sexta-feira, agosto 16, 2019

As evocações apócrifas de Woodstock

O Observador também deu o seu contributo para a evocação da efeméride dos 50 anos de Woodstock, seguindo à risca os ditames da "brand" em curso: em Portugal só não se soube mais por causa da Censura. Para este esclarecimento foram ouvir um radialista a apresentador de televisão, com muita experiência e idade para ter mais juízo, Júlio Isidro, o célebre animador do Passeio dos Alegres, na tv.

Júlio Isidro e Tozé Brito, autor de músicas festivaleiras, contam a sua experiência pessoal com as memórias já inventadas por outros: 

Júlio Isidro garante ao Observador que a ausência de notícias na imprensa portuguesa não é prova da falta de interesse nacional no que se passava em Woodstock, apenas da eficácia da máquina censória do antigo regime. Na altura, tinha 24 anos e acumulava o emprego diurno como delegado de informação médica com a apresentação de noticiários no Rádio Clube Português, por 25 escudos por noite.

Recorda-se de ver chegar telexes com informações sobre Woodstock, mas não consegue precisar se chegou sequer a ler algum deles no ar: “Acho que a maior parte ficou suspensa. Para além da Comissão de Censura, que estava no Palácio Foz, o Rádio Clube Português tinha censura própria, havia um gabinete com três pessoas só para isso. Ainda por cima os telexes vinham com fotografias horríveis de maminhas à mostra — numa altura em que era proibido mostrar decotes na televisão, imagine! — e como se não bastasse ainda falavam sobre droga, que era uma coisa horrível que não se podia mostrar! Para o regime cinzento e bem comportado em que vivíamos, coisas como o Woodstock eram perniciosas, de evitar, quanto menos se soubesse sobre o que se estava a passar lá fora, melhor. Os jovens tinham de se manter burros e ignorantes.”


Quando o Woodstock arrancou, Tozé Brito estava a dez dias de completar 18 anos. Era jovem, não ignorante: já membro do célebre Quarteto 1111, sabia que o Woodstock ia acontecer, só não sonhava que se tornasse — muito menos que se mantivesse até hoje, 50 anos mais tarde — o evento musical mais importante da história.

“Foi o pontapé de saída para tudo o que vemos ainda hoje no mundo dos festivais e o cartaz era brutal, ótimo. Ainda assim, parece-me que foi ainda mais importante enquanto movimento de massas, de uma geração anti-belicista contra o poder instituído. O nosso baterista, o Michel Silveira, era chefe de cabine da TAP, viajava para os Estados Unidos e para toda a parte. Para além de nos trazer notícias, trazia-nos as revistas que na altura não chegavam a Portugal. Fomos sabendo tudo sobre o festival, sobretudo a posteriori — quando apareceu era para ser uma coisa muito mais pequena, eram cinco amigos a organizar, pensavam que iam ter 50 mil pessoas e acabaram com 500 mil. O Woodstock teve um impacto gigante, tanto na sociedade americana como a nível mundial, mas cá as notícias não chegavam porque eram censuradas”, explica ao Observador.


Portanto, para Júlio Isidro a informação deficiente e omissiva sobre Woodstock foi tudo obra da maldita Censura que não deixava mostrar maminhas...tal como em França não deixava; ou em Itália, ou mesmo na velha Inglaterra. E muito menos nos países do leste europeu que tinham o regime que estas pessoas sonhavam para Portugal. 

Estas pessoas sabem isto perfeitamente mas continuam a mistificar tal realidade. Ainda assim esta capa é da revista Mundo Moderno de Agosto de 1969 que se vendia livremente por cá: 



A música também não, acrescenta Júlio Isidro. Em 1969, em Portugal, não era fácil comprar discos de Janis Joplin, Grateful Dead ou Jimi Hendrix, muito menos de Carlos Santana, que à data só tinha 22 e estava ainda a começar. “Na altura existiam discotecas, lojas de música que eram simultaneamente editoras, como a Valentim de Carvalho e a Sinfonia, mas havia muito pouca música do género disponível. Aquilo que chegava era por importação”, revela o apresentador, que em 1969 estava ainda a um ano de integrar a equipa que fazia o “Em Órbita”, o programa que mantinha, todos os dias, das 19h às 21h e da meia-noite à 1h, os fãs portugueses da nova música anglófona agarrados à antena do Rádio Clube Português.

