Considero uma sorte alguém ter nascido na década de cinquenta porque ainda deu tempo de ouvir em primeira mão, a música popular do estilo rock que surgiu nessa década, e depois desenvolvida e tocada pelos herdeiros directos da mesma, nos anos sessenta e setenta do séc. XX.
O que os Beatles, Rolling Stones, Byrds e outros Doors tocavam nos anos sessenta já era uma repetição desse passado mas ainda soava a fresco para quem ouvia tal sonoridade pela primeira vez.
Nos anos setenta replicaram-se outra vez as receitas mas em modo mais sofisticado pelo avanço tecnológico que dava a impressão de ser tudo novo e foi nesse tempo que ouvi o passado, o presente e depois o futuro desse género de música popular. Em tempo real e à medida que as novidades apareciam.
Quem já tinha ouvido os Pink Floyd ou os Mothers of Invention sentia que havia novidade do ar desse tempo e outros grupos e artistas foram aparecendo, formando nova onda sonora um pouco mais progressiva do que a batida de sempre, procurando sons inauditos.
Em meados dos setenta provavelmente estava tudo dito e escrito na música popular, o que permitia a alguns cantar e dizer que o rock já tinha morrido, como por exemplo os The Who, em 1972 e com um single divulgado por cá em 1975, tirado do disco Odds and Sodds passado muitas vezes no programa Página Um em Janeiro desse ano.
Cantavam Rock is Dead-Long Live Rock. Estivesse morto ou vivo, para mim era igual porque o ouvia pela primeira vez e nessa altura, com a minha Messa recém-adquirida e ainda a tentar aprender a teclar com os dez dedos, apontava minuciosamente tudo o que me interessava e era então divulgado.
Por mim, em 1975, o rock estava mais vivo que nunca porque foi nessa altura que ia descobrindo o som de novos discos e novos grupos, a par dos antigos que nunca tinha ouvido, geralmente por via de programas de rádio, alguns deles a passarem discos inteiros e sem interrupção, com uma qualidade sonora assinalável em função dos gira-discos existentes nas emissoras.
Foi essa música e esses sons que se tornaram em qualidade vintage, tal como os bons vinhos que melhoram com a idade, em reserva.
Nesse ano de 1975 saíram alguns discos desse género e destaco três deles. O primeiro é de Kevin Ayers, um artista inglês, cultor de um rock mais evoluído que o saído directamente dos blues e cujo nome e música ouvi nessa altura porque havia em Portugal, no rádio da época quem gostasse desse tipo de música que mais tarde se convencionou chamar progressiva.
O disco em causa, uma colectânea da etiqueta Harvest, reunia em 1975 estes dois primeiros discos do artista, saídos anos antes, em 1969 e 1970:
Estes dois discos, para mim, são fundamentais, da qualidade musical e sonora, do músico e da música popular que aprecio. São dois dos melhores discos de sempre da música rock, para mim.
Quando ouvi o tema May I, do disco Shooting at the moon, a introdução começa com o som do motor de um carro que se aproxima e passa e no final da canção passa outra vez a ronronar, idealizando-se um lugar de passagem e no caso um café, onde está sentada uma moça a quem o cantor pede espontaneamente licença para se sentar ao pé, a fim de a admirar, durante um momento apenas com a companhia do sorriso dela. Irresistível o tema e a música, de uma melodia encantadora e instrumentação original de sopros, piano e acordeão, além do mais, numa toada de cançoneta, com músicos britânicos originais e de qualidade superior.
Kevin Ayers tornou-se assim, para mim, um dos mais importantes artistas dos anos setenta e todos os discos dessa época são bons para ouvir, com destaque para as edições originais, como estas, com uma qualidade sonora superior a reedições ou cd´s avulsos que aliás também tenho porque nos anos oitenta foi mais fácil adquirir esta música em formato digitalizado do cd do que os albuns originais.
Na mesma altura em que descobri Kevin Ayers também ouvi outro inglês- Roy Harper, este divulgado pelo radialista Jaime Fernandes no seu programa Dois Pontos. Roy Harper tinha um timbre de voz a cantar que me agradou logo e quando em 1975 ouvi o disco desse ano, HQ, pela primeira vez, no programa de John Peel, Top Gear, no tema When an old crickter leaves the crease, estava conquistado para o artista e nem sabia o título do disco que na dicção de John Peel me parecia dizer "live deed"....fosse isso lá o que fosse.
Na altura as fontes de informação nacional sobre a música eram escassas e quase todas copiavam o que vinha lá de fora, dos países de língua inglesa ou da França, particularmente.
