terça-feira, maio 23, 2023

A foto de uma esquerda que ficou a mandar no país em 1974

 Este postal tem mais de dez anos e na altura intitulei-o "a nossa esquerda nacional-burguesa". Como se anda em maré de revisitação de quem nos traçou o futuro que já tivemos, aqui fica novamente, com algumas actualizações. 

A primeira é com excertos do livro, particularmente o depoimento de Joaquim Letria, na altura empenhado no "Movimento Cívico não apaguem a memória". 

Joaquim Letria foi um dos jornalistas mais destacados depois de 25 de Abril de 1974, tendo dirigido o Jornal, saído em Maio de 1975 e um baluarte do socialismo moderado, feição grupo dos Nove, no tempo do PREC. 

Não obstante, foi sempre um compagnon de route dos comunistas ortodoxos do PCP e a prova está nas considerações que escreve sobre os mesmos que figuram na foto do leit-motiv do livro. 

A foto em causa é de 1963, de um grupo de estudantes, assim identificados, alguns deles, com a foto actualizada no ano de 2012, saída em 16.6.2012 no jornal i, altura em que o livro foi publicado e o postal também:


O artigo de Joaquim Letria, explicativo e esclarecedor acerca destes opositores ao regime de Salazar e depois de Marcello Caetano, pela via subversiva do comunismo e que pretendiam instaurar em Portugal, à semelhança do modelo soviético. 
Custa a acreditar que estas pessoas não tenham percebido na idade adulta o que era o regime soviético. Custa muito a crer, mesmo que Letria diga que se afastou dos compagnons pouco depois da invasão de Praga, pelos russos soviéticos, em 1968:






Era desta gente que o regime de Salazar e Caetano procurava prevenir-se e foi com esta gente que apanhamos durante estes anos todos. O regime que vigora tem esta paternidade e por exemplo o actual primeiro-ministro, o primeiro manhoso über alles, é descendente directo desta ideologia por via materna e paterna. 

O postal de 2012 procurava mostrar tal fenómeno...


O conhecimento da Esquerda portuguesa  carece da leitura do livro A Foto, recentemente publicado pela Âncora editora.  Livro que se lê de uma assentada e nos dá um retrato impressivo de como pensam e viveram alguns dos indivíduos de uma geração que acabou por dominar a intelligentsia do nosso último meio século. Há um blog a acompanhar.
O livro, a pretexto daquela foto com cinquenta anos baseia-se em relatos pessoais de oito figurantes numa fotografia tirada em Março de 1963, ao cimo da Alameda em Lisboa,  no campo de futebol da associação de estudantes do IST, porque a maioria era aí estudante.
É a foto de “um grupo de amigos que frequenta o café Pão de Açúcar, a meio da alameda, para estudar, namorar, discutir política e fazer má cara a um ou outro frequentador do café com ar mais suspeito, e que tomavam, com as infundadas certezas da juventude, por informador da PIDE.”
Todo o livro, dedicado a rememorar essa foto e circunstâncias pessoais das vidas daqueles intervenientes, roda à volta desse velho fantasma, a PIDE e a sombra da Clandestinidade em que alguns passaram então a viver para não serem presos pelo regime de Salazar e do Estado Novo.
Todos esses elementos da “foto”, com excepção de quatro ou cinco, foram militantes do PCP, “ilegal e secretamente” como refere um deles, Raimundo Narciso,  na introdução ao livro que escreveram a oito mãos.
As palavras Clandestinidade, Ditadura, Pide, repetem-se como um mantra ao longo do livro para elucidarem o leitor sobre os leit-motiv sociais daquelas vidas.
O que pretendiam Joaquim Letria, recrutado aos 16 anos pelo PCP em 1960; Jaime Mendes, militante do PCP desde 1961 a 1989; José Gomes de Pina, um compagnon de route que viveu sempre para as engenharias, algumas públicas;  Mário Lino, militante do PCP de 1964 a 1991 ( já depois da queda do Muro); Noémia de Ariztía, activista política e comunista desde o início dos anos sessenta; Paula Mourão, filha de um inspector colonial de fazendas, casada com Mário Lino e igualmente associada politicamente ao comunismo; Raimundo Narciso, comunista de gema desde o início dos anos sessenta, condecorado pela URSS em 1965, juntamente com Álvaro Cunhal e que desistiu do partido em 1987, mas não da Esquerda.  Desde 1995 que milita no PS, a esquerda que há quando a outra deixa de haver;  Teresa Tito de Morais, casada com Jaime Mendes, associada ao comunismo deste compagnon de route que foi presa pela PIDE e ficou traumatizada mas exultou com o advento do Mai 68, os hippies e tutti quanti. Como escrevia, o que pretendiam estes refugiados do Estado Novo e da sua ditadura?
Como escreve Joaquim Letria na introdução, “ não há nesta foto, um único graduado da Mocidade Portuguesa, posso assegurar”.
É claro que os adversários destes indivíduos eram os adeptos do Estado Novo, os que viviam bem com esse regime e que apoiavam os seus dirigentes.  Ou até quiçá, os indiferentes em geral e para quem “a política era o trabalho”.
Estes indivíduos sonhavam já com “ a independência das colónias e com o fim do Império” e por isso mesmo alguns deles se declaram abertamente “apátridas”. 
Alguns deles colaboraram clandestinamente com forças que pretendiam derrubar pela força o Estado Novo. Raimundo Narciso particularmente ajudou a criar a ARA, força política que executou atentados à bomba em Portugal, numa espécie de imitação dos grupúsculos revolucionários dessa Europa fora, as Etas,as RAF e os IRAs.  Todos de extracção comunista e esquerdista e que pretendiam derrubar os governos legítimos dos países onde actuavam para colocar no poder “ o povo”, em vez da “burguesia”.
Nenhum dos oito fala nisso, no livro, mas a essência do pensamento comum é e continua a ser a “luta de classes”, ou seja, o comunismo fundamental, o idealismo sem fronteiras e a utopia dos amanhãs a cantar. 
Como escreve Joaquim Letria, a fls. 17, “acreditavam que o futuro era a seu favor e a História lhes daria razão. “ Uma superioridade moral a toda a prova. E que aparentemente se mantém, porque nada na História lhes ensinou algo ou os levou a esquecer fosse o que fosse.
A História no entanto não lhes deu razão nem tem dado ( embora insistam na ideia, agora mudada para o novo  bode expiatório de todos os males sociais, os malditos “mercados”)  mas ainda assim nenhum deles desarma dos antigos amores.
 Uma das retratadas, Noémia Simões a páginas tantas, segundo Raimundo Narciso ( pág. 200) ainda balbucia qualquer coisa sobre estas pessoas que “ não têm a certeza de que o caminho que vocês fizeram nestes 50 anos tenha obedecido à melhor opção.”
Suspeito que a opção que ficou por cumprir, às tantas seria a que foi frustrada pelos acontecimentos vindouros: a burguesia não se rendeu e transformou os revolucionários em velhos burgueses, pequenos e intelectualmente anafados numa nacional-burguesia que tomou conta do ambiente. Mário Lino fuma charuto ou cachimbo? Parece que sim e que deu a ganhar mais dinheiro à grande burguesia dos bancos e das empresas de gente bem do que jamais algum adepto de Salazar o fez no seu tempo. Jamé! Foi ministro das Obras Públicas e as parcerias Público-Privadas aí estão para o confirmarem sem dúvida alguma. Os ricos ficaram mais ricos com estes esquerdistas a mandar.
José Luís Judas, aqui lembrado por um deles é outro exemplo, assim como um Pina Moura aqui lembrado por ninguém. São exemplos concretos do desvio à utopia e a queda na entropia burguesa mais detestável.A única que se arrependeu e denunciou o embuste foi Zita Seabra, a renegada.

