domingo, abril 24, 2022

Os festivais da canção e a música popular em 1972

 Como disse no postal anterior, este cartoon de João Abel Manta, publicado no Diário de Lisboa de 11 de Novembro de 1972 tem um contexto que não se torna evidente. 

Ao representar o símbolo nacional associou-lhe uma pose de um estilo musical que na época se tornara maldito para a esquerda social-comunista. 

É uma figura masculina com cabelo em poupa, olhos de coruja e dentadura branqueada, a cantar alegadamente num "festival" nacional. 

Na época de 1972 quando se falava em festival, a referência única era ao festival anual da canção da RTP, nesse ano já na  nona edição. 

Curiosamente não aparecia lá, no festival da RTP,  nenhum dos ditos cantores de poupa no cabelo e dentadura branqueada pelo que o equívoco começava logo aí. 

A referência remetia-se por isso e para quem sabia,  aos cantores apodados de intérpretes do nacional-cançonetismo e acantonados por essa clique de esquerda social-comunista a certos intérpretes cujo símbolo se poderia encontrar em António Calvário ou Gabriel Cardoso, ambos cultores da poupa em pose, das letras delicodoces e das melodias ainda mais melosas que deliquescentes. 

Apesar de venderem mais discos que os autores das cançonetas de intervenção, eram escorraçados do meio artístico e cultural por serem apenas artistas da música popular, sem pretensões a mudar o mundo mesmo que fosse o pequeno mundo português da época. E, pior dos pecados e razão última da ostracização, não estavam comprometidos politicamente com a esquerda. 

Tais cantores que se estendiam no estilo a outros géneros, incluindo o popular de um Trio Boreal, Trio Odemira, Conjunto António Mafra, Conjunto Maria Albertina e muitos outros como uma Corina ou certos fadistas com expressão em teatro de revista e afins, não tinham divulgação mediática na imprensa da época. Encontravam eco no rádio e em "discos pedidos" de ocasião e eram desprezados pela elite intelectual que apreciava outros intérpretes e outras músicas. 

Havia ainda outro género de música, influenciado pelos ritmos anglo-saxónicos, no tempo do "ié-ié" da primeira metade da década de sessenta,  mas de que aqui não se cura e se exprimia nos Sheiks ou nos Claves e outros.  

O poster de João Abel Manta tem esse contexto que não aparece evidente. 

Tais autores e intérpretes encontravam público em festivais alternativos realizados em cidades de "província" como a Guarda ou Figueira da Foz. A tv não lhe ligava e se apareciam notícias sobre os mesmos talvez fosse na Plateia ou na Crónica Feminina. Para o resto nem existiam.

Na edição de 31 de Julho de 1971 da revista R&T dava-se conta do que significavam tais festivais para a imprensa corrente, mesmo sem pretensões intelectuais de esquerda típica:


Os intérpretes malditos eram por exemplo estes, como se mostra na edição da R&T de 17 de Julho de 1971, com a figura de Gabriel Cardoso ( com as figuras femininas retocadas por uma irmã minha...):



E na edição de 13 de Março de 1970, com António Calvário em caricatura:


Este tipo de música e intérpretes foram ignorados, no mínimo, pelos cultores da intelectualidade musical que apreciavam os cantores de intervenção que apareceram nos anos sessenta particularmente depois da segunda metade da década e prolongaram a experiência até depois do golpe de 25 de Abril de 1974.

Um dos intérpretes que se situava no mesmo campo e igualmente proscrito mas em vias de ser recuperado era este, que cantava um êxito da altura ( 1971)- A minha cidade (Ó Elvas).  


Paco Bandeira participou em 1972 num desses festivais marginais e também no festival da canção da RTP que já ia na nona edição e eventualmente inspirou o poster de JAM.

Na transição deste tipo de música festivaleira para a outra, de intervenção, encontra-se este músico que apesar de não ser suficientemente culto para a erudita era bastante erudito para a ligeira, de festival. Tal como o mesmo refere na R&T de 31.7.1971

Portanto, os "reis da rádio" eram outros, precisamente os malditos do "nacional-cançonetismo", termo espúrio e preconceituoso cuja origem se conta a seguir. 

