Observador:
O colapso estava à frente de todos. O mercado bolsista a tremer por todos os lados e a bolsa de Xangai a cair a pique, libertando ondas de choque que se fizeram sentir em todo o mundo. Esta segunda-feira foi verdadeiramente negra para os mercados, mas isso não impossibilitou que muitos dos jornais chineses fechassem os olhos e optassem por escrever sobre outros assuntos. No noticiário do canal de televisão estatal, ao final do dia, nada. Nas capas dos jornais do dia seguinte, pouco mais de nada. Na internet, segundo relatos do editor do South Morning Post, a pesquisa por determinadas palavras-chave como “mercado de acções” chegou a ser bloqueada. Ver para crer – ou o contrário.
Aconteceu com o Diário do Povo, que na edição impressa desta terça-feira tinha na primeira página uma reportagem sobre o desenvolvimento económico no Tibete e não fazia qualquer referência ao crash da bolsa nas 24 páginas seguintes, preferindo focar-se no 70º aniversário da derrota do Japão na II Guerra Mundial. Mas não aconteceu só com o jornal oficial do Partido Comunista Chinês. A página inicial da agência de notícias estatal Xinhua preferia dar destaque a um trabalho sobre a visita do Presidente Xi Jinping ao Tibete em 1998, e, ontem, ao final do dia, o canal de televisão público chinês CCTV “esquecia-se” de referir o colapso da bolsa no noticiário das 19h00.
A China pratica a Censura sem qualquer problema de ética política. Não sendo abertamente um Estado totalitário, controla efectivamente a vida dos seus cidadãos, subtraindo-os ao conhecimento de assuntos que a direcção do Estado entende serem de subtrair por motivos que entendem válidos e sem grandes pruridos, mesmo entre os que defendem o pluralismo informativo.
Em Portugal, no tempo do Estado Novo, havia o mesmo entendimento, censurando-se a publicação de notícias que fossem entendidas como subversivas ou a expressão documental de assuntos demasiado polémicos em matéria de costumes e contrários ao espírito conservador. O funcionamento prático dessa Censura de militares reformados e de virtudes públicas era por vezes anedótico e contraproducente. O espírito que lhe presidia, esse, merece outro enquadramento.
Após a transição do regime para o Estado Social de Marcello Caetano, a Censura manteve-se com algumas alterações que a tornaram quase similar ao que ocorria noutros países da Europa ocidental, com excepção de discussão pública de assuntos políticos e propaganda da Esquerda comunista, o que era redondamente proibido e com máxima expressão na proibição de publicitação de ideias entendidas como subversivas, como eram as comunistas para o regime que aliás apelidava de fascista.
Salazar não admitia discussões públicas e polémicas oficializadas sobre Deus, Pátria ou Família e tal alargou-se a assuntos menos transcendentes como a Guerra no Ultramar.
Marcello Caetano, em 1973, numa entrevista longa e publicada em livro ( Conversas com Marcello Caetano, Moraes editores, 1973) , explicava, com alguma má consciência, as razões da Censura, a António Alçada Baptista.
Que diz essencialmente Marcello Caetano? Fala da noção de opinião pública e do "mercado das ideias e das notícias", o que é um assunto extremamente moderno e actualíssimo porque equaciona esse mercado ( as empresas de comunicação) e as suas exigências de rentabilidade e interesses com a "importância ou novidade da produção intelectual".
Por outro lado, Marcello exemplifica com o que se passa nas sociedades ocidentais em que há plena liberdade informativa: "o homem comum sai do seu trabalho onde esteve a assegurar o seu bem-estar material e compra um jornal ou uma revista que defende a revolução imediata e a necessidade de pegar em armas e de abrir barricadas. Essa leitura não o leva, de maneira alguma, a fazer o que ali se diz. Não. Chega a casa, instala-se comodamente no sofá, lê a apologia da revolução armada e não pensa, de modo nenhum, em alterar no dia seguinte os seus comportamentos sociais. Mas, nas sociedades que não integraram ainda certo tipo de instituições, o seu aparecimento súbito pode ter consequências altamente perturbadoras".
E apesar de acrescentar que " estou certo que nada disso retira as vantagens da existência duma imprensa não sujeita a exame prévio", continua a defender que não se deve fazer uma passagem repentina do regime de censura para a liberdade total. E acrescenta que o factor mais impeditivo dessa mudança era a Guerra no Ultramar. E o efeito mais perverso da Censura para Marcello seria não o que se impediu de dizer, mas a "o de ter atirado o exercício duma tão importante actividade humana para uma zona de total irresponsabilidade". (...)" Falar e ligar constantemente a palavra a uma responsabilidade não é fácil, mas é a única maneira de lhe dar a sua verdadeira dignidade. "Prender os homens pela palavra". diziam os antigos e com inteira razão".
Este entendimento de Marcello Caetano é válido ainda hoje e subscrevo-o inteiramente.
Assim, a questão é esta: deveria a China dar liberdade de publicação total aos acontecimentos da passada segunda-feira? Melhor ainda: o Portugal de Salazar teria feito o mesmo? E o de Caetano?
Os países ocidentais não fazem tal censura e a liberdade de informação, nesse aspecto, é completa. Porém, tal decorre do "mercado das ideias e das notícias" e não necessariamente dos valores inerentes à liberdade de informação.
Em Portugal, tal mercado depende não apenas da estrita lei capitalista do funcionamento do mercado mas de um outro factor similar ao da Censura: o interesse do patrão, do accionista ou do grupo de interesses que manda efectivamente no órgão de informação, sejam os jornais, tv´s. rádios ou sítios na internet.
O mercado das ideias e notícias absorve tudo. Porém, quem escreve notícias ou opinião não lhe dá tudo o que seria de esperar de tamanha liberdade mas apenas o que entende adequado na conjuntura do momento. E quem convida comentadores encartados no saber de tudo, ao sabor das conveniências da opinião já conhecida, desempenha o mesmíssimo papel do coronel da censura.
É efectivamente uma Censura que assim funciona, prévia, implacável e mais perniciosa e perversa do que a que existia no tempo de Marcello Caetano ou mesmo Salazar, porque é oculta e formatadora de mentes abandonadas a ideias feitas.