"Distância institucional e a frieza de comunicações segundo o formalismo mais estrito contribuem pouco para a boa imagem de um corpo do Estado que é de acção e iniciativa", é o resumo deste escrito da magistrada do MºPº que o subscreve, no Público de hoje.
Esta crítica é uma maneira críptica de olhar para o problema que é o MºPº hoje em dia e se prepara para se tornar pior com o Estatuto que virá. Não por causa do controlo político da investigação criminal nas pela burocratização funcional dos seus magistrados.
O que significa isto em termos concretos e claros?
A principal ocupação institucional do MºPº é o exercício da acção penal, uma expressão que aparece logo em primeiro lugar nas atribuições estatutárias do MºPº. Mas...o que é esse tal exercício da acção penal? É simples de entender para quem quiser saber:
É uma actividade diária, permanente, de todos os magistrados do MºPº nas cerca das duas dezenas de comarcas do país, que englobam o trabalho concreto de centenas de magistrados colocados nos departamentos de investigação criminal.
Normalmente as "notícias" de crimes aparecem através das polícias que temos, a GNR, a PSP, a PJ, a Polícia Marítima, o SEF, a Inspecção das actividades económicas, etc etc.
Todos os dias há entrada real nos computadores do MºPº dessas notícias, participações escritas com elementos relativos a identidades, pessoas, factos e circunstâncias, relativas a supostos crimes cometidos.
Alguns com denunciados concretos outros nem por isso e por crimes contra as pessoas ( homicídios, violações, ofensas à integridade física, à sexualidade de maiores e menores, domésticos, etc), por crimes contra interesses patrimoniais das pessoas ( furtos, burla, roubos, danos, falências, gestão danosa, etc etc); crimes contra interesses e valores da sociedade em geral ( falsificações, incêndios, segurança das comunicações e construções, etc) e crimes contra interesses do Estado ( corrupção, contra o Estado de Direito, abusos vários, fiscais, à Segurança Social, etc etc). Estes crimes catalogam-se no Código Penal e numa miríade de legislação avulsa.
Para lidar com tais infracções a valores e interesses há regras que foram estabelecidas nos códigos de processo e mesmo nos estatutos profissionais.
Aos magistrados do MºPº, tal como aos juízes, exige-se o conhecimento técnico de todas estas leis e sobre isso há que dizer que a formação obtida nas faculdades de Direito e depois na escola de magistrados, CEJ, desenvolvida com a prática nos tribunais, é geralmente suficiente e de alta exigência. O recrutamento de magistrados obedece a esses critérios desde há mais de 30 anos.
Tirando casos pontuais que se tornam conhecidos ou não, a esmagadora maioria dos magistrados cumpre regularmente a função que lhes foi confiada, com lealdade e competência suficientes, acima da média da bitola profissional para o país que somos, na minha modesta opinião. Não vemos muitas queixas públicas a propósito da competência técnica dos magistrados...e no entanto subsistem outros problemas porventura mais graves.
Qual é para mim o principal defeito da magistratura do MºPº , hoje em dia e que o novel estatuto irá refinar e agravar? É a inobservância de um princípio estrutural dessa magistratura.
No sítio do MºPº explica-se bem o que é o MºPº:
É uma magistratura paralela e independente da magistratura judicial. Os agentes do Ministério Público são magistrados em termos equiparáveis aos juízes: devem agir sempre com estrita obediência à lei, com objectividade e isenção.
Qual é o princípio que se posterga frequentemente na actividade diária do MºPº naquelas comarcas e departamentos que integram as centenas de magistrados de todo o país e que todos os dias lida com os crimes reportados?
É o da Objectividade e Isenção. Porque é que tal acontece, no meu ponto de vista, reflectido, ponderado e com vários anos de observação prática?
Por deformação profissional que se foi agravando ao longo de décadas à medida de dois ou três fenómenos que foram surgindo e agravando nos últimos anos: a excessiva feminização do MºPº, a regular burocratização através de reportes e relatórios cada vez mais frequentes de estatísticas vãs e sem estudo efectivo do respectivo significado e o abandono progressivo da realização de inquéritos, pessoalmente, pelos magistrados. Creio que hoje em dia, se houvesse uma inspecção real e efectiva a tal fenómeno, chegar-se-ia à conclusão que a esmagadora maioria de todos os inquéritos criminais é realizada por polícias e outros órgãos de polícia criminal, como os inspectores de Finanças e outras inspecções da Administração Pública.
Actualmente, os magistrados do MºPº, na sua esmagadora maioria, são juizes dos inquéritos. Recebem as participações e remetem as mesmas para investigação para tais órgãos de polícia criminal, em muitos casos obrigatoriamente, por causa da lei ( os casos relativos a competência "exclusiva" da PJ). O que acontece nestes casos? O magistrado do MºPº apesar de ser o dominus de tal inquérito, torna-se uma espécie de controlador burocrático de diligências sugeridas por esses opc´s e nos casos mais graves medianeiro entre os mesmos e os JIC´s.
