Temos muitos, claro, mas a retórica é apenas sobre este que passo a mencionar: a distinção entre o crime, a ética, a corrupção e os maus-costumes democráticos.
O crime já sabemos o que é, porque vem definido...no Código de Processo Penal. Tal como aqui se explica é simples de entender, aparentemente:
"Crime é o comportamento que viola a lei e que, como tal, é punido com uma pena.
Para efeitos do Código de Processo Penal, crime é o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao seu autor de uma pena ou medida de segurança criminais.
A maior parte dos crimes só é punível a título de dolo (intenção de praticar o facto). A punibilidade a título de negligência deve estar expressamente prevista na lei."
Porém esta simplicidade esconde a floresta de enganos de milhentos livros escritos sobre o assunto e outras tantas decisões de jurisprudência.
Crime é coisa que nem toda a gente entende bem o que seja, mesmo que viole as leis e cuja ignorância não seja admissível, mesmo em caso de ignorância ou erro nos pressupostos, outro conceito com milhentos livros ou artigos sobre tal.
Veja-se este caso particular citado na Sábado de hoje por Eduardo Dâmaso:
Um tribunal colectivo considerou que um agente político, antigo empregado de um banqueiro, cometeu crimes no exercício das suas funções e justificou-os com mais de mil factos dados como provados. Essencialmente, considerou que o agente político enquanto governava também o fazia a soldo do antigo empregador, um conhecido banqueiro que foi condenado igualmente por tal actividade corruptiva. A prova indirecta, sobretudo, residia no facto indesmentível de ter recebido à socapa e escondido em offshores, o estipêndio de tal pacto, considerando-se que ia além da mera composição de um rendimento sofrível enquanto governante e passava pela prestação de fretes a pedido do empregador, portanto num mercadejar proibitivo do cargo ocupado. Os factos criaram uma convicção nos investigadores, na entidade acusadora e nos julgadores que se solidificou em julgamento.
Os condenados rasgaram as vestes, clamando inocência, escândalo de erro judiciário porque consideraram a actuação perfeitamente normal nas circunstâncias aludidas e perante os factos dados como provados. Foi tudo para compor o ramalhete do parco vencimento, sem favores de outro tipo que não o da ética distorcida e da lei comprometida.
Há uma pergunta que fica no ar porque nunca vi respondida: o dito governante foi obrigado a ir para lá e a ganhar um décimo do que poderia ganhar? E já agora, outra: e se não foi, que contrapartida esperava receber o empregador generoso e consabido por andar metido em negócios em que o Estado era soberano e o dito empregado poderia fazer algo para ajudar e terá mesmo ajudado? É essa a equação que o tribunal resolveu. E bem, porque é resolvida pelo senso comum, mais do que pelo Código Penal. É a ética, os costumes e no final de contas a noção de corrupção que ficou bem explícita e clara. Apesar de algo inédita...
Portanto há por aqui algo que não se entende muito bem, tanto mais que andou por aí a circular um manifesto de uns 50 subscritores que entretanto foi aumentando as adesões, clamando igualmente pela normalização do sistema judiciário, mormente do Ministério Público que consideram sem o freio nos dentes sendo urgente e necessário, segundo os mesmos, um refreio.
Personagens insuspeitas como alguns magistrados dão igualmente o corpo ao manifesto. Uma magistrada no activo, inspectora, já vai em três intervenções públicas. A última, radiofónica, para vituperar os colegas de um processo que mantiveram um determinado suspeito, por acaso político e nessas funções, sob escuta telefónica durante quatro anos! Ó escândalo! Ó inclemência! Acha que até foram escutar atrás da porta ( sic) do mesmo...enfim. Lamentável, mais uma terceira vez. E desta não garanto que não tenha outro processo disciplinar. Trata-se de Maria José Fernandes, muito loquaz nestes (des) propósitos.
Não obstante, parece-me que o artigo da Sábado de Eduardo Dâmaso entronca noutra pequena nota editorial de ontem no CM, assim:
A junção destas questões leva-me à seguinte reflexão:
O que pretendem os subscritores do manifesto? Como são vários, os desejos são variados. Porém, o traço fundamental, no contexto, é mesmo refrear o Ministério Público, impedindo de algum modo que se investigue como foram investigados os dois processos que segundo um deles ( David Justino, um sociólogo, que já foi ministro da Educação e fez algumas asneiras que depois procurou corrigir, num tempo em que tal ainda era possível), apenas foi a gota de água.
