domingo, janeiro 28, 2018

O estatuto de vítima e a agressividade mortal

Observador, entrevista com António Ventinhas, presidente do Sindicato do MºPº, sobre os casos de violência doméstica:


O presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) reconhece que “é inevitável” não haver falhas do MP nos casos de violência doméstica, devido à sobrecarga de processos e à falta de formação dos funcionários nesta área.
“Os funcionários do MP [Ministério Público] não têm formação nessa matéria, não lhes é dada por parte do Ministério da Justiça, e não existe número de funcionários que permita um atendimento personalizado, nem pelos funcionários nem pelos magistrados”, afirma hoje António Ventinhas em entrevista ao Diário de Notícias e à rádio TSF.

António Ventinhas deu o exemplo de uma magistrada que tem 700 processos de violência doméstica a tramitar e todos urgentes.
“Tramitar personalizadamente 700 processos de violência doméstica ao mesmo tempo é impossível. Portanto, poderemos estar aqui a falar da lei, do MP, mas quem tem 700 processos para tramitar vai falhar em algum deles, é inevitável. Como em qualquer profissão que tiver mais do que humanamente conseguir fazer, vai falhar”, admite na entrevista divulgada hoje.
Questionado sobre o caso de Valongo, em que uma mulher foi assassinada 37 dias após apresentar queixa por violência doméstica, refere que “foram detetados problemas que devem ser corrigidos”.
“Este relatório [da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica] é importante por isso mesmo”, diz, defendendo que a formação dos funcionários do MP que fazem o primeiro atendimento é uma “questão premente”.
Mas, observou, em muitos casos de violência doméstica “os acontecimentos são imprevisíveis”.
“A imprevisibilidade é um fator importante nestes casos. Às vezes, as relações parecem estar amenizadas e, de repente, há uma situação, que espoleta um problema antigo e leva ao homicídio”, afirma, sublinhando que nestes casos “ninguém assume que há um risco de vida iminente”.
Apesar de ainda haver falhas na resposta a estes casos, António Ventinhas elogia o aumento de prisões preventivas aplicadas ao crime de violência doméstica nos últimos anos: “Tem até uma frequência estatística já relevante”.

Sobre o triste caso de Valongo em que uma mulher foi assassinada por um marido já "sinalizado" oficialmente por autoria de violência doméstica, o jacobinismo reinante, acolitado sempre por este jornalismo de pacotilha que reina no Portugal mediático,  já decidiu que a culpa daquela morte foi do Ministério Público que omitiu diligências determinantes para que tal não sucedesse...

E porquê? Simplesmente porque logo que a mulher, vítima das agressões do marido, foi apresentar queixa, não foi  desencadeado nenhum procedimento cautelar tendente a proteger a vítima. E tal repetiu-se durante alguns dias que se revelaram fatais.
Tal factualidade terá sido apurada, agora, por especialistas que andam a analisar restrospectivamente os casos em que ocorreram vítimas mortais, de violência doméstica.
Os especialistas constituiram-se em grupo de estudo que é coordenado por Rui do Carmo,  magistrado do MºPº.
Segundo este, no caso concreto "o risco foi subestimado e as diligências débeis e pouco adequadas." Foi mesmo assim?

Segundo o Público que tudo isto relata, os factos são os seguintes:

O homicídio conjugal recua ao dia 4 de Novembro de 2015 e contextualiza-se em poucos parágrafos. Maria, então com 55 anos, conhecera João (nome também fictício), 13 anos mais novo, em Novembro de 2014. Ela jardineira, ele trabalhador da construção civil no desemprego. Quando decidiram casar, em Janeiro de 2015, ficaram a viver na casa dela, em Valongo, na periferia do Porto.
No dia 23 de Setembro do mesmo ano, Maria obriga João a sair de casa. Houve discussões com direito a agressões físicas presenciadas pelos vizinhos. Datam dessa altura ameaças do género: “Tu não vais ter sossego, não te vou sair da porta, vou-te matar filha da puta”. Inconformado com a ruptura, João vigiava e controlava os movimentos da ainda mulher. Telefonava-lhe insistentemente. O medo de Maria levou-a a colocar trancas de madeira na janela.
 Para se proteger, no dia 29 de Setembro, Maria dirigiu-se aos serviços do MP de Valongo, onde apresentou uma queixa contra João. No auto de “apresentação de queixa”, analisado pela EARHVD, lê-se apenas “agressão e ameaças”. A análise aos procedimentos subsequentes mostrou que o passo seguinte foi um despacho, de 8 de Outubro, em que a magistrada mandava notificar Maria para que esta, num prazo de 10 dias, esclarecesse o teor da sua queixa. O que esta fez por escrito, alegando ter sido vítima de socos, empurrões e ameaças do tipo “rebento-te a cabeça se fizeres queixa de mim”. No dia 26 de Outubro, a magistrada ordena nova inquirição a Maria capaz de ajudar o tribunal a avaliar se estavam “perante um crime de violência doméstica” susceptível de justificar o accionamento do estatuto de vítima.