O termo surgiu pela pena de um dos social-comunistas que preponderava no rádio da época, João Paulo Guerra, tal como se conta no livro de Setembro de 2000, Cantores de Abril de Eduardo Raposo.

O suplemento A Mosca do Diário de Lisboa, a partir de 1969, foi o veículo onde apareceu o termo que pretendia significar o tipo de música que não incomodava o sistema, por oposição à música de intervenção. 


 


Em finais de 1971 a revista Mundo da Canção em editorial dava o mote e a nota e afinava o diapasão do politicamente correcto da época para o ambiente mediático que era dominado pelo social-comunismo, a saber os jornais Diário de Lisboa e o República e a revista Mundo da Canção, por exemplo. 

Este é o contexto que explica o surgimento do poster de João Abel Manta, a que se junta o outro que agora se convoca para completar o retrato da época:

Em 1972 o ambiente social e político, tal como contado pela esquerda social-comunista, actualmente, seria um universo concentracionário  e totalitário do fassismo, não já de Salazar, morto e enterrado dois anos antes, mas do novo Estado Social de Marcello Caetano, que aqueles associavam e continuam a associar ao regime de Salazar e da repressão fundamental das liberdades cívicas. 

Vejamos então como Marcello Caetano explicou tal ambiente no seu livro Depoimento, publicado em Agosto de 1974, para se defender das acusações e caricaturas, como as de JAManta.



Nada do que Marcello Caetano diz releva para o contexto necessário à compreensão do tempo porque a história agora é contada do ponto de vista do social-comunismo que aquele combatia, pelas razões apontadas. Ninguém se interessa, actualmente, pelo que Marcello Caetano dizia do social-comunismo e do que explicava sobre o seu próprio regime. O seu livro Depoimento nem em alfarrabistas se encontra, actualmente, o que é um sintoma de saúde democrática, pelos vistos. 

Assim, em Fevereiro de 1972, o festival da RTP tinha outro contorno que é necessário rememorar para se compreender o significado do cartaz.

A revista Observador de 25 de Fevereiro de 1972 mostrava o lado normal, desprovido de ideologia ou de enviesamento esquerdista que se observa noutras publicações, como o Mundo da Canção. 





A revista Flama na semana anterior dava conta do que seria e também em modo normal, como toda a  gente via o festival. A figura da capa é o tio do actual director do Sol ( nascer do dito):





A R&T de 19.2.1972 idem:





Quem é que destoava e porquê? A Mundo da Canção...na edição de 20.12.1971:



Porque é que isto acontece e o tal Tito Lívio escreve com aguarrás e vitríolo contra a música popular que mais se vendia e apreciava no rádio? Vem lá tudo explicado: foram rejeitadas canções de certos artistas afectos ao social-comunismo em prol de outros que nada tinham a ver com tal. Essa, uma das razões. A outra, ideológica pura: o festival associava-se assim ao nacional-cançonetismo caricaturado por João Abel Manta...porque não era suficientemente contestatário do regime. Enfim.

Em Outubro desse ano, a mesma revista e o mesmo crítico malhavam forte e feito em...José Cid. O pobre atreveu-se a escrever e cantar uma canção que intitulou Camarada e não lhe deu o sentido de um Jean Ferrat. Sacrilégio! A canção, aliás melodicamente interessante, é relegada para o entulho "reaccionário"! E Paulo de Carvalho leva por tabela, por se ter...internacionalizado para Espanha!



E quem é que merecia encómios? Ora...por exemplo um Cantigueiro, na edição de Novembro desse ano:


É neste contexto que em 1972 aparecem dois discos que se enquadram no sistema ideológico social-comunista e por isso foram incensados, até hoje. 

São estes e amanhã se escreverá sobre os mesmos:




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Megaprocessos...quem os quer?