Ao reparar nisso comecei a comprar jornais e revistas estrangeiras de música, no ano de 1974, uma espécie de ano de revelação. O meu prec, aliás iniciado antes de Abril desse ano, foi esse, na música popular.
Primeiro foram os jornais ingleses, NME e Melody Maker; depois a Rock&Folk e finalmente, em Outubro de 1975, a Rolling Stone americana.
Durante cerca de uma década tais jornais e revistas foram a companhia alternativa aos discos que não tinha e mentalmente organizava como discoteca ideal, posteriormente foi reconstituída, com originais, usados por outros mas em bom estado.
Depois, foi a reconstituição do historial da música popular, desde o início dos cinquenta, organizado por tais publicações já nos anos noventa e depois disso, até agora, com edições especiais, em alguns casos reimpressões de críticas e recensões da época.
Em Julho de 1975 vi no quiosque esta capa do Melody Maker, com Roy Harper que já ouvira incidentalmente no rádio e ficara muito impressionado, possivelmente num programa de Jaime Fernandes, o grande divulgador do músico, em Portugal.
Comprei o jornal por causa disso, mas a notícia era apenas sobre o festival de Knebworth, com o breve relato da prestação de Roy Harper, com os Pink Floyd ( tinha participado na gravação do lp Wish you were here, o álbum que os mesmos lançaram esse ano e estavam também no festival. Há relatos no youtube acerca dessa prestação, aliás medíocre).
Assim, praticamente nem tinha informação sobre Roy Harper, a não ser o artigo da Rock & Folk, neste caso em Setembro de 1975, com a recensão do disco:
Quanto ao resto, bastava-me com as indicações de Jaime Fernandes que referiam discos anteriores que passava e me eram muito agradáveis de ouvir. Foi certamente por influência determinante de Jaime Fernandes que Roy Harper teve o prémio da crítica portuguesa em...1978, pelo disco de 1975, tal como referenciado na revista Música & Som de 15 de Abril de 1978 e que na altura li avidamente:
Tal como diz na entrevista, Jaime Fernandes preferia o disco Stormcock, de 1971 enquanto Roy Harper dava a preferência a Lifemask, de 1973.
Por mim já os tinha ouvido nessa altura e adorava ambos, como continuo a adorar, com melodias fantásticas e que cantarolei durante décadas. Talvez uma das canções mais cantaroladas por mim até seja
Commune, de
Valentine de 1974.
Porém há muitas outras nos discos que publicou em toda a década dos setenta:
Só por isto ficaria eternamente grato a Jaime Fernandes, falecido há uns anos e
aqui lembrado.
De resto havia outros apresentadores de rádio, nesse tempo dos setenta que contribuíam muito para o conhecimento musical de quem ouvia os seus programas.
Na Rádio Comercial havia um conjunto de programas incluídos num outro genérico chamado Espaço 3P e à noite, particularmente, passavam discos inteiros, como era o caso de um grupo que passei a conhecer em 1975 e se tornou um dos principais do meu interesse da época e de sempre: Van der Graaf Generator.
Em 1975 os VDGG publicaram Godbluff que começa lentamente com um instrumento de teclas ou de sopro e uma voz ciciada quase a cantar "here at the glass, all the usual problems, all the habitual farce" que ao ouvir me fazia correr para o gravador apanhando só a frase seguinte que começa com "you ask in uncertain voice" e depois se desenvolve por um longo poema que decorei de tanto o ouvir, com excepção daquela primeira frase que me escapou na gravação inicial. Tal tema, Undercover man, é assim outra canção que cantarolava ao longo de décadas e que permitia inflexões de voz cuja amplitude foi diminuindo ao longo dos anos, nos registos mais agudos. É certamente uma das canções que prefiro ouvir, desde sempre.
Quanto aos Van der Graaf Generator, foi em 1975 que passei a apreciar incondicionalmente a sua música e de tal modo que nesse ano, quando o lp Godbluff apareceu nos escaparates e uma amiga o comprou, pedi-lhe para me deixar fotocopiar as letras impressas no folheto interior do disco.
A folha ficou com o aspecto das fotocópias da época, ainda no início da sua vulgarização e com um papel quase vegetal e a cheirar a químicos logo que impresso. Deu para decorar Undercover man, mas não a primeira frase, curiosamente...
