domingo, março 06, 2016

Sobre clientelas, posso meter o bedelho?

Vasco Pulido Valente e Rui Ramos encetaram uma conversa a dois sobre o assunto das clientelas do nosso Estado. Tudo começou por Rui Ramos ter escrito que "O PS, o Bloco e o PC não se definem pela sua preocupação com os "mais desfavorecidos", mas por tentarem fazer dos dependentes do Estado a sua "base de apoio".

Este escrito que não coligi foi comentado por VPV na sua crónica no Público de 28 de Fevereiro de 2016.

Em resumo, VPV acha que o assunto das clientelas em Portugal é tão velho quanto os tempos de consolidação da monarquia liberal, no séc. XIX. A República fez jus à tradição de alfobre de clientelas e o salazarismo procurou acabar com o feudo. A partir de 1976 retomamos os velhos costumes.

Rui Ramos respondeu no Observador em 4.3.2016:

A propósito de um artigo que escrevi aqui no Observador, Vasco Pulido Valente perguntou que sentido faz falar do “clientelismo” dos partidos políticos. Não foi sempre assim? Sim, as “clientelas”, se quisermos usar a nomenclatura romana, terão até tido mais relevância noutras épocas, quando para um bacharel em direito havia poucos empregos condignos fora da política e da administração. Quem leu Camilo Castelo Branco, Júlio Diniz, Eça de Queirós ou Oliveira Martins aprendeu pelo menos isso. Também não terá esquecido a história do “carneiro com batatas” que os caciques serviam aos eleitores no século XIX. Mas o país mudou. Em 1870, os políticos usavam o Estado para controlar um eleitorado rural e analfabeto, e absorver uma pequena classe de letrados. A questão hoje é outra: o modo como uma parte da oligarquia elevou a dependência dos cidadãos em relação ao Estado à condição de ideal, e pretende fazer assentar nessa dependência o seu domínio político do país.

A dependência do Estado nunca teve as dimensões actuais. O Estado paga hoje 655 mil salários e 3,6 milhões de pensões. A despesa pública vale 51,7% do PIB. Já não se trata de uma refeição num dia de eleições. Para muitos portugueses, o seu modo de vida decorre do rendimento e dos serviços prestados pelo Estado. É tentador para a classe política alegar que nunca obteriam esses rendimentos e serviços de outra maneira, e que os podem garantir de um modo muito simples: votando nos partidos certos, sem mais esforços. Foi o que Alexis Tsipras fez na Grécia, e que António Costa e os seus parceiros parlamentares fazem em Portugal.

Este ideal de dependência tem pelo menos duas dificuldades. A primeira é que a dependência interna produz, em Portugal tal como na Grécia, dependência externa. O Estado português, mesmo depois de quatro anos de ofegante consolidação orçamental e de vinte anos de agravamento incansável de impostos, continua a gerar um défice equivalente a 3% do PIB (desde 1995, que nunca o défice desceu abaixo desse valor). Ora, essa diferença, devido à insuficiente poupança nacional, tem de ser largamente financiada no exterior, sujeitando-nos àquelas condições a que chamamos “austeridade”.

A consequência deste sistema de dependência não é só a dívida e a austeridade: é também uma economia estagnada e um desemprego que subiu quase todos os anos desde 2001. Quem culpa o Euro por tudo isto está apenas a admitir que a solução seria a desvalorização do escudo, isto é, o empobrecimento. Não haverá meio de obter outros resultados? Muitas organizações internacionais recomendam-nos que baixemos os impostos e racionalizemos a burocracia e as regulações, de modo valorizar o estudo, o trabalho e o investimento. Mas isso implica discutir o Estado e o papel do Estado. Não basta “cortar gorduras”, como a oligarquia gosta de dizer. Seria mesmo preciso conceber a relação dos cidadãos com o poder político noutros termos, que não os da dependência actual.

