segunda-feira, janeiro 30, 2023

Tom Verlaine e o seu contexto

 A morte do guitarrista e compositor Tom Verlaine suscitou um interesse inaudito em certos media nacionais, com os obituários.

 No Observador, João Bonifácio desencantou uma introdução bizarra à história que contou acerca do falecido, com um putativo jogo de setas com Scott Walker, também já desaparecido. Não percebo onde foi buscar a inspiração nem o sentido da fábula. Não é Nick Kent quem quer. 

 O crítico escreve depois esta coisa extraordinária, sobre o disco Marquee Moon e Tom Verlaine: "Mas grande disco não chega para definir Marquee Moon, a obra de estreia dos Television, banda que Verlaine liderou e que por si só definiu todo o indie-rock que se seguiu e a forma de usar a guitarra elétrica no rock. E se duvidam da ideia perguntem-se: quantas pessoas no rock tocam hoje como Clapton ou Jeff Beck. Exato: nenhuma. Porque tentam todas tocar como Verlaine – e não conseguem."

E não poupa nos ditirambos ao disco saído em Fevereiro de 1977: " simultamente complexo e melódico, sofisticadíssimo e conhecedor do passado, revolucionário e cantarolável, improvisado e revisto até à obsessão, a obra de um perfeccionista".

Será que acha mesmo o estilo guitarrístico de Tom Verlaine fundamental para o futuro do rock, contado  a partir do ano de 1977 e desse disco em particular? 

Enfim, nem sequer vou perder tempo a rebater porque o fundamental é outra coisa que Bonifácio não menciona porque era novo para entender e a internet não ensina tudo. 

Aliás, esse "universo" não "começou nos Ramones e dois acordes". Começou muito antes e durou pouco tempo, depois disso. 

A vantagem de Bonifácio porém é inegável face à concorrência: é original na escrita, cita fontes onde vai saber os factos e não se limita a escrever como se fosse provido de inteligência artifical, como este artigo no Público de hoje, que poderia ter sido escrito por um robot:

Assim, o que aconteceu com Tom Verlaine em 1977 e a génese do disco Marquee Moon é que interessa saber e escrever porque foi um fenómeno circunscrito ao aparecimento do movimento punk/new wave, na segunda metade da década de setenta. 

Onde é que fui aprender tal coisa? Na imprensa estrangeira, claro. Da época, entenda-se. Por cá, não havia quem fosse ouvir in loco as novidades e um ou outro radialista, como António Sérgio, passava discos que recebia por vias paralelas. 

Era nesses programas de rádio, quase clandestinos e a horas mortas que passavam as novidades, aliás com muito atraso, como sempre aconteceu em Portugal. O resto lia-se na Rock & Folk, eventualmente na Rolling Stone e na Crawdaddy e talvez nos jornais semanais ingleses dedicados ao assunto musical como o Melody Maker e particularmente o NME que começou a passar a perna àquele decano e a escrever em modo inovador, com escribas como Nick Kent.   

Em 1976/77, quando me deliciava a ouvir New kid in town dos Eagles e outros Gentle Giant, Van der Graaf Generator ou mesmo Stevie Wonder, surgiram notícias nessa imprensa especializada de que esses sons eram estranhos à onda que surgia do outro lado do Atlântico, em clubes com acrónimos como CBGB e onde tocavam músicos e grupos que tinham gostado muito de ouvir os Velvet Underground de Lou Reed, no início dos anos setenta e estavam fartos de ouvir os Eagles que no ano anterior tinham publicado um Greatest Hits que rapidamente se tornou o disco mais vendido de sempre da música popular. 

A importância dos clubes de Nova Iorque neste género de música, vinha contada na Rock & Folk de Fevereiro de 1977, assim a propósito de discos com músicas dos grupos que por aí passavam:

Esses grupos que começaram a surgir na Inglaterra, com nomes como Stranglers ou Damned e mais tarde Sex Pistols; na América tinham também nomes estranhos como Père Ubu, New York Dolls, Dictators ou Heartbreakers e soube que  existiam por causa de artigos como este, publicado em Março de 1977 na Rock & Folk:


 


Foi aí que vi referido o nome Television e Tom Verlaine que era associado a Patti Smith que no ano anterior tinha publicado um belíssimo disco chamado Horses que aliás figurava no meu hit parade desse ano de 1976.

