sábado, abril 16, 2022

Dos benefícios dum disco usado no reino dos discos novos

 A propósito das reedições dos dois primeiros discos da Banda do Casaco andei a procurar informação sobre o grupo e a sua obra dos anos setenta, ou seja os quatro discos que então publicou. 

Para além daqueles dois primeiros, já aqui mostrados, sobre o canto livre dessa banda,  há mais dois que se tornam igualmente míticos, pela sua raridade e aparente desinteresse do público consumidor de música popular. 

Estes:

Os discos da Banda do Casaco foram editados em relativamente pequenas quantidades. Segundo António Pinho, o principal mentor da banda, juntamente com Nuno Rodrigues, o primeiro disco do grupo vendeu quatro mil exemplares e o segundo quase o dobro. Os discos, nas suas versões originais, esgotaram e a oferta em segunda mão nos sítios de leilões é reduzida, o que os torna em discos muito procurados pelos que apreciam a banda e não tinham comprado os originais em vinil. Assim, o primeiro disco atinge já centenas de euros nos sítios onde podem ser comprados. 

As reedições em cd suprem algumas limitações para a audição do som do grupo, em vez dos originais em condições acústicas mais aperfeiçoadas, sendo possível escutar em ficheiros digitais, na internet (you tube). Não obstante, quem quiser apreciar a beleza do som original em vinil, inultrapassável em qualidade, até hoje, tem que ouvir os lp´s originais. 

A recente reedição dos dois primeiros discos permite comparar o som das diversas versões, com a original, para quem tiver os discos que saíram em 1975 e 1976.

aqui se mencionaram diferenças, embora de modo sumário. Por isso vale a pena elaborar mais um pouco, designadamente a propósito do primeiro lp da banda, provavelmente o mais marcante em termos de memória, para mim, agora que consegui encontrar um em versão original, de 1974-75 ( foi gravado no final de 74 e lançado nos primeiros meses de 1975). 

Tirando a edição de 1982, incluída no duplo A Arte da Banda do Casaco, que incluía ainda o segundo disco, publicada em 1982,  a única reedição de tal lp ocorreu agora, em 2022, pela Universal que representa a  Philips/Phonogram/Polygram que eram as anteriores detentoras das fitas originais. Segundo informação da Universal, não divulgada publicamente, a reedição actual foi realizada a partir das fitas originais, analógicas e a capa obedeceu a uma reprodução da original por digitalização da mesma.

Não obstante, subsistem diferenças. O aspecto da capa e rótulos de ambas as edições é este, com destaque para a primeira edição, à direita, na imagem. 



E já agora, o rótulo da edição de 1982  de A Arte e a música da Banda do Casaco, duplo que contém os dois primeiros discos. A editora já era Polygram, desde 1978 e portanto dá a entender que se trata de nova prensagem por conta dessa metamorfose da Philips/Phonogram de 1974:


A nova edição lava mais branco que a primeira, já um pouco amarelecida pelo tempo mas originalmente deveria ter uma cor mais em tonalidade "mate". A cor do filete colorido que contorna o nome do grupo é ligeiramente diferente na versão original, um pouco mais turquesa que a actual reedição, quase em azul. A capa original desdobra-se em sentido vertical, enquanto a actual abre na horizontal, como acontece com os lp´s mais vulgares.

A capa interior também sofreu modificações na composição das letras e foto, como se pode ver, pela original:

E na reedição actual, com a imagem mais comprimida devido ao espaçamento mais largo dos textos. 