Esta nova inquirição ficou marcada para o dia 4 de Novembro, às 14h00. Maria voltou a descrever os diferentes episódios de violência. Ainda assim, saiu do tribunal sem que lhe fosse atribuído o estatuto de vítima. Do mesmo modo, não foi feita qualquer avaliação de risco nem equacionada a aplicação das respectivas medidas de protecção.
No dia seguinte, 5 de Novembro, a magistrada emitiu um despacho em que pedia que, “em data disponível em agenda”, se procedesse à constituição de João como arguido, “seguida de interrogatório e sujeição a termo de identidade e residência”. Não sabia a magistrada que, nessa altura, Maria jazia morta. Na tarde do dia 4, João dirigira-se a casa de Maria e escondeu-se no quintal até que esta voltou do tribunal. Quando Maria se encaminhava para a porta da cozinha, desferiu-lhe uma pancada na cabeça com um pau. E outra e mais outra, até que a mulher caiu inanimada no chão do quintal. Depois, arrastou-a para o interior da residência e saiu, fechando a porta à chave.

Antes do mais importa saber, porque ainda não se disse em concreto e publicamente, que diligências de protecção são essas que foram omitidas.
Afinal, como é que o MºPº e as polícias actuam agora nos casos de violência doméstica, cada vez mais mortíferos? Porque será que os tais especialistas não tentam descobrir as verdadeiras razões que lhes subjazem e que podem ir muito além do não cumprimento da lei?
Estes especialistas são apenas conhecedores da lei mas a realidade pode ter a ver com outros fenómenos em que a lei pode até ser a responsável, paradoxalmente,  pelo que acontece. Mesmo que isto assim não sejam, alguém já equacionou tal hipótese ou nunca lhes ocorreu?

Assim, logo que uma mulher ( são sempre mulheres, nestes casos...) se apresenta a fazer queixa do marido, companheiro, namorado ( será que o conceito do STJ, aqui há tempos aflorado, também se aplica nestes casos?) o que deve fazer o MºPº ou o polícia que tomar conta do caso em primeiro lugar? Escrever o auto e preencher um papel em que se normativizaram umas perguntas avulsas a modo de "manual de boas práticas".

Foi esse preenchimento do tal papel e a ausência de medidas concretas que sinalizassem o agressor como perigoso que foi fatal para aquele desfecho? Não só é arriscado dizer isso como se pode dizer que é apenas estulto e um magistrado do MºPº ou qualquer pessoa de senso não o deveria fazer só porque lhe parece politicamente correcto e maria vai com as outras.

Se o jornalismo de pacotilha que temos o faz é outro problema, mas pode analisar-se o assunto em termos sumários:

Uma das perguntas que consta do tal papel normativizado e que é do conhecimento dos actuais núcleos de investigação criminal das polícias que tratam agora, de alguns anos a esta parte, destes assuntos a tempo inteiro e exclusivamente ( os NIAV- núcleo de investigação de apoio à vítima- e outros acrónimos similares que o jacobinismo inventa) é sobre o grau de perigosidade das ameaças se foram recebidas. Pergunta-se concretamente se a vítima foi ameaçada de morte e o colector da informação coloca uma cruzinha no "sim" ou no "não". É assim mesmo: uma cruzinha, sem  mais. para além disso e logo a seguir a tais cruzinhas fatais, aparece a questão da seriedade da ameaça de morte. Sim ou não e se lhe parece que foi séria ou não se haverá receio ou probabilidade de repetição. A vítima responde outra vez, sim ou não e o recolector de informações traça a cruzinha no sítio certo.

