segunda-feira, maio 15, 2023

O Estado Social apareceu em 1971

 Na sequência do postal anterior e relacionado com a circunstância de o regime que vinha do Estado Novo, institucionalizado com a Constituição de 1933, se ter modificado ao longo das décadas, vale a pena ler o seguinte artigo de Francisco Lucas Pires, publicado na revista Observador de 7 de Maio de 1971, acerca da revisão constitucional que se iria operar nesse ano. 

A noção é clara: a nova revisão constitucional pretendia cortar cerce uma das traves-mestras do regime do Estado Novo, a saber a noção de poder centralizado e personalizado, por contraposição à legalidade mais abstracta e determinante. Por outro lado, o corporativismo de Estado, tal como conhecido no Estado Novo, modificar-se-ia em prol de um outro conceito mais alargado de corporativismo de associação, ou seja Estado Social, no dizer de Lucas Pires. 

É nesta base e só nessa que é necessário fazer e realçar a distinção entre as duas concepções e as modificações inerentes que a meu ver devem ser apontadas. Marcello Caetano não foi o mesmo que Salazar, nesse aspecto, porque os tempos, costumes e vida social eram outros. 

A amálgama que agora se faz torna-se por isso deletéria e causadora de equívocos que não permitirão o conhecimento da realidade nacional à época e já nos anos setenta do século XX. 



A realidade social então vigente pode ser apresentada com dois exemplos extraídos das páginas da mesma revista. 

O primeiro em 16 de Abril de 1971 dizia respeito à assistência social, no caso as baixas médicas, num campo típico da social-democracia que Portugal estava a desenvolver desde os anos sessenta. 

O problema exposto permanece aliás actual e ainda mais premente que nessa época em que se escrevia clara e abertamente, sem subterfúgios e censuras que agora existem para encobrir realidades sociais incómodas para a "democracia". É assim mesmo, sem tirar nem pôr:  



Por outro lado naquele mesmo número de Maio de 1971 aparecia numa página a discussão acerca de um assunto que viria a ser tema importante meia dúzia de anos depois, o divórcio.


Era esta a realidade nacional tal como mostrada e havia outra forma de a analisar, como é o caso do livrinho já citado no postal anterior, da autoria de um colectivo de esquerdistas radicais que tomavam assento e pluma na revista Seara Nova, sujeita a censura mas com artigos como este, aliás publicados em 1975 no citado livrinho.


O livrinho tem artigos sobre a economia portuguesa da época, apontando sempre no sentido da análise marxista e de luta de classes, burguesia contra classe operária e termos operativos como "burguesia monopolista portuguesa" ou "alargamento do modo de produção capitalista", indicando-se expressamente a iminente mudança no panorama político-social derivado de tais transformações capitalistas e burguesas, através de um "levantamento nacional anti-salazarista". 

A esquerda portuguesa e particularmente a extrema-esquerda analisa a sociedade portuguesa de finais dos anos sessenta de um modo muito mais moderno do que actualmente a mesma esquerda o faz e principalmente com menos anacronismos ou fugas à realidade. 

A paginas 43-55, um certo Alfredo Margarido, de esquerda, analisa assim o momento e a época portuguesa no final dos anos sessenta, em artigo de Abril de 1968:









A análise parece-me extraordinária porque parte de pressupostos inéditos no modo de escrita que passou a vigorar depois de 25 de Abril de 1974, muito mais sectário e desprovido de ligação a uma realidade vigente. 
Neste escrito, o salazarismo está já morto, com certidão de óbito passada já em meados dos anos sessenta. O que viria a seguir era a social-democracia, com a adaptação da sociedade, incluindo a política aos novos tempos que se anunciavam e tinham a participação directa da burguesia e da pequena burguesia. 
Até o problema do Ultramar é equacionado em modo racional e razoável. E o partido comunista é apresentado como integracionista, ou seja, o que sucedeu depois de 1976, com a estabilização do regime democrático. O comentário do autor a um artigo de outro esquerdista, mais moderado, Rogério Fernandes, é elucidativo da lucidez que mostra relativamente a um futuro próximo mas dali a meia dúzia de anos. 
No mesmo livrinho o artigo sobre "as ideologias e prática política no Portugal do pós-salazarismo" também é interessante sob tal ponto de vista, uma vez que dá a perspectiva da extrema-esquerda sobre o devir português e que já se publicaram no postal anterior as páginas 92 a 99, publicando-se agora as primeiras de tal artigo, de 79 a 92:








 

Julgo que toda a história da extrema-esquerda portuguesa está aqui explicada, bem como o antagonismo com o PCP e as razões para tal. Todos os partidecos de extrema-esquerda que pulularam no PREC de 1974-75, desde o MRPP até à AOC, passando pela UDP, comungam das ideias aqui expressas e foram espelhadas na respectiva actuação política nesse tempo e depois disso, com o afloramento revolucionário e terrorista das FP25, já nos anos oitenta. 

Por outro lado, a análise política efectuada parece-me notável pela clarividência e ausência de preconceitos. 
O salazarismo nunca foi o problema para esta gente, antes pelo contrário: foi sempre o seu seguro de vida, tal como actualmente acontece. Sabiam perfeitamente que o salazarismo estava mais que ultrapassado e que a questão era outra. Tal como hoje sabem, mas continuam a insistir num fassismo mitológico que só lhes aproveita e lhes permite esconder as incompetências notórias e de sempre. 

O problema para esta gente era outro: o sistema económico-social que acompanhava esses tempos de utopia e que os mesmos pretendia, revolucionar. Pela força das bombas e das armas se preciso fosse. "Morte aos traidores!", o slogan do MRPP, neste contexto não era apenas simbólico...

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