“Quando foi o Woodstock ainda não fazia o programa, mas já era companheiro de cabine deles. As bandas e os músicos que atuaram no festival eram as que passavam no «Em Órbita» — e em mais lado nenhum em Portugal. Tínhamos um correspondente, o Manuel Espinho, que era comissário de bordo e nos trazia de Londres e de Nova Iorque os discos todos que lhe encomendávamos. Líamos a New Musical Express, a Billboard, ouvíamos a Voz da América e a BBC Overseas, e dizíamos-lhe o que queríamos. E depois havia ainda uma tabacaria, a Havaneza de Campo de Ourique, que tinha o privilégio — ou corria o risco! — de ter alguns desses discos à venda. Ao programa emprestava, só pagávamos se voltasse picado”, revela o apresentador, hoje com 74 anos.


Conforme já mostrei por aqui, as notícias e imagens de Woodstock foram muito parcas na altura e só a revista americana Rolling Stone deu um destaque proporcional ao evento. Mas não mostrou maminhas nenhumas...pelo que Júlio Isidro deve ter imaginado imagens que nunca viu.

O Observador aprendeu entretanto a fazer um mínino trabalho de casa e foi a uma hemeroteca consultar jornais da época. O Diário Popular, por exemplo. 


Por outro lado aquele Júlio Isidro diz que se informava com a leitura avulsa de jornais e revistas inglesas e americanas que lhe traziam de Inglaterra e ouvia programas na BBC e Voz da América. 
A BBC não é exemplo para ninguém da censura porque efectivamente censurava discos por causa de passagens menos ortodoxas e a Voz da América tinha mais que fazer do que reportagens de Woodstock, numa altura de muitos festivais desse Verão. A BBC censurou a canção que fazia "escândalo" na América, conforme noticiado no DP. Seria a Inglaterra um país fassista e salazarista, cinzento e tudo?

Depois diz que as bandas e os músicos que actuaram no festival eram os que passavam no Em Órbita...huummm, tal afirmação cheira a apócrifo que tresanda. 

“O «Em Órbita» passava exclusivamente música anglo-americana, mas não passávamos as musiquinhas dos tops, o lema era «menos comércio e mais espírito de iniciativa», com textos curtíssimos e uma linguagem muito despida, muito crua. Era um programa anónimo, não havia nomes, como costumávamos dizer — «o programa é feito por nós e dito por mim». Passávamos as músicas por inteiro, não havia cá disc-jockeys saloios a falar por cima da música. E todos os anos elegíamos — com o rigor da eleição de um papa — os dez melhores álbuns, as dez melhores músicas e a pior música do ano. Num ano elegemos o Frank Sinatra, esse grande piroso, como o pior! Está a ver a peneirice que nós tínhamos?! Hoje amo o Sinatra mas naquela altura pareceu-me muito bem”, ri-se o histórico apresentador de televisão. Que também garante: muitos dos álbuns editados na época em Portugal só o foram graças ao histórico programa, criado em 1965 por Jorge Gil e Pedro Soares Albergaria, ambos já falecidos. “As editoras penduravam-se em nós, no final do ano era uma correria para saberem quais, de entre a nossa lista de dez álbuns, é que lhes pertenciam. Nessa altura imprimiam quase de um dia para o outro e vendiam uma série de discos, muita malta nova parava todos os dias para ouvir o programa, que era sempre em direto, sete dias por semana.”