Porém, no artigo de Eduardo Dâmaso citam-se expressamente Euclides Dâmaso, Maria José Morgado, Rui Cardoso, António Cluny, todos magistrados do Ministério Público com provas dadas e ainda Rui Pereira, um professor de Direito Penal, também com provas dadas nas explicações práticas na CMTV e antes na redacção de leis penais aprovadas como tal.
Todos confluem num aspecto que me incomoda porque pouco claro e explicitado, sendo o mais fugidio e irritante, António Cluny. É sempre muito difícil perceber onde quer chegar e até o que quer dizer. Nem com meia palavra, porque é sempre recortada de véus e alusões crípticas. E não sei porquê.
O aspecto é o de considerarem que há qualquer coisa a melhorar no funcionamento interno do MºPº, acerca do modo como se fazem investigações criminais, mormente nestes casos mediáticos, o que desde logo me suscita apreensão.
O CPP está em vigor há mais de 35 anos, já teve inúmeras alterações, quase sempre a reboque de clamores do género actual e dos mesmo de sempre, ou seja políticos entalados. Parece-me um facto indesmentível e por isso pergunto: isso não lhes faz comichão no bestunto? Acham normal que se discuta um processo penal, sempre que algum político, mormente do PS ou do PSD estejam em apuros e a classe política se veja confrontada com práticas delituosas segundo a lei que eles mesmos gizaram e aprovaram?
O CPP foi aprovado em 1987, entrou em vigor em 1988 e foi tido como a última obra-prima da escola jurídico-penal de Coimbra. Jorge Figueiredo Dias, foi considerado o responsável máximo da obra teórica e participou depois em várias "revisões" até que se fartou. Em 2009 dizia assim:
" Em 1994, 95 fiz saber que não estava interessado [em participar nas comissões de reforma penal]. Fiz ininterruptamente parte de comissões, como presidente ou como vogal desde os 26 anos...e disse: chega. A verdade é que depois de 94, não fui convidado para mais nenhuma comissão porque sabiam que eu não queria. (...)
Não sou obviamente contra ajeitamentos, amaciar as arestas... são as tais revisões. É uma actividade menor mas para a qual é preciso um trabalho incalculável", diz Figueiredo Dias.
Em 24 de Junho de 1997, numa entrevista ao jornal O Diabo, Figueiredo Dias, pronunciava-se sobre a eficácia das penas "perpétuas" ou outras mais gravosas...respondendo avant la lettre aos anseios do Chega.
E já mencionava métodos policiais e do MºPº que agora são novamente questionados, particularmente o de "prender para investigar".
Figueiredo Dias foi autor das normas que tal permitiam e não o impediam...
Quanto ao MºPº que agora se questiona relativamente ao modelo, o que dizia Figueiredo Dias sobre tal? Em 2010 escrevi aqui o essencial:
"Todos sabem ou podem saber o que o MP português é. Para poupar tempo e esforço a quem quiser actualização de conhecimentos, cito um dos escultores desse rosto e estrutura:
Figueiredo Dias, que teoricamente detém uma autoridade inquestionável, dizia há uns anos atrás: " não existe outro modelo de ministério público que sobreleve em vantagens ou sequer iguale, o adoptado pelo processo penal português".
Em 1999, numa entrevista ao O Diabo, dizia: “Do meu ponto de vista, o modelo de repartição de competências entre os magistrados judiciais e o ministério público é o melhor que se pode ter , é o que eu defendo. Como é o modelo do relacionamento entre o MP e as polícias.”
Para além disso, a lei, no estatuto do MP, confere a cada um dos escalões de magistrados que exercem na primeira, segunda e última instância, poderes próprios de uma autonomia que os define como são: magistrados, sujeitos à lei e cujas ordens de superiores só actuam no âmbito de processos e segundo regras prè-definidas legalmente.
Um superior hierárquico se entender que o trabalho concreto de um subordinado hierarquicamente não é o que deveria ser, tem uma de duas opções: ou avoca o processo concreto, explicando por que o faz e assume a responsabilidade de o despachar; ou participa factos susceptíveis de apreciação disciplinar, ao respectivo conselho superior.
Além disso, o magistrado de base, está sujeito a inspecções periódicas pelos inspectores de carreira no MP. Será que isto precisa de mudança, para tornar o MP mais semelhante a uma estrutura militar com rosto de sargentos, coronéis e ordenanças, em vez de duques e condes?"
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