quinta-feira, dezembro 15, 2022

Rui Patrício, o advogado da versão dos clientes

 A revista Sábado desta semana entrevistou Rui Patrício, advogado de entalados excelentíssimos, do escritório de Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados. 

Rui Patrício interveio na defesa de arguidos do processo Face Oculta, Vistos Gold e Operação Marquês e fala sobre a investigação criminal. 

A entrevista parece-me um misto de cinismo, desonestidade e interesseirismo privado, como se vai ver a seguir. É um compêndio do estado actual da advocacia de entalados excelentíssimos no processo penal e na particular área da corrupção. 






Logo no início a pergunta sobre a circunstância de o actual director da Judiciária ter apontado a circunstância de "alguns advogados fazerem terrorismo judiciário",  é respondida de um modo incrível: o causídico reconhece que sim, é verdade que alguns advogados assim actuam e que "existem situações de uso anómalo de garantias". Ou seja, exactamente o que disse o director da PJ que também exerceu advocacia e sabe do que fala. 
Pois bem: apesar de ter reconhecido o bem fundado da acusação, diz que se perturbou com tais declarações porque mostram "uma visão das coisas preocupante: ver o papel da defesa como terrorismo, manobras dilatórias". 
Foi isso que o director da PJ disse? Não e o entrevistado admite que o mesmo tem razão, extrapolando a seguir e imputando àquele a intenção que não está nas declarações prestadas. 

A seguir fala na essencialidade de fase de instrução no processo penal pela simples razão de a fase de inquérito ser "uma fase inquisitória". Fantástica afirmação para um dito reputado advogado penalista!
Então a fase de inquérito é "inquisitória", em Portugal? 
Vejamos em síntese o que é e significa tal coisa, recorrende a um dos inúmeros estudos actualmente disponível em rede, vindos da academia do Direito, neste caso da Univ Nova em 2017/2018:
 

E a caracterização do nosso modelo:


Torna-se claro que a facilidade com que um advogado destes pode dizer uma coisa destas, sem qualquer observação do entrevistador, classifica ambos como medíocres na prestação profissional.

Tal como se refere neste acórdão recente da Relação de Lisboa o processo penal português assegura constitucionalmente o direito a um processo justo e equitativo consagrada no artº 20º nºs 1 e 4 da CRP, com implicações práticas significativas. 

O que o advogado pretende dizer poderia ser melhor explicado se porventura dissesse que actualmente a prática processual penal tende a fazer maior recolha de prova à charge do que à décharge, na fase de inquérito, mas isso não autoriza de modo algum que se diga que o inquérito é uma fase inquisitória do processo penal. A lei impõe ao MºPº a investigação de um modo e de outro. Impõe, quer dizer que não deixa alternativa de não impor, embora por vezes pareça.
Não obstante, parece-me  uma enormidade e um disparate, aquele dito, tanto mais que no inquérito é possível a qualquer defesa de entalados usar os mesmos instrumentos e garantias de defesa que na instrução e ao longo dos anos, muito por influência destes advogados de entalados excelentíssimos a fase de inquérito tem abandonado traços que a aproximavam mais de um sistema inquisitório. 
Qualquer arguido entalado sabe desde o início quais são os factos que estão em jogo no processo e tal por ser obrigatório fazer constar em diversos documentos que lhe são obrigatoriamente facultados, como autos de constituição de arguido, busca e detenção etc.  
Quando chega ao fim do inquérito, a necessidade de instrução, aliás facultativa, é ponderada por estes advogados de entalados, como foi no caso do processo Marquês ou da EDP e outros: por simples estratégia processual da defesa, tendo em vista a possibilidade usar tal fase para entorpecer o andamento do mesmo que devido à natural complexidade pode ajudar a uma justiça formal mais conveniente e afinal arrastar os autos meses e anos a fio, como aliás acontece de facto com o referido processo. 
Parece-me ser esta, exclusivamente, a razão para se defender a instrução como essencial e como o advogado Patrício faz, o que revela, a meu ver,  uma desonestidade. 
 
Depois lá aparece a ideia sobre os problemas de funcionamento da justiça. Tradutores, peritos, para o advogado não é problema, há-os em barda! Bem, lá adianta que "por vezes é complicado", o que desmente ipso facto o que acabara de dizer, tal como no caso do comentário à afirmação do director da PJ.
De resto, funciona tudo bem melhor do que há uns anos atrás, apesar da "percepção" do cidadão médio perante o fenómeno, aliás veiculada pelos media. 
Quanto aos "megaprocessos" não vê necessidade dos mesmos e imputa a quem investiga a responsabilidade de tal fenómeno, porque "dá muito jeito em alguns casos fazê-lo", porque tal "facilita a prova". Como se tal fosse algo terrível, ilegal e desaconselhável! Facilitar a prova? Onde é que já se viu tal coisa, para quem defende arguidos entalados? Melhor seria ter a prova bem menos facilitada, de facto, afogando a verdade material num mar de pontos dispersos de prova avulsa. Uma chatice!  
E é aqui que bate o ponto, no que o advogado diz a seguir e é de maior gravidade. Afirma que a prova de um facto pode ser de padrão para outro facto similar, ficando numa prateleira para ser usada, no âmbito do mega-processo.
O advogado Patrício, não comenta o processo Marquês, segundo diz, mas passa as respostas seguintes a comentá-lo, em mais outro exercício de honestidade a toda a prova. 

O processo Marquês serve-lhe ainda para tecer críticas a quem confunde "investigação criminal com investigação histórica". Olha o desaforo! Então não é que os investigadores para tentarem perceber o que se passou no âmbito da corrupção no tempo dos governos Sócrates foram buscar as ligações entre os governantes, certas empresas e factos históricos, como a alienação da PT? Onde é que já se viu? E investigar o contexto histórico, onde é que já se tolerou uma coisa destas? 

Depois de ler esta entrevista fui procurar um livro dos anos trinta do século passado, de um advogado italiano Piero Calamandrei, sobre o relacionamento dos advogados com os tribunais e os juízes. 



Vale a pena colocar aqui algumas páginas da tradução portuguesa desse livro, da Clássica Editora, de 1994, sobre o particular relacionamento dos advogados com a verdade...e começa com uma frase interessante- a luta entre os advogados e a verdade é tão antiga como a disputa entre o Diabo e a água benta: 






No caso de Rui Patrício a verdade é sempre a versão dos seus clientes...pelo que o problema a equacionar tem outra questão, a da probidade, também apreciada por Calamadrei, em termos precisos: "tomando-se a probidade no sentido de que não deve nunca afirmar ao juiz uma coisa que sabe de ciência certa, ser contrária à verdade"!


É que isto já não contende com o processo penal e os seus princípios, mas é outra coisa. Aliás também mencionada por Calamandrei, noutro ponto:


"Entre todos os cargos judiciários, o mais difícil, segundo me parece, é o do Ministério Público. Este como sustentáculo da acusação, devia ser tão parcial como um advogado; como guarda inflexível da lei, devia ser tão imparcial como um juiz". 

É exactamente isto que penso das profissões judiciárias. E é sabedoria antiga...

Sem comentários:

Megaprocessos...quem os quer?