A capa do Jornal de Notícias de hoje deveria suscitar interrogações e preocupações em quem se preocupa com o estado da democracia no nosso país, mormente com o pluralismo inerente e o equilíbrio razoável na composição dos vários poderes. Está em causa, notoriamente, um assalto ao poder judicial, condicionado de modo subtil por um Ministério Público amestrado às idiossincrasias da esquerda socialista e partidariamente centrada no PS. Nunca nenhum outro partido, nem mesmo o PS se atreveu a tanto como este de agora.
Em política o que parece tende ser realidade e esta é tão evidente que até dói, pela falta de pudor e a exposição flagrante de uma pouca-vergonha só permitida pela indiferença da opinião pública perante este autêntico atentado ao Estado de Direito. Nem José Sócrates conseguiu ir tão longe...
Tem sido comentada ultimamente a circunstância de os nomes escolhidos para dirigir vários departamentos do Estado na área da Justiça serem pessoas afectas ao PS ou que tenham dado garantias de não incomodar o PS em casos sensíveis e conhecidos mediaticamente.
Esta circunstância abrange as escolhas da titular da PGR, a actual Lucília escolhida pela cúpula do PS e particularmente a ministra da Justiça, também ela elevada curricularmente à categoria de juíza Conselheira do STJ; o director do DCIAP, Albano Pinto que já deu provas de não querer incomodar demasiado o poder político do momento, abrindo ipso facto uma brecha grave na autonomia interna de cada magistrado do MºPº; o presidente do tribunal de Contas, em tempos colaborador activo de certo poder político, no exercício das próprias funções de magistratura; a escolha do procurador europeu é outro facto triste e com os mesmos protagonistas em que se destaca um deles, de cabelo gominado e presença assídua nos programas da dona Lourença da RTP.
Manuel Magalhães e Silva, advogado de entalados ilustres, é o nome desta rosa pálida, com espinhos cravados no Ministério Público, para o ferir na sua mais profunda independência face ao poder político, através da manipulação subtil de nomes e escolhas cirúrgicas a preceito.
Vejamos como se apresenta mais uma manobra que me parece exemplar de uma certa corrupção no exercício de um poder a que o PS está intimamente associado.
O que se denuncia nesta notícia - se corresponder à verdade o que é denunciado - consiste na manipulação da legalidade vigente para atingir um objectivo premente e ilegítimo e é simplesmente a prática de um crime de abuso de poder, segundo os critérios ultimamente seguidos pelo próprio Ministério Público. Senão vejamos:
Houve um concurso publicitado na estrutura interna do MºPº para se escolherem magistrados que coordenem as 24 comarcas do país.
Houve a constituição de um júri de quatro elementos, escolhidos pelo CSMP. Sabe-se que dois deles, pelo menos, acabaram por ser do PS e o mais velho era Magalhães e Silva, raposa batida nesta actividade venatória.
Foram apresentadas candidaturas dos interessados, com o respectivo currículo definido legalmente no estatuto, deste modo:
Artigo 162.º
Magistrado do Ministério Público coordenador da comarca
1 - O provimento dos lugares de Magistrado do Ministério Público coordenadores da comarca efetua-se de entre magistrados que exerçam funções efetivas como procurador-geral-adjunto ou procurador da República, estes com, pelo menos, 15 anos de serviço e classificação de Muito Bom ou Bom com distinção, por deliberação do Conselho Superior do Ministério Público, após apreciação curricular dos interessados.
2 - As funções previstas no número anterior são exercidas em comissão de serviço de três anos, renovável por igual período, podendo ser excecionalmente renovada por novo período de igual duração caso não exista outro candidato para a comarca em causa.
3 - O exercício de funções de magistrado do Ministério Público coordenador de comarca implica a aprovação em curso de formação específica.
É preciso dizer que este lugar de procurador Coordenador de comarca, criado no tempo da ministra Paula Teixeira da Cruz e na sua reforma judiciária passou desse modo a ser um lugar muito mais importante do que o de Presidente da própria comarca, conferido aos juízes, pela simples razão de que o MºPº é o titular da acção penal e o Coordenador do MºPº é o imediato superior hierárquico dos magistrados e departamentos do MºPº, como os DIAPS, espalhados por todo o país.
Processo penal importante e que envolva figuras mediáticas ou com relevo político cai na alçada destes departamentos e o responsável máximo por tal, que por isso pode avocar procedimentos, distribuir processos e orientar investigações, para além de as fiscalizar nos termos da lei processual, ou seja no fim dos inquéritos arquivados, é fatalmente o Coordenador. Os juízes nem cheiram estas competências avulsas assim atribuídas legal e estatutariamente no CPP e no Estatuto do MºPº.
Ora esta importância não passa despercebida a quem tem deste Ministério Público a noção de que deve ser um órgão submisso e respeitador de poderes de outra ordem, mormente política, como é manifestamente o caso deste PS.
Assim, o momento de escolha destes coordenadores torna-se crucial para tal objectivo e quem escolhe