A participação que entra nos serviços do MºPº é encaminhada pela secretaria para o respectivo magistrado que a despacha, literalmente, para outra entidade, no caso a polícia competente.
Há instruções internas que prevêem o controlo efectivo de tais inquéritos através de imposições escritas a tais opc´s. com indicação concreta de diligências a efectuar e prazo para as fazer, só que tais regras de regulamento interno e ordens de serviço ( uma praga, actualmente e que se multiplica como só as pragas o fazem) esbarram com as realidades das carências diárias das polícias controladas pelo poder político-administrativo, a que é alheio o MºPº. Uma incongruência que torna inoperantes tais métodos julgados eficazes. Por outro lado, devido a uma moda perversa, as instâncias superiores do MºPº muito assustadas com as CMTV´s e quejandos media, querem a todo o custo saber quais são os processos com "repercussão mediática". Para quê? Até agora, não se sabe muito bem porque em nenhum caso, que se saiba, tal comunicação teve resultados visíveis das instâncias hierárquicas superiores relativamente a uma comunicação adequada aos media. Geralmente é mal feita tal comuniação e na própria PGR existe um gabinete que a meu ver funciona muito mal e também ele já burocratizado e ineficaz como comunicador seja do que for.
Acresce a tal fenómeno a burocratização que passa pela comunicação a instâncias superiores, que com o novel estatuto, se replicarão em mais de meia dúzia de órgãos formais, todos com magistrados a superintender, em escalões progressivamente superiores, com um desiderato que não se alcança. Supostamente tal garantiria o controlo hierárquico dos procedimentos mas facilmente se entende que é inútil tal procedimento de controlo obsessivo através de comunicações massificadas com vista a habilitar a hierarquia de algo que não se entende. Controlo de quê, afinal? Do desenrolar dos processos? Sim, nos prazos, mas inútil porque a instância de controlo de tal deveria ser a imediatamente superior e não outras subsequentes. No tempo de Cunha Rodrigues, como PGR este chegou a relatar em entrevista que a PJ tinha em seu poder procedimentos avulsos e preventivos que nem inquéritos eram, há longos anos. Só que a inspecção da PJ competia ao MºPº que fez vista grossa durante todos esses anos...
Agora não há tal perigo mas será melhor o excessivo controlo hierárquico e burocratizado? Não porque tal diminui a autonomia dos magistrados de base, retira-lhes o sentimento de serem verdadeiros magistrados e torna-os burocratas funcionalizados em comunicações hierárquicas.
Outro efeito perverso desta excessiva burocratização reside na atitude diária dos magistrados: "despachar" processos que recebem dos tais opc´s do modo que aprenderam: ler os relatórios das polícias, analisar perfunctoriamente os factos em causa e acusar de preferência. Parece ser esse o desiderato da hierarquia superior e tal é assim comunicado informalmente e valorizado por inspectores do sistema.
Acusar em vez de arquivar, como preferência, é um efeito deste sistema que está instituído. Ora as acusações devem ser peças processuais delicadas e com rigor exclusivo e de excelência. A estatística recolhida mostra ao longo dos anos que é muito maior o número dos inquéritos arquivados do que os que são acusados. Avaliar estes efeitos através de estatísticas representa um erro grave, a meu ver.
À partida esconde aquele problema enunciado, o da postergação do princípio da objectividade e isenção.
O magistrado perante um inquérito com factos duvidosos ou cuja prova em julgamento se afigure difícil ou virtualmente impossível, deve ponderar uma de duas coisas: arquivar ou investigar melhor, pessoalmente se for o caso e complementando investigações policiais se tal for possível. E isso é tarefa de magistrado, não de polícia.
Ao magistrado exige-se profissional e legalmente uma atitude de isenção e objectividade que implica duas coisas: investigar e recolher prova contra o suspeito e a favor do mesmo, se for o caso. Um magistrado que só pondera a primeira parte da equação, como geralmente acontece, está na fronteira da prevaricação, ou seja da acção penal arbitrária contra alguém.
E é isso que acontece cada vez com maior frequência, devido aos fenómenos que procurei elencar e a outros que podem ter o seu significado, avultando entres estes a desconsideração pela antiguidade e respeito devido aos mais velhos, pela competência vista desse prisma, em detrimento da produtividade ou do formalismo acéfalo e vazio de substância.
Estou certo que a adopção destes critérios como regra e a sua promoção como valores de excelência conduziria o MºPº português para patamares de excelência.
Um Ministério Público, como o português deveria pautar-se pelo rigor das suas investigações criminais, isenção a toda a prova e imagem de baluarte de um Estado que é de todos, vítimas, suspeitos e arguidos. As vítimas merecem toda a protecção quando o são verdadeiramente e na respectiva medida. Mas os suspeitos e arguidos também merecem consideração na aplicação da lei e justiça.
A excelência da actuação do MºPº deveria rever-se nesses propósitos.
Infelizmente parece-me que é o contrário que está a suceder e se verificará a breve trecho, com um MºPº cada vez mais populista, a reboque de certos media sensacionalistas e com medo das sombras da opinião publicada que pouco valor tem mas à qual é dada uma importância desmedida.
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