar de o ter denegado nas páginas anteriores, batendo palmas a si próprio pela performance na "pandemia". Enfim. Conclui que "não tem nenhuma visão messiânica sobre como alterar o sistema, mas qualquer mudança teria de ser muito sustentada e reflectida". Claro, como se mostra nas páginas anteriores...

Agora um caso concreto em que este médico responsável pela urgência concreta do São João deveria ter reflectido em vez de alvitrar putativas visões não messiânicas sobre o sistema. 

Há uns meses atrás um casal do Norte, vindo do Algarve, necessitou de ir ao serviço de urgência da responsabilidade directa deste médico. O caso que afligia a mulher era aparentemente grave na medida em que a prostrou durante os dias anteriores e durante toda a viagem, com dores lancinantes, não lhe permitindo andar e obrigando-a a fazer a viagem deitada, no banco de trás do carro particular. 

Ao chegar ao serviço de urgência da responsabilidade deste médico,  a meio de uma tarde, deparou-se que não estava quase ninguém, nem sequer o habitual corropio de ambulâncias, típico de um serviço que segundo aquele médico atende "100, 150, 200" doentes por dia". Deveria por isso mesmo ser um dia atípico, no bom sentido e susceptível de permitir um melhor atendimento aos doentes. 

Ao chegar à porta da urgência, um qualquer doente ou acompanhante do mesmo, depara imediatamente com os "seguranças", ou seja, os elementos de uma empresa privada, aos pares que fazem de facto a "triagem" inicial. Como é sabido, estas pessoas de empresas de segurança privadas são geralmente carentes do mais básico dos sentidos de simpatia, afabilidade, cuidado e atenção e empatia, porque são recrutadas por empresas específicas para quem tais qualidades são absolutamente dispensáveis e porventura indesejáveis. Por esse motivo é vulgar encontrar nas suas fileiras ex-cadastrados já com ficha limpa como dizem os brasileiros. Conheço casos singulares e que deveriam fazer reflectir estes responsáveis pelos serviços de urgência e outros lugares. 

Pois bem! São estas pessoas e este género de gente que o responsável pelo serviço de urgência no hospital de São João tem a cargo para atender em primeira mão os "utentes" e pelos vistos tal não lhe provoca o mínimo reparo ou cuidado. Se lhe perguntarem qual a razão, dirá certamente que não são escolhas da sua responsabilidade, mas da administração. 

Porém é da sua inteira responsabilidade saber ou procurar informar-se como é que estas pessoas actuam em concreto e quantos casos de mau atendimento ou de queixas não apresentadas pelos utentes que farão parte dos tais  "100, 150, 200" doentes por dia". Muitos, certamente. E muitos mais que partem sem deixar registo de queixas porque "não vale a pena". E parece mesmo não valer. 

No caso particular do casal, cujo relato fidedigno me merece confiança, foi pedido a um desses "seguranças", infelizmente o que aparentava o ar de burgesso mais aperfeiçoado,  perante a prostração da mulher, no banco de trás do carro, aliás estacionado junto à porta de urgência, porque havia espaço e ocasião para tal, que "por favor" disponibilizasse uma maca para transportar a doente que não podia deslocar-se a pé por sentir muitas dores e lhe ser muito difícil tal deslocação. Resposta do "segurança": arranja-se uma cadeira de rodas! "Obrigado, mas a cadeira de rodas não serve para o caso, porque a dificuldade é em estar de pé ou sentada. Era mesmo precisa a maca". Na ausência de resposta, para além do evasivo "vou ver", passaram alguns minutos até que surgiu o mesmo dito cujo à porta, tendo-lhe sido então perguntado pela maca. "Ah! A maca! Estou a tratar disso, mas arranja-se uma cadeira de rodas...". "Não é a cadeira de rodas, mas a maca".  E depois de mais de cinco longos minutos de espera: " tem que ir fazer a inscrição primeiro e depois é que se pode ver se precisa da maca...". Pois, perante a indiferença do indivíduo, alheado totalmente do problema do "utente" a não ser para informar que era preciso fazer a "inscrição", lá foi o homem fazer a "inscrição". Como não estava ninguém na bicha dirigiu-se directamente ao guichet onde um funcionário com ar e cara de reforma lhe disse imediatamente: "já tirou a senha?" E perante a circunspecção do interessado, já aflito com as dores da mulher, deitada no carro e com a inoperância dos "responsáveis" pela "segurança", perguntou onde se tirava a senha, tendo obtido o gesto vago indicador de um sítio para ali, por trás de qualquer esquina visível. Lá tirou a senha e só depois é que recebido o papelinho o funcionário enfastiado e com ar de reformado, designou um número, não sem antes ter desatendido novo pedido de uma maca, porque tal incumbência não era dele, reformado com ar de funcionário, mas da "triagem". Nisto passou um bom quarto de hora. 

Perante a impossibilidade de se conseguir uma maca dos serviços da responsabilidade directa daquele médico dirigente da urgência, e o desespero de quem sofre, a mulher lá teve que sair ajudada pelo homem, com sofrimento visível e desesperado numa caminhada de algumas dezenas de metros, com a passividade e indiferença dos "seguranças" a ver o espectáculo, enquanto a mulher se contorcia de dores e sentava numa cadeira à espera da chamada, pelo sistema sonoro.

