segunda-feira, abril 25, 2022

A música de há 50 anos, arregimentada à esquerda.

 Fez agora 50 anos que apareceram meia dúzia de discos que foram verdadeiros marcos na mudança de estilo da música popular portuguesa apoiada pela esquerda. 

 Como se disse num postal anterior, a música popular de então estava dividida entre o "nacional-cançonetismo" que incluía os intérpretes mais populares e com maior divulgação no rádio e em discos, geralmente singles ou ep´s e os cantores que intervinham politicamente e protestavam contra o regime de então em músicas e discos incensados pela intelectualidade que escrevia em jornais e revistinhas de esquerda, como a única Mundo da Canção, claramente associada ao social-comunismo. 

Nesta última categoria estavam estes dois intérpretes que então lançaram os seus primeiros discos que também se tornaram referências da qualidade da música popular, porque "em terra de cegos quem tem um olho é rei". 

Ambos se encontravam no estrangeiro, das terras de França, fugidos ao regime e à tropa que os queria para combater no Ultramar e eles repudiavam. 

Eram social-comunistas e por isso fugiram ao degredo interno e ideológico, libertando-se numa terra alheia às que praticavam o regime que os mesmos pretendiam que fosse o de cá. Paradoxal? Nem por isso, apenas exemplo de contradição e incoerência. Em vez dos países socialistas escolheram um capitalista e onde podiam usufruir de vantagens económicas que naqueloutros nem vislumbrariam. Aí tinham liberdade de expressão para cantar os males do país e lamentarem que não fosse como aqueles para onde aliás não queriam ir e se fossem nunca teriam tal liberdade...

O primeiro desses intérpretes era José Mário Branco, já veterano das "terras de França" e onde lançou estes dois discos, o primeiro no final do ano de 1971 e o segundo já em 1972.

As letras de ambos os discos apelam claramente a uma revolta contra o medo do fassismo, do capitalismo e da "exploração do homem pelo homem". Portanto, um apelo marxista, comunista até. As músicas, orquestradas e de instrumentação muito simples, com umas percussões, uns sopros e uns laivos de guitarra eléctrica mais uns naipes de som acústico e "está a andar", sendo um dos discos emblemáticos desse tempo. 

As melodias são cativantes e ouviam-se muito nos tempos antes do golpe militar de 25 de Abril de 1974, em certos programas de rádio, em fm, particularmente do Rádio Clube Português e Rádio Renascença, os patrocinadores mediáticos do golpe em causa. 

Ambos são panfletos da política de esquerda que pretende combater a "burguesia" para a substituir pela classe da teoria combatente. Daí a "intervenção".  

Os segundos, gravados em 1971 e 1972,  no mesmo sítio que aqueles, no "Chateau d´Hérouville", antes de o local ser conhecido dos eltons johns. 

São os primeiros de Sérgio Godinho e  versam a mesmíssima temática, tendo até canções em comum, no mesmo estilo e instrumentação. Talvez os de José Mário Branco sejam um pouco mais elaborados e aperfeiçoados tecnicamente. 

Porém, deve dizer-se que em termos de som não são discos aperfeiçoados e deixam muito a desejar mesmo em termos relativos de tal época de início dos anos setenta. São medíocres em termos sonoros, tanto aqueles como estes:


A par destes e nessa mesma altura de 1971 e 1972 saíram mais dois discos com outra dimensão artística e mais contidos no panfleto ideológico, embora da mesma estirpe. Eram estes que passavam muito no rádio da época. 
O do colectivo da "Fala do homem nascido" , de 1972,  muito bem conseguido artisticamente, tinha temas suaves sobre uma pobre Luísa que subia a calçada ou o poema da malta das naus, do tempo das nossas descobertas. Cifradas, pretendiam o mesmo objectivo daqueles: minar cultural e ideologicamente o regime, como aliás conseguiram. 
O de Adriano, de Coimbra, saudoso do fado à beira da Sé velha, cantava em música de José Niza, um socialista vindouro, os desatinos de um senhor Morgado ou de um Alegre que se fez triste por combater Portugal na Argélia, sendo português e substituindo o país pelo regime. 


Sérgio Godinho, logo a seguir, em 1974, já no dealbar da Revolução que se seguiu ao golpe de 25 de Abril lançou outro disco, ainda mais panfletário e de intervenção directa, com letras da crueza de um "cão raivoso", ou "tem ratos", de "coração e raça" e finalizando numa ode ao "grande capital" que "está vivo em Portugal e quem não o combate é que dele faz parte", pois claro, tudo acompanhado por uma flauta de bisel e duas guitarras, sendo uma de baixo que não era preciso mais. 
A par desse e ainda mais raivoso e intervencionista apareceu na mesma altura outro disco, de Fausto e que tinha letras ainda mais panfletárias e explícitas contra o "sr.burguês" em que o cantor afiançava que da próxima "o paleio vai acabar; da próxima, raios nos partam, há-de ir de queixo a abanar pois nunca há duas sem três". Era a versão revolucionária do antigo "par de safanões" que estavam destinados a tais artistas se o tempo de Salazar se repetisse. 
Os discos eram estes e ouviam-se a horas mortas e bem vivas no tempo da Revolução do PREC, aliás com muito proveito musical porque têm grandes canções e melodias, com as tais letras incendiárias e de guerra civil. 
O de Sérgio Godinho já tinha sido preparado e gravado no Canadá e depois por cá;  o de Fausto fora em Madrid, "até 17 de Abril de 1974" o que denota bem o espírito que o animava, ainda antes do golpe:


Foi esta a banda sonora dos dois anos que antecederam o golpe que hoje se celebra com pompa e circunstância nas instituições nacionais, tendo sido estes e mais alguns, poucos, os artistas do tempo. Falta aqui mencionar o autor da Grândola, vila morena que em 1973 publicou o seu disco de referência desse tempo, "Venham mais cinco". E vieram. Foram mais de cinco mas eram menos de cinco mil na altura. Saíram de baixo das pedras, nem sei bem como nem porquê. 
É aliás essa a razão deste blog, além do mais: perceber como se multiplicaram da noite para o dia, estes intervencionistas revolucionários que nos definiram o futuro cultural dos últimos 50 anos.

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