quinta-feira, janeiro 04, 2024

Voyeurismo travestido de escrutínio coscuvilheiro

 Crónica de João Miguel Tavares com a habitual fuga em frente perante o insustentável desejo de escrutínio de políticos no activo que se confunde com o desejo de saber a marca das meias dos candidatos. 

Sendo uma caricatura, integra muito bem a lista de itens que o cronista entende como escrutináveis num político como Montenegro ou Pedro Nuno Santos. Afinal o que o mesmo pretende é saber tudo o que permita construir um "perfil do candidato". E isso inclui tudo o que mereça tal relevância, incluindo o preço da casa e portanto dos materiais e construção, bem como os meios para os pagar, principalmente estes. 

Santa ingenuidade e triste voyeurismo, completamente desnecessário para o efeito de se saber se um político presta para o cargo!


Para que um político possa sê-lo, com a legitimidade que lhe confere o voto, basta que se apresente como tal, cumprindo as respectivas obrigações legais. Estas incluem, actualmente, declarações de bens e rendimentos apresentados junto das autoridades oficiais. 

Se eventualmente algum dos bens ou rendimentos suscitarem dúvidas ao longo do cargo, por diversas circunstâncias, mormente as denúncias anónimas, que um político deve sempre esperar se tiver rabos de palha, então será nessa altura que tal escrutínio deverá realizar-se de acordo com as regras legais, incluindo a liberdade de informação que permita aos media aceder a elementos sobre os mesmos. 

Exigir mais que isso é entrar no caminho escorregadio do voyeurismo que se torna indigno a quem o pratica e vilifica quem é vítima do mesmo, pelo fenómeno inerentemente aviltante.

 Ninguém, mesmo um político, tem o dever de expôr toda a sua vida privada, em toda a extensão pessoal ou não, para que se saiba a sua adequação ao exercício de cargos políticos, através de retrato de perfil. Ninguém! E pela simples razão de que tal nunca será possível a contento das exigências expensas. 

Para conhecer um político é necessário saber algumas coisas, a primeira delas, a sua capacidade de liderança e de concretização de propostas políticas. Em democracia tudo isso ressalta da actividade política e não assenta exclusivamente no conhecimento do perfil pessoal, embora lhe seja inerente.

A revista Sábado de hoje dedica 13 páginas ao estudo do "perfil" do candidato Pedro Nuno Santos. Nem isso chega para se conhecer bem o candidato, cujas primeiras três páginas começam assim:





As seguintes páginas são dedicadas a saber coisas sobre "o jotinha radical e os amigos bloquistas do ISEG"; "O jovem turco da geringonça"; "De ministro falhado à liderança do PS"; "Como ele pensa"; "Eu não sou sonso" e um artigo de futurologia política do melhor cronista de jornal da actualidade, João Pereira Coutinho.

Nenhuma dessas páginas permite saber quem é realmente Pedro Nuno Santos, quando sabemos o que fez no caso TAP, escondendo informação, mentindo descaradamente sobre o assunto da indemnização, sem qualquer vergonha disso quando foi apanhado de calças na mão e com inteiro despudor em passar uma esponja sobre todo esse assunto, tal como se apresta a fazer agora no caso dos CTT e os que adiante surgirão.

O que o mesmo diz no perfil "como ele pensa" assinado por Alexandre Malhado é inútil como informação porque este político pensa consoante lhe der jeito pensar nas circunstâncias concretas, porque tal perfil apenas resume a ideia que o mesmo pretende transmitir de que nunca foi esquerdista. Isso não é nada para dizer como o político pensa...a não ser que seja para o mostrar com uma aldrabão que alias me parece ser. 

Sobre este mesmo assunto dos políticos e do conhecimento do respectivo perfil que exige saber pormenores da sua vida privada e até íntima, consoante a ideia do cronista, talvez valha a pena ler uma crónica antiga de Vasco Pulido Valente, no Independente de 10 Janeiro 1992,  acerca do casal Soares e o fenómeno da ostentação da riqueza...


Mário Soares era cliente do alfaiate Rosa & Teixeira, da Avenida da Liberdade em Lisboa; o Gambrinus não lhe era estranho e o estilo de vida que levava quando se tornou presidente da República dizem mais do seu "perfil" do que outra coisa qualquer. 

Sobre outro político que entretanto desapareceu no opróbrio, Duarte Lima, o falecido cronista Baptista Bastos, escreveu assim um dia no Público, depois de se saber mais coisas sobre aquele, noticiadas no Independente:


O que é que isto nos diz sobre o "perfil" de um político, antes de o ser em cargos de chefia importantes? Nada que se pudesse adivinhar antes...logo o tal escrutínio pretendido pelo cronista é apenas reflexo de um desejo incontrolável pela coscuvilhice alimentada por uma inveja indisfarçável.  

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