É nisto essencialmente que  consiste a informação acerca da eventual perigosidade do agressor: cruzinhas em papéis normativizados. Parece que foi isto que faltou fazer no tal caso de Valongo.

Depois, claro, o magistrado/a tem que avaliar o grau de perigosidade e se o agressor se afigura como letal ou não.
 E como é que vai avaliar? Com psicólogos e assistentes sociais? Pois sim...avalia a olho e segundo a sua sensibilidade e experiência, após a audição da vítima ou mesmo sem ela, por se revelar urgente a "participação" assim recebida das polícias que andam no terreno e que são quem mais sabe em concreto dos casos concretos.
Muitos dos agentes policiais nem escrever correctamente sabem e a experiência que denotam nestes casos não ultrapassa a dos meros transeuntes com um módico de sensibilidade e bom senso, quando muito.
Portanto é uma lotaria o que se vai passar a seguir, nestes casos. Quando corre mal, como neste caso, uma vez que falhou a tal burocracia do procedimento do papel sinalizador, já está: "o risco foi subestimado e as diligências débeis e pouco adequadas." O inspector que vier a seguir nada mais dirá do que isso...e a consequência para o magistrado é um processo disciplinar, acompanhado de palmas desta canalha mediática.

Mas afinal o que poderia ser feito em concreto no caso de o magistrado ter acreditado, por ter informações credíveis ou suficientemente claras, de que afinal o agressor era mesmo perigoso e susceptível de se tornar um assassino?

Uma coisa: prender imediatamente o agressor, para o meter na cadeia após audição por um juiz de instrução. Este, apenas com estes elementos dificilmente aceitaria tal proposta, mas enfim, há outro procedimento milagroso que parece também não foi seguido segundo o que manda a tal lei da sapatilha:

Conceder o tal estatuto de vítima à dita cuja e dar-lhe um dispositivo portátil que tem uma virtualidade: logo que pressinta uma agressão iminente carrega num botão e as autoridades são avisadas, podendo então socorrê-la imediatamente. Se estiverem por perto e tiverem tempo para isso...

Salvará isto alguém de uma morte nos modos como esta aconteceu? Vejamos o que diz o Público:

Na tarde do dia 4, João dirigira-se a casa de Maria e escondeu-se no quintal até que esta voltou do tribunal. Quando Maria se encaminhava para a porta da cozinha, desferiu-lhe uma pancada na cabeça com um pau. E outra e mais outra, até que a mulher caiu inanimada no chão do quintal. Depois, arrastou-a para o interior da residência e saiu, fechando a porta à chave.

Resta então perguntar: de que serviria o tal dispositivo portátil num caso destes? De nada, efectivamente de nada. 

Este jornalismo de pacotilha, em vez de andar a escrever inanidades porque é que não se interroga sobre o real efeito deste género de medidas, na mentalidade de um agressor?

Algum psicólogo respeitado e não apenas um daqueles encartado nos isctes ou similares, se pronunciou a sério sobre o efeito deletério que estas medidas legais e institucionais podem ter na mente de um agressor que se sente desse modo encurralado?

Alguém já reflectiu a sério nas estatísticas sobre vítimas mortais de violência doméstica nos últimos anos em que estas magníficas medidas gizadas por aqueles génios estão em execução prática e nos demais em que ainda não existiam estas medidas salvíficas? Há vinte anos havia tanta violência doméstica com estas taxas de mortalidade, acompanhadas em muitos casos pelo suicídio do agressor?

Alguém explica porquê? Alguém já reflectiu a sério na problemática dos mitos de eros e tanatos? Os psicólogos que têm a dizer sobre isto?

A violência doméstica é um problema tão antigo como o mundo. Não foi agora que se descobriu a pólvora da sua solução, mas provavelmente descobriu-se o modo mais rápido de conduzir à morte uma vítima que afinal poderia não morrer naqueles modos que ultimamente acontecem.

Como os alemães são lestos a pensar nestes assuntos que diz  o pensamento mais recente deles, sobre isto?

Questuber! Mais um escândalo!