Em Julho de 1975, aguçado pela curiosidade acerca do grupo, antes ainda da saída daquele disco
Godbluff mas porque já ouvida qualquer coisa no rádio ou lera algures, na Rock & Folk, esta revista publicou um artigo sobre um concerto do grupo em Paris e que mencionava temas concretos dos seus discos, suscitou-me curiosidade o
Killer e outros temas
, mencionados e que nunca tinha ouvido.
A foto do concerto parecia-me fantástica e dentro dos padrões de qualidade que procurava ouvir na música rock, nessa altura. A página dupla tornou-se por algum tempo um mini-poster afixado na porta do quarto porque parecia música em suspenso do papel impresso. Basta olhar e imaginar os sons:
Em Dezembro de 1975 a revista francesa Best, concorrente da Rock & Folk e que não costumava comprar, a não ser alguns números pontuais, por me parecer redundante e menos interessante que esta, publicou umas páginas dedicadas ao grupo, com letras dos discos antigos que me suscitavam curiosidade e que nunca tinha ouvido.
A letra de Man-Erg, transcrita, começa por "killer" e por isso, à míngua de o ter ouvido, para mim o tema Killer estava identificado, mesmo sem o ter ouvido alguma vez.
A letra é uma pequena maravilha, ainda por cima. Mas não corresponde ao Killer e tal só descobri anos depois, ao ouvir os discos originais, ainda na versão em cd.
Os discos dos Van der Graaf da década de setenta são todos para coleccionar e ouvir regularmente, como aliás tenho feito ao longo dos anos, a tal ponto que hesito agora em indicar um disco preferido.
O tema
"Killer" aparece efectivamente no lp de 1970,
H to He who am the only one que ouvi seguramente apenas na segunda metade dos anos oitenta e tem melodia diferente daquele
Man-Erg que me delicia ouvir na dicção de Peter Hammil.
Reporta-se ao animal mortífero, o polvo que vive no fundo do mar, sem amigos e que ataca quem lhe aparece. Uma metáfora musicada e interessante: "então, vives no fundo do mar, matas tudo o que passa perto, mas estás muito sozinho porque os outros peixes têm medo de ti, embora procures companhia...".
Claro que só descobri isto anos mais tarde, mas a música era um regalo, mesmo sem entender o significado da letra.
Os discos dos VDGG estão repletos de pequenas pérolas sonoras e em 1976 lançaram o disco Still Life que devido ao mito que fui construindo se tornou um disco fetiche logo que apareceu no escaparate e fui escutando, primeiro no rádio e depois na gravação em cassete. Os temas eram todos interessantes e musicalmente apelativos.
Tinha visto a capa a preto e branco na Rock & Folk provavelmente já depois de o ter ouvido no rádio e como tinha uns auscultadores rudimentares, em plástico mas eficazes na concentração sonora, ouvia religiosamente o disco todo com o final apoteótico e majestoso, quase em transe.
Lera e relera o artigo sobre o disco, anotara as letras. Enfim, era um disco que queria ter mesmo sem ter gira-discos. O único que me suscitara tal interesse.
Poucos meses depois saiu outro disco, igualmente fantástico: World Record que ouviria também no rádio e tinha o tema Wondering que me parecia um hino, nessa longínqua e musicalmente sempre presenta Primavera de 1977. Foi também nessa altura que escutei um dos discos a solo de Peter Hammil, o compositor do grupo e que se dedicava a tal exercício separado, desde o início dos anos setenta: Nadir´s big Chance que ouvi repetidas vezes nesse ano e nunca mais esqueci.
E faltava ouvir os outros discos anteriores, incluindo alguns a solo que ia descobrindo ao passo das leituras da Rock & Folk, que me davam conta de o grupo ser um dos preferidos dos italianos. Prova? Por exemplo,
aqui, quarenta anos depois.
Os discos aqui mostrados são os originais, a partir de Pawn Hearts e com a imagem do primeiro- The Aerosol Grey Machine- que foi reeditado recentemente pois era edição original americana e tinha lido na Rock & Folk que era um disco mítico e que não se encontrava na Europa, nessa altura.
Por outro lado as reedições recentes ( 2021) de H to He who am the only one e The Least we can do is wave to each other, mais Pawn Hearts, são realmente fantásticas na fidelidade ao som original da época dos discos em vinil editado no início dos setenta pela Charisma no selo cor de rosa carregado e com rolo descentende ( "pink scroll").
Em 1977, a imagem do disco The Long Hello, aqui na edição francesa prolongou o mito desse disco instrumental que só ouvi nos anos dois mil. Na versão francesa...
Tudo começou em 1975...
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