Felizmente e uma vez que não havia mais ninguém "à frente" ( devia ser um dia simpático para a urgência, talvez um daqueles com 100 doentes em vez dos 150 ou 200) lá foi chamada a mulher para a "triagem" quase a seguir, sempre com dores irreprimíveis,  insuportáveis e visíveis na expressão.  Dirigiu-se então para um sítio, distante alguns metros,  onde se encontravam alguns indivíduos não identificados, atrás de um écran de computador e o que atendeu, estava literalmente refastelado, mais propriamente esparramado ( segundo se apurou)  na cadeira, perguntando logo o que tinha a "utente". O homem acompanhante, perante a dificuldade da mulher em falar sequer,  lá tentou explicar que vinham do Algarve e nos dias anteriores já tinham ido às urgências de Albufeira e Faro e tinha diagnosticado uma inflamação no ombro, possivelmente uma luxação ( sério!, na urgência de Albufeira foi esse o diagnóstico) e talvez uma  "possível tendinite" e até tinha os registos dessas urgências, mostrando-os.  Como entretanto a mulher pedia para se deitar numa maca e tal ainda não lhe fora disponibilizado, o homem insistiu com o funcionário não identificado, com toda a evidência o responsável pela "triagem", para arranjar uma maca, antes de proceder a registos, devido às dores evidentes. Debalde! O mesmo funcionário, desinteressou-se e recusou depois que lhe fossem mostrados os registos dos "episódios de urgência" recolhidos naqueles hospitais, apesar de conterem toda a informação necessária para a aludida "triagem". 

Perante a impaciência do homem e a indignação por tamanha insensibilidade e incompetência, vinda logo da porta de entrada no serviço de urgência de que aquele médico é responsável, continuada na triagem, o mesmo disse que o serviço era de terceiro-mundo e que afinal se a mulher se tivesse deitado no chão teria sido bem melhor. O que o homem foi dizer! " Senhor Segurança! Ponha este senhor daqui para fora que está a perturbar o serviço!",  foi o resultado a impertinência. E o homem lá foi escoltado pelos dois seguranças da porta de entrada, enquanto lá ao fundo se mostrava atento um dos polícias da PSP de serviço. 

Uma vez que tal procedimento se mostrava abusivo, o homem entendeu fazer queixa ao polícia de serviço. É bom que se diga que o serviço de urgência do hospital de São João albergue nas mesmíssimas instalações de tal urgência, a escassos metros dos "guichets" de atendimento dos "utentes" um mini posto da PSP, com elementos vindos da esquadra do Bompastor. 

A administração do hospital achou por bem colocar nesse local um posto de PSP, a somar aos referidos elementos das empresas privadas de segurança para reassegurar a segurança do local. E o responsável pela urgência também deve estar de acordo porque não consta que seja o contrário. E os elementos que o compõem são de gabarito idêntico aos "seguranças", em formação humana, sensibilidade e empatia para com os "utentes", tal como só os agentes de polícia sabem ser. E daí a inutilidade de qualquer queixa contra os serviços e responsáveis, com quem os mesmos lidam ali mesmo, diariamente. Escrever no livro amarelo? Para quê?! E com que estado de espírito, em tais circunstâncias?

Então imagine-se: um serviço que atende todas as pessoas que lá vão em busca de socorro para doenças, desastres, acidentes, maleitas etc.  etc., desesperados alguns deles, com dores e padecimentos que obrigariam a um atendimento humano e humanitário, o mais possível próximo da afabilidade, tem logo na recepção, se calhar, um burgesso qualquer formado em "segurança" e com formação nula noutros aspectos e para reforço de tal aparato ainda pode dispor dos serviços da polícia! Será disto que têm nos países do Norte?! Será isto que o responsável pela urgência do São João, acima entrevistado, pretende mesmo?

Para concluir e não alongar mais, a mulher foi atendida por um médico, porventura dos tais "tarefeiros" de que se queixa amargamente o responsável pela urgência do São João. Só pode ter sido, aliás, perante a incompetência demonstrada e a arrogância escrita no registo do "episódio de urgência". Para além de não ter diagnosticado nada de acertado à mulher, receitou-lhe cortisona e morfina em dose substancial. 

E mandou-a para "o médico de família". Dali a alguns dias e um padecimento atroz, apenas minorado com quantidades de medicação ineficaz, a mulher foi diagnosticada num hospital particular, onde pagou a respectiva TAC que o SNS se recusa a fazer nos hospitais públicos,  com duas hérnias discais, passíveis de provocar dores lancinantes. Quanto ao "médico de família" teria ocasião de ver a "utente" cheia de dores e carente de medicação urgente, dali a dois meses. Ou mais. 

No registo do episódio de urgência feito por tal "tarefeiro", ainda ficou mencionado, para além de outras pérolas de boa educação,  que a utente tinha vindo do Algarve apesar de para lá ter ido quando já sentia algumas dores e que era de outra região do Norte do país, como se o serviço de urgência do São João não devesse aceitar utentes em carência de atendimento médico urgente. 

Ah! E a maca surgiu logo depois do atendimento pelo "tarefeiro", sendo certo que havia mais de meia dúzia delas, disponíveis nos corredores e visíveis para quem as procurasse...

Enfim, este é o retrato aprimorado de umas horas num dia qualquer de há uns meses atrás, no Verão, do serviço de urgência do hospital de São João do Porto de que aquele médico é responsável e que na entrevista se farta de dizer mal do SNS enquanto organização e ainda assim faz parte do mesmo. Sendo certo que este tipo de episódios de urgência, com estas pessoas, não devem ser caso único. 

Sobre isto é que o mesmo médico deveria ter sido entrevistado, porque sobre isto é que poderia e deveria dizer alguma coisa. Sobre o resto, enfim, já sabemos que não é da sua responsabilidade...

 

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