O autor do artigo, Philippe Manoeuvre era um crítico ainda  novo que sabia que se fartava de música popular e escrevia como ninguém que então conhecia. Em Portugal, foi nessa altura que surgia Miguel Esteves Cardoso a escrever sobre música pop em modo inovador e estilo próprio que se tornou único e intransmissível. Porém, não chegava ao núcleo de entendimento destes que lia com o proveito de ficar a conhecer o que não conhecia e na maior parte dos casos ainda nem sequer ouvira. Assim, esta escrita sobre música popular tornava-se em sucedâneo da "real thing" que afinal era a música propriamente dita que não chegava cá a tempo e horas e quando chegava era já muito filtrada. 

Não obstante foi possível ouvir no rádio as novidades do "punk" que vinham de Inglaterra, incluindo a "new wave" onde se inseria a música de Tom Verlaine e o seu primeiro e único disco relevante, Marquee Moon, saído em Fevereiro de 1977 nos EUA e por cá, meses depois disso. 

Philippe Manoeuvre tinha no entanto dois amores, título de uma canção de grande sucesso de Marco Paulo que só sairia dali a três anos, em 1980. 

Manoeuvre apreciava as novidades do punk vindo de Nova Iorque porque tinha acesso a tal ( vivia em Paris...)  e por isso escrevia com propriedade. Apreciava grupos como os Stooges ou MC5, cuja sonoridade nada me dizia, mas teve influência nos punks que surgiram depois. Manoeuvre apreciava a novidade de serem os novos grupos a marcarem o ritmo musical e mesmo comercial, porque eram quem produzia os próprios discos. Tal como outros, ainda mais blasés, Manoeuvre estava farto da música corrente de então e queria a novidade que o punk e a new wave trariam. 

No artigo, ao mencionar os dois principais membros dos Television do começo, Tom Verlaine e Richard Hell, ambos pseudonimizados com referências literatas a poetas e infortúnios, mostrava preferência notória pelo infernizado Richard que então publicou a sua magnum opus, "Blank Generation", com sucesso muito mitigado relativamente a Tom Verlaine. 

A história de ambos é contada por Manoeuvre que entrevistou o músico preferido em Dezembro de 1977, na Rock & Folk. Antes, em Abril desse ano fora publicada a recensão crítica ao disco Marquee Moon, com grandes encómios do crítico Alain Dister:




Hell explica como surgiu a Television e até como foi sugerido o nome ao amigo Tom que se passou a chamar Verlaine e que Manoeuvre desvaloriza por se tratar de poeta menor e insignificante.






Portanto quem foi mais importante para o surgimento da onda "punk" e "new wave" na segunda metade dos anos setenta nos EUA e particularmente no pequeno universo de dois clubes de música de Nova Iorque? A história há-de registar o nome de Tom Verlaine e outros, como Patti Smith que lhe deu emprego inicial, no grupo musical. Mas...foi assim? Segundo Manoeuvre, nem por isso.
 
Em Junho num artigo ditirâmbico escrevia sobre a história dos Television de Richard Hell e Tom Verlaine e o aparecimento de Marquee Moon:




Em Janeiro de 1978 o mesmo Manoeuvre escrevia um artigo sobre cinco grupos americanos e quatro ingleses...incluindo os Sex Pistols, Stranglers e Blondie, destacando-se a foto de Tom Verlaine e o disco que havia sido prognosticado como um sucesso, mas reconhecia o relativo fracasso porque o grupo nem sequer tinha um "hit" para se promover devidamente, sendo encarado como um grupo de intelectuais universitários  sem potencial para os auto-radios.  





Em Novembro de 1977 escrevia ( eehhhh... quer dizer, Claude Pupin é quem escrevia) sobre o disco de Richard Hell e não poupava nos adjectivos...comparando-o com o dos Television em modo muito  mais favorável. O verdadeiro revolucionário do punk era Hell e não Verlaine...



Aliás em Novembro de 1977 o New Musical Express também preferia Richard Hell...apesar de não lhe tecer os encómios dispensados por Manoeuvre:


Em  Maio de 1978, na recensão do segundo disco dos Television, Adventure, veio a estocada final, implacável. Até comparou um dos temas à música dos CSN&Y...



E na terra de origem como é que foi a recepção a Marquee Moon? 

A Crawdaddy de Abril de 1977:



 




A Rolling Stone de 7 de Abril de 1977:


No Reino Unido a recensão ao disco também foi entusiástica, principalmente no NME pelo crítico Nick Kent, um émulo ( no estilo de escrita) de Manoeuvre ou vice-versa. O jornal deu-lhe a capa e o artigo em 5 de Fevereiro de 1977. Provavelmente influenciou muitos críticos da época. Chegava ao ponto de comparar o disco com as obras-primas dos Byrds e de Bob Dylan...






