sexta-feira, dezembro 16, 2022

E o resto são histórias...da carochinha.

 Newsletter de Rui Ramos no Observador:

Fazer de Salazar história e não apenas controvérsia política

Em 2022, é preciso ter mais de 70 anos de idade para ter sido adulto sob o governo de Salazar (1932-1968). A maioria da actual população portuguesa (58%) nasceu depois da morte de Salazar em 1970. A constituição de 1976 está em vigor há mais tempo (46 anos) do que durou a constituição de 1933 (41 anos). O Estado Novo, que acabou em 1974, é hoje tão remoto no tempo como era a Primeira República (1910-1926). Talvez seja chegado o momento de fazer de Salazar história, e não apenas controvérsia política. É o que vamos tentar fazer nesta nova série de newsletters, “Breve História do Salazarismo”. Para isso, convém começar por desfazer dois motivos de confusão acerca do regime salazarista: o que diz respeito ao atraso económico e social de Portugal e o que diz respeito à natureza ditatorial do regime.

O atraso

Salazar foi ditador de um país rural e pobre. E nas características desse país esteve sempre a maneira mais fácil de o despachar historicamente. Quem melhor do que o filho de “pobres” de Santa Comba Dão, ex-seminarista com sotaque provinciano, que quase não viajou para fora do país, que escrevia (muito bem, aliás) como um frade do século XVIII e levava a vida de um pároco rural do século XIX, com governanta, quintal e galinheiro – quem melhor do que ele, a quem Eduardo Lourenço, num texto da década de 1960, chamou “camponês letrado”, para corporizar o “atraso” e carregar a respectiva culpa?

Em 1984, Mário Soares jurou que, sem Salazar, Portugal se teria tornado no século XX “um país tão rico como a Suíça, com certeza mais desenvolvido do que a Holanda ou do que a Bélgica”. É mais do que duvidoso: em 1926, depois de 92 anos de liberalismo e de república, Portugal era o país mais pobre e menos instruído da Europa ocidental; em 2022, depois de 48 anos de democracia, continua a sê-lo.

De facto, se quisermos ser exactos, teremos de admitir que foi precisamente com Salazar que Portugal começou a ser menos pobre, menos analfabeto, mais europeu e menos arcaico – foi ele, por exemplo, quem deu às mulheres o direito de voto que a I República lhes recusara, e fez eleger as primeiras três deputadas em 1934. É verdade que mesmo alguns salazaristas se mostraram impacientes com a obsessão financeira de Salazar. No entanto, os seus orçamentos equilibrados e inflação baixa, se adiaram gratificações, pouparam os portugueses às crises fiscais e da balança de pagamentos que, antes dele e depois dele, destruíram riqueza e frustraram expectativas.

A partir da década de 1950 e até 1974, Portugal conheceu as taxas de crescimento económico mais altas da sua história – e também mais altas do que as dos outros países da Europa ocidental, o que permitiu à economia portuguesa convergir pela primeira vez desde o século XVIII com as economias da Europa ocidental. Por todo o país, barragens, estradas, pontes, escolas, e hospitais lembram ainda hoje o que deve ter sido o período de mais intensa construção de infraestruturas na história de Portugal até então.

A estrutura da economia portuguesa mudou. E não, Salazar não tratou apenas de conter as reivindicações dos trabalhadores e favorecer alguns empresários. Foram os seus governos que estabeleceram os primeiros sistemas de protecção social efectivos e que conseguiram escolarizar pela primeira vez uma geração inteira. O Estado Social em Portugal foi salazarista antes de ser democrático. Tal como a integração atlântica e europeia, começada com as adesões à OECE (1948), à NATO (1949) e à EFTA (1960). Sem estes sucessos, aliás, a ditadura de Salazar não teria durado.

É verdade que, como todos os intelectuais formados no princípio do século XX, tanto à direita como à esquerda, Salazar permitiu-se, aqui e ali, a retórica bucólica e telúrica que fez o sucesso de escritores de esquerda como Aquilino Ribeiro ou Miguel Torga. Mas ninguém mais do que Salazar, na década de 1930, denunciou o “atraso” do país, o “provincianismo” e “mediocridade” dos portugueses, o seu apego excessivo a um  “passado heróico”, e até o “fatalismo doentio do Fado”. Anunciou então querer criar uma “mentalidade nova”. No fim da sua vida, em 1968, queixou-se a Franco Nogueira de que os sucessivos conflitos internacionais da sua época (a guerra civil de Espanha, a Segunda Guerra Mundial, e por fim a defesa das “províncias ultramarinas”) o impediram de governar como teria gostado: “nunca consegui aproveitar os nossos recursos somente em construir estradas, barragens, escolas”.