E quanto ao som das várias ( três) versões em vinil, deste disco? É semelhante em todas, com pequena diferenciação, audível com atenção, particularmente na reprodução de alguns sons mais "secos", como as batidas de percussão inicial que no disco original ganham um pouco mais de amplitude e reverberação das peles que repercutem. Ganham mais "ar" na reprodução e por isso não tenho dúvida em classificar o som do lp original como o melhor dos três. 
A seguir hesito entre a nova versão e a de 1982,embora possa supor que esta será a do mesmo disco, noutra prensagem tirada da fita original e passados ainda poucos anos da primeira. Uma reimpressão, portanto. 
A versão actual, de 2022, apesar de não ter tal informação, pode muito bem ser derivada de gravação digital da fita analógica original. Uma "remasterização", como se diz agora em neologismo de "remastered", com pequenas alterações de frequências manipuladas digitalmente em programas apropriados a tal efeito. 
A tecnologia actual permite alguns milagres que dantes não eram possíveis, como acontece com as novas versões de discos de Frank Zappa,  igualmente editados nos anos setenta e que têm vindo a ser reeditados na etiqueta que a família do compositor falecido em 1993, controla. Os discos dos Beatles, também reeditados têm sido submetidos ao mesmo tratamento. O som dos novos discos aparece mais "limpo" e mais dinamizado, por vezes com relevo conferido a frequências baixas e mais "cheio" mas nem por isso melhor ou preferível ao original. 
Aliás, a música da Banda do Casaco, com todas as distâncias estilísticas, lembra-me a de Zappa porque foge dos acordes evidentes, da instrumentação mais rotineira e da temática com letras diferentes do que se ouve na generalidade. Não conheço nenhum letrista português com o talento de António Pinho, no uso de palavras e junção de frases engraçadas e significativas. 
A Banda do Casaco, musicalmente parece-me algo que ganha com audições sucessivas, descobrindo-se sonoridades escondidas e surpreendentes, não fatigando o ouvinte como uma boa parte da música popular portuguesa da mesma época. 
A música de José Afonso, Fausto ou Sérgio Godinho, apesar da qualidade é melodicamente previsível e harmoniosamente similar, com temáticas parecidas e panfletos políticos pelo meio. A da Banda do Casaco diferencia-se dessa em todos os aspectos, particularmente nas letras quando apelam a um certo realismo fantástico, de um folclore esquecido. 
As letras do primeiro disco representam-se iconicamente nos desenhos da capa, da autoria de Carlos Zíngaro que também toca rabeca no disco, feito Jean Luc Ponty de circunstância e sem referências a King Kong mas com eflúvios sonoros dissonantes e demoníacos de um sincretismo misturado com o mito de Fausto. O conceito do disco parte de personagem que vendeu a alma ao diabo e desenvolve-se nas desventuras de tal ocorrência, com custos pesados para a "senhora dona", incluindo a perda de um braço que passa a ser de Prata. 
Em termos de crítica social são mais contundentes que as dos discos daqueles autores de extrema-esquerda e cujos temas cantados se centram muitas vezes no folclore marxista-leninista.  
As letras dos Benefícios dum vendido, apontam a uma certa cripto-burguesia anterior a 25 de Abril de 1974, vinda das berças do campo,  corrupta, mistificada e caricatural, feita de novos-ricos, casados com um tipo de mulher  que "por um triz não se diz ser meretriz". " E merecia"...e que vão à Boca do Inferno apresentar um futuro trágico aos filhos, em pagamento de promessa faustiana. O retrato do pato bravo e chico-esperto, tornado comendador e industrial em letra de forma e música sofisticada. É também um retrato aprimorado de um certo ambiente do desenvolvimento económico do início dos anos setenta e que apresentava taxas acima dos 6% a contrastar com a tradição que vinha da memória de um povo. Retrato melhor desse tempo, em letra de canções, não conheço. Os cantores abrileiros nem cheiravam esta temática porque a reduziam ao capitalismo de chapéu de coco e charuto fumegante, com músicas de baladeiros. Aqui, na letra deste disco, a trilogia "Deus, Pátria e Família" é colada aos comendadores e industriais promovidos pelo sistema e ligados ao boom da pato-bravice e desenvolvimento económico acelerado, sem grandes princípios para além do dilema de "enriquecer ou Henrique ser ".
O que se sente ao ouvir estas letras é o mesmo que se experimenta ao ler a revista Observador que saiu a partir de 1971 e durou até 1974, constituindo a meu ver o retrato mais aperfeiçoado de um país em desenvolvimento marcelista e que já tinha pouco a ver com o país rural do salazarismo, tal como o apresentam os esquerdistas da actualidade, do género Pacheco Pereira. 
Esse país, muito real para quem se lembra, desapareceu das memórias colectivas por obra e graça dessa esquerda mentalmente retardada pelo marxismo estúpido que impede de a ver, afeito aos mesmos esquemas mentais com décadas de atraso e já fossilizados. 
A violência inerente nas letras deste primeiro disco, reflectindo tais fenómenos esquecidos,  é inaudita e dissolve-se em melodias acompanhadas a instrumentos de corda e percussões várias, com laivos de instrumentação electrónica ainda muito esparsa e reminiscentes de sonoridades jazzísticas ou vagamente folclóricas. 
São uma pedrada ao conformismo da época, em que se via "televisão com o Vitorino", o programa de tv, muito célebre então, do compositor António Victorino d´Almeida, aqui apresentado como consentâneo com o "sistema" e reflectindo também a crítica cultural cujo nível se pretendia um pouco mais sofisticado e diverso do que esse, aliás julgado na época como o nec plus ultra da cultura erudita popularizada, uma contradição nos próprios termos. 

Dificilmente se encontra um retrato mais perfeito da época, concentrado em poucas letras e simbolismos,  em obras culturais, incluindo livros ou estudos de sociólogos de agora. E parece existir uma razão para tal: a compreensão deste fenómeno, tal como apresentado nestes textos do disco, resultaria numa pequena revolução cultural e no afastamento definitivo da narrativa serôdia e falsa do esquerdismo ambiente, exemplificada pelo lamentável Pacheco Pereira. 

É por isso que este disco é importante, ainda hoje. Como bónus tem a música, para mim excepcional, de Nuno Rodrigues, com inúmeras citações de outras obras da música erudita, popular e folclórica, incluindo incursões jazzísticas e de música de outras paragens, como o Brasil de um Hermeto Pascoal ( a introdução do lado dois, com Lavados, Lavados sim, por exemplo) ou certos trechos instrumentais que lembram Gentle Giant ou mesmo Frank Zappa, nas mudanças inopinadas da instrumentação e vocais. 

Por estas e outras razões, Dos Benefícios dum Vendido no Reino dos Bonifácios, produzido em 1974 e publicado no início de 1975 é o disco de tal década, na música popular portuguesa e muito à frente de outros, mitificados embora mais gastos que este, como são os de José Afonso geralmente apontados como as luminárias da música popular de sempre. 

A única razão porque a bempensância intelectual que escreve em jornais os prefere tem única e exclusivamente a ver com a incompreensão daquele fenómeno e da época em que se produziu. .

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