Vejamos se assim era, com elementos de facto do próprio programa Em Órbita de finais de 1969, com a amostra de tal "top", publicado aliás na revista Mundo Moderno no início do ano de 1969 e relativo ao ano anterior.
Em primeiro lugar os grupos que se viram e ouviram em Woodstock, tirando uma ou outra excepção não eram os habitués do programa Em Órbita.
Em segundo lugar não era o único programa de rádio a passar música popular anglo-saxónica de qualidade, pois já existia o Página Um e o 23º Hora. 

Finalmente, os Grateful Dead ou mesmo Janis Joplin não era propriamente o prato do dia dessas estações de rádio porque os discos que editaram nessa altura ainda não tinham atingido o sucesso que depois vieram a ter, mesmo nos seus países de origem. 
Os Grateful Dead eram nada de nada na Inglaterra desse tempo e os tais New Musical Express de que fala esta gente, em memórias inventadas, ligaram nada de nada ao festival de Woodstock, pela simples razão de que tinham outros festivais com que se ocupar, como por exemplo o da ilha de Wight ou de Plumpto, ou mesmo o concerto grátis no Hyde Park, como a Rock & Folk francesa, aliás e mostrei aqui

Uma busca rápida pelos números do Verão desse ano, ao New Musical Express mostra isto claramente: 


Mas nem era apenas o New Musical Express a desprezar Woodstock como acontecimento de capa. Também o Melody Maker fazia a mesma figura. Resultado, agora ninguém fala ou evocou o festival da Ilha de Wight, mas nesse tempo esse foi o acontecimento. Não Woodstock...


Mesmo Richie Havens que tinha tocado em Woodstock é notícia aqui, na edição de 3.9.1969 porque tinha também actuado em...Wight.



Nem uma linha na capa destas edições desse Verão, acerca de Woodstock. Nem uma! Pois aquela gente afirma que foi por aqui que se informou...arre!

O Público de hoje também não podia faltar à comemoração, também na mesmíssima linha de evocações apócrifas com memórias inventadas. 

Desta feita, o "crítico" de música João Lopes ouviu António Macedo, um maduro do rádio que trabalha nas manhãs da Antena Um e que se lembra de Woodstock assim:


O Macedo do rádio diz que tinha um amigo que lia revistas inglesas e francesas e que era por aí que se informava "naqueles tempos cinzentos".  Diz que faltaram os Beatles, os Stones e os Doors mas "estava lá a fina flor toda".  De resto havia a "guerra colonial" e o fassismo...e foi por isso que dali a menos de meia dúzia de anos este indivíduo era dos que queria o "poder popular". Já.

Enfim, para ver quem era esta fina flor é melhor ler estes artigos, neste blog que esclarecem mais que estas afirmações sem grande sentido. 
A "fina flor" para este maduro era esta:

- Richie Havens
- Country Joe McDonald
- John B. Sebastian
- Sweetwater
- Incredible String Band
- Bert Sommer
- Tim Hardin
- Ravi Shankar
- Melanie
- Arlo Guthrie
- Joan Baez

- Quill
- Keef Hartley Band
- Santana
- Country Joe McDonald
- Canned Heat
- Mountain
- Janis Joplin
- Grateful Dead
- Creedence Clearwater Revival
- Sly & the Family Stone
- Who
- Jefferson Airplane

- Joe Cocker
- Country Joe and the Fish
- Ten Years After
- The Band
- Blood, Sweat & Tears
- Johnny Winter
- Crosby, Stills, Nash & Young
- Paul Butterfield Blues Band
- Sha-Na-Na
- Jimi Hendrix

Enfim, há gostos para tudo, mesmo para desinformar, com memórias falsas e inventadas.  Porém, o que me entristece é o amadorismo destas evocações, os erros cronológicos, as evocações apócrifas, o desprezo pela verdade factual e a manipulação ideológica imanente e que se limita a reproduzir o discurso corrente da brand, da marca de desinformação contínua.

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A obscenidade do jornalismo televisivo