Não obstante, o maior drama desta gente, se drama existe, o que duvido perante a ausência completa de arrependimento, é um logro, ou seja, o “gigantesco embuste” de que falava um antigo comunista reconvertido às delícias de um socialismo social-democrata, Mário Soares: a Liberdade por que lutavam no Estado Novo era uma ideia de Liberdade falsa, totalmente pervertida pelo regime em que acreditavam como futuro e modelo de substituição, o da URSS ou da RDA ou a de qualquer um dos países ditos socialistas e que serviam de referência para os oito magníficos esquerdistas portugueses aqui retratados.
A Liberdade por que lutavam não era livre e  constituía apenas uma  maior servidão. 
Querem eles saber porquê? Basta esta pequena imagem para mostrar o horror que escondem e não querem reconhecer- 
 Será que isto tem alguma comparação com  o que se passava no Estado Novo de Salazar? E o tempod e Marcello Caetano também foi assim terrível e comparável?
Será que quem invoca sempre e a todo o momento a PIDE e a repressão e a Ditadura de Salazar não se lembra por um pequeno momento que seja que aquilo que nos prometiam em substituição era isto e ainda muito pior?
Por quem nos toma esta gente?

Assim o maior castigo para esse drama seria viver no paradoxo esquizofrénico em que a Liberdade era apenas a maior das servidões, tal como denunciava Orwell e que os mesmos não liam.
E contudo, apesar disso mesmo e de conhecerem agora a realidade desse tremendo embuste, não desarmam e continuam a sofrer e exaltar as virtudes da luta antiga que seria sempre inglória e brutal, muito mais do que a que sofreram na pele, inflingida pelo Estado Novo.
Como exemplo patético desta mentalidade, tomem-se duas pequenas anedotas do livro.
A primeira, é de Mário Lino como não podia deixar de ser. Em 1963 depois de conhecer a futura mulher Paula Mourão, foi pedir a mão ao pai, “o inspector Mourão”, “ uma pessoa de fácies duro, com poucas palavras” e que se mostrou renitente em autorizar o casório. Lino nessa altura, para evitar um temido "jamé",  afoitou uma história prazenteira: “Uma vez um rapaz de poucas posses foi falar com o futuro sogro, de nome Silva, homem abastado, para lhe pedir a mão da filha. O pai da dita diz-lhe: “ouça uma coisa, a minha filha para o almoço tem, mas o senhor, para o jantar tem?´Responde-lhe o pretendente da filha: ´Ó senhor Silva, eu quando almoço bem, já não preciso de jantar”. Gargalhada do futuro sogro e casamento aprovado…
A segunda é de Raimundo Narciso que é o exemplo mais patético. Passou muito tempo na URSS e as histórias que conta não são propriamente condizentes com as histórias que os prisioneiros do Gulag contariam e que não devem ter comparação com o nosso temperado Tarrafal.
São histórias de um país feliz e no qual o povo se trata por “taváriche” numa plena democratização social.  Havia apenas um pequeno senão: o café não prestava. E não havia cafés. E Raimundo perguntava retoricamente “onde é que discutiam política? Onde é que diziam mal, isto é, onde é que diziam bem do Governo? Onde é que comentavam o último filme? Onde namoravam?”
Raimundo, certamente  nunca soube a resposta a estas perguntas...porque não a dá.
Talvez nem lhe interessasse muito saber. Salazar pensava da mesma forma. Perguntar, para saber? Para quê? O povo precisa de saber isso, para quê?
Raimundo, depois de abandonar a fé no "Partido", converteu-se à religião da gestão. Foi gestor de empresas. Administrador. Mas não deve ser daqueles que ganha oito vezes o salário do presidente da República porque esse tal é vituperado no artigo do livro...

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