A ditadura

Quando comparamos a ditadura salazarista com as suas contemporâneas, quer na década de 1930, quer na década de 1960, a contabilidade repressiva é modesta. Não dispôs do “gulag” de Estaline, nem do “paredón” de fuzilamento de Fidel Castro. Nunca teve mais presos políticos do que a I República (2382 no ano de 1912), e no fim o Estado Novo tinha até muito menos (128) do que viria a haver nas prisões do PREC, em Novembro de 1975 (cerca de 1000).

Em que outro país da Europa, sob ditadura, um dos principais líderes de um movimento insurrecional clandestino teria sido levado à universidade pela polícia para ver aprovada – por professores que eram também políticos do regime – uma tese de licenciatura que não passava de um panfleto ideológico contra o regime? O caso passou-se com o jovem militante comunista Álvaro Cunhal em 1940. Nessa época, na Rússia comunista ou na Alemanha nazi, os inimigos do regime não eram normalmente postos diante de júris de exame, mas de pelotões de fuzilamento.

Mas não nos devemos enganar. A ditadura de que Salazar esteve à frente desde 1932, quando assumiu a chefia do Governo, foi mesmo uma ditadura, com censura à imprensa, livros proibidos, oposições vigiadas e perseguidas, tortura nas prisões, penas indefinidas e discriminações políticas no emprego. Nunca houve dúvidas de que podia ser implacável. Deixou morrer três dezenas de anarquistas e comunistas no campo prisional do Tarrafal, em Cabo Verde, entre 1936 e 1945. Perseguiu e exilou o bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes,  em 1958-1959. E pelo menos encobriu ou não investigou o assassinato do general Humberto Delgado por agentes da PIDE em 1965.

Salazar fazia ideia do que tudo isto significava. Quando o ministro dos Negócios Estrangeiros, a 27 de Abril de 1965, lhe comunicou a descoberta do cadáver de Delgado em Espanha, Salazar disse-lhe “em tom ciciado, como se alguém na sala nos pudesse ouvir”: “este assassínio é o tipo de coisas que pode desmantelar um regime”. Não o desmantelou, mas definiu-o.

Hoje pode por vezes parecer bizarro como a sociedade portuguesa se acomodou durante tanto tempo ao constrangimento da vida pública. Mas como Salazar explicou num discurso de 1945, “antes de nós e por dezenas de anos – reconhecemo-lo com tristeza – as ditaduras foram a forma corrente da vida política e vimo-las alternar-se ou suceder-se quase ininterruptamente, sob formas diversas”.

Salazar podia confiar em que os seus ouvintes se lembrassem do tempo em que, embora houvesse vários partidos, a rotação no poder só podia ser efectuada pelo Chefe de Estado (como sob a monarquia constitucional, antes de 1910) ou em que as oposições eram violentamente perseguidas (como durante o domínio do Partido Republicano, depois de 1910).

Nunca, antes de 1926, as eleições, envolvendo apenas eleitorados restritos e tutelados, haviam sido consideradas genuínas ou livres. O sectarismo violento da I República serviu durante décadas para relativizar a repressão salazarista. Sempre que alguém se queixava da polícia política, os salazaristas lembravam a polícia republicana que, em 1920, executava friamente anarquistas em Lisboa. Quando alguém lamentava a censura, evocavam as épocas de censura prévia, com as páginas dos jornais cheias de espaços em branco, e os célebres “empastelamentos” de jornais praticados pelos republicanos antes de 1926. Ou seja, a separação entre o Estado Novo e o regime seu antecessor não tinha, no que dizia respeito à liberdade política, a clareza da separação entre o Estado Novo e a actual democracia.

Aliás, durante a maior parte do regime salazarista também não foi claro que uma democracia como a de hoje fosse a alternativa. Numa exposição de 30 de Maio de 1944, o líder do Partido Comunista Português, Álvaro Cunhal, reconheceu que as oposições, se vencessem, não estavam em condições de garantir mais liberdade aos seus adversários. Mesmo no ano da morte de Salazar, em 1970, a maior parte do mundo vivia sujeita a autocracias mais ou menos violentas, a começar pela vizinha Espanha. E, claro, na Europa de leste, as tiranias comunistas continuavam a esforçar-se por provar que a democracia e a liberdade não eram o futuro do mundo.

Em nenhum momento, apesar de alguma pressão ocasional, Salazar se sentiu à frente de um Estado pária. Na década de 1950, foi visitado em Lisboa e tirou fotos com a rainha Isabel II de Inglaterra, com o presidente Eisenhower dos Estados Unidos da América e até com dois dos grande símbolos da resistência contra o colonialismo europeu: o negus Haile Selassie da Etiópia e o presidente Sukarno da Indonésia. O Estado Novo português integrou a NATO em 1949, a ONU em 1955 e a EFTA em 1960, e pôde até, sempre com censura à imprensa e sem partidos políticos, concluir um acordo comercial com a CEE em 1972.

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