Vasco Pulido Valente lembrou que a cultura literária portuguesa alberga uma velha tradição de nojo pela política nos sistemas representativos. Muita desse nojo viveu da expectativa do poder absoluto de um salvador, ou da mitificação de um povo pronto a assumir directamente o governo. Não pretendo imaginar uma política sem políticos, nem tão pouco contestar as credenciais democráticas do actual regime: desde 1975 que nunca houve dúvida que os presidentes, deputados e autarcas eleitos foram mesmo eleitos, em eleições limpas. O que está em causa aqui é isto: tem a classe política capacidade para estabelecer outra relação com os cidadãos, que não seja a de uma dependência cada vez mais perversa? As coisas já não são como eram, mas ainda têm de mudar
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VPV retomou o assunto ontem e hoje:

Ontem, explicava o clientelismo pela proverbial pobreza que nos acompanha desde o séc. XIX; hoje acrescenta que o clientelismo veio sempre a aumentar desde o liberalismo do séc. XIX, até Salazar, no primeiro quarto do séc. XX. Depois da Ii Guerra Mundial foi sempre a subir nas expectativas clientelares para o Estado satisfazer.

Por mim, ao ler isto, dá-me vontade de me meter na conversa, e só o faço, naturalmente, porque a mesma se desenvolve em público. Meto portanto o bedelho como aqueles putos que se atreviam a interpelar os mais velhos e que por vezes os mandavam rachar lenha. Corro o risco da irreverência, da irrelevância e da ignorância e pergunto:

Mas, afinal de que clientelas falam? Dos apaniguados do Estado que assinam papel a dizer que cumprirão com lealdade as funções que lhes são confiadas e que são aos milhares, actualmente, num crescendo que nunca parou de há quarenta anos a esta parte?  Parece que o Estado, segundo Rui Ramos, alimenta directamente uma prole de mais de 6 centenas de milhar de dependentes crónicos e profissionais. É desses de quem se fala?
Se for, teremos que perceber se o fenómeno teve a sua origem na democracia propriamente dita; no sistema económico que se engendrou há quarenta anos e se desenvolveu do modo ( des) conhecido ou se afinal a tendência é universal perante o alargamento das dependências que os cidadãos preferem ter em relação ao Estado, na Educação, Saúde e Habitação, para não falar na Paz, o Pão, etc...
Em resumo: o comunismo e o marxismo o que tiveram a ver com isso? É que esta discussão não se faz e há muito boa gente que acha que nem se deve fazer, por não interessar nada...

Se forem essas clientelas, ou seja os simples servidores da causa pública, em vínculo definitivo ou provisório, é uma coisa. Se forem outras clientelas que se alcandoram nos múltiplos úberes ou tetas do Estado e se serviram do aleitamento permanente como maná para crescerem e se desenvolverem, aí o panorama é diverso.
Neste último caso é necessário estudar quem atrela sempre a essas tetas salvíficas, aproveitando esses subsídios de aleitação permanentes: empresas públicas dos ipe´s e quejandos, advogados de elite e parcerias público-privadas, etc. etc.

Por outro lado e para compreender tudo isso será necessário questionar o papel do Estado, como aliás faz Rui Ramos. E aqui sabemos de ciência certa uma coisa: no tempo do Estado Novo, o Estado era exíguo, mas para o conseguir ser carecia, paradoxalmente, de ser omnipotente.
Ora isto é um exemplo de sistema político que alguns definem como "fassista" precisamente porque não lhes interessa discutir as virtualidades de um tal sistema. Se o deixassem fazer livremente perderiam audiência e...clientela.

É este o problema e agora mandem-me cavar batatas. Não tenho horta...

Antes disso e em complemento permito-me deixar aqui dois ou três estudos alargados que permitem entender melhor o fenómeno. Dois deles são de índole marxista e rebatem na tecla mirrada da luta de classes. O outro é apenas um estudo de facto e circunstância estatística sobre os moluscos cefalópodes que nos invadem o espaço público.


Enquanto me retiro para o alpendre a mirar a hipótese imaginária de cavar batatas alegóricas, fico a pensar se não seria bem melhor circunscrever a discussão ao que se passou nos últimos 40 anos e tentar perceber porque temos o sistema económico que temos e o Estado que herdámos de quem o foi gizando. Com factos, nomes, datas e ideias.

Questuber! Mais um escândalo!