Em 1985 o mesmo jornal considerava o disco um dos melhores de sempre da música popular:


E em 2012 repetiu a dose:




Por mim gosto do disco, tenho os dois e outros a solo, de Tom Verlaine. Não há dúvida que o único que vale mesmo a pena ouvir é o primeiro: 


Porém, gosto mais destes da mesma altura:


E o punk e new wave tem muito mais que se lhe diga e já em Agosto de 1977 se dizia:


E tal como em Fevereiro de 1978 o próprio NME escrevia, o grupo mais promissor de 1977 fora outro:

 
Ou estes, em Janeiro de 1978, particularmente Elvis Costello, cujo primeiro disco é semelhante ao dos Television, na minha opinião:


Ou então, este, de Brian Eno que foi aliás o primeiro produtor dos Television e cujo trabalho não chegou sequer a ser publicado por aparente falta de qualidade do material...


CODA:

A madrinha destes punks da classe média e da new wave de Nova Iorque, é Patti Smith, reconhecida como tal. Em Maio de 1976, a artista esteve em Paris, na sequência do sucesso de Horses, o disco de finais de 1975 e que se ouviu por cá em 1976. 
O intrépido Manoeuvre foi entrevistá-la e o resultado foi este, na Rock & Folk de Julho desse ano,  com várias fotos ( a primeira de Claude Gassian, depois as de Jean-Pierre Leloir, no concerto e Jean-Constant Gidreau na pág 53) e a menção expressa de que os Television eram o grupo-promessa para a década seguinte, mesmo que ainda nem tivessem editora...






A primeira foto originou um desenho de Moebius/Jean Giraud, publicado na edição da Métal Hurlant nº 10 de Outubro de 1976. Este, inserido na série da Garagem Hermética, fantástica a vários títulos, particularmente o desenho:


Tudo isto se interliga porque nesse Verão consegui que um amigo que ia a Paris me trouxesse duas coisas que me interessavam muitíssimo. 
A primeira era precisamente a revista Métal Hurlant que sabia existir mas por cá não aparecia nos distribuidores habituais ( talvez em Lisboa, alguns particulares o fizessem, como um certo Linhares ou um livreiro que existia nas escadinhas do Duque, mas ficava por ali...).
O meu amigo Zé Gomes esfalfou-se nesse mês de Julho de 1976, pelos quiosques de Paris,  para me arranjar este número da revista que se tornara mítico por causa da espantosa ilustração da capa, do mesmo Moebius:


O número porém, era de Março desse ano, a revista passara a bimestral e por isso esgotado. O que encontrou mais próximo da data foi o número de Maio. Este:


Não obstante o relativo desapontamento, tive sorte porque foi nesse número que descobri o início da historieta The Long Tomorrow, do mesmo Moebius, com argumento de Dan O´Bannon e que mudou o meu entendimento sobre a fronteira da ficção científica, ao misturar elementos de romance negro, à americana com a mais desbragada fantasia sci-fi. Fantástico! 
Tal como descobri nesta página que o desenhador Tardi que tinha já visto em pequenas historietas publicadas na revista Pilote que comprara em 1974 na Bertrand, tinha dois albuns de bd, com uma heroína de nome singular, Adèle Blanc-Sec. Ao contrário do que então era habitual, as historietas foram publicadas em tandem e em álbum sem passar por publicação prévia em revista. Por isso só as li alguns anos mais tarde, mas o imaginário prometia e era delirante. 


 A outra coisa que pedi para me trazer foi este álbum, precisamente de Tardi e que vira algures anunciado. Ainda mais delirante e feito pelo método de gravura de imagens em vez de desenho simples: 


Tardi que nesse mesmo ano tinha desenhado a capa de um pequeno livro da colecção Graffiti da editora Albin Michel, dedicado a Moebius/Giraud. Este que também arranjei pouco tempo depois...


E porquê tudo isto? Porque é de Tardi que se fala a seguir...mas antes um documento de época ( Outono de 1976), dos meus vinte anos e que atesta o sítio onde ouvia alguma música em álbuns de vinil, na casa do meu amigo Gomes que me trouxe aquelas preciosidades de Paris e também comprou a Rock & Folk desse mês, como se vê na estante. O gira-discos é do mais básico possível mas era eficaz porque nunca ouvi o Abraxas de Santana como costumava ouvir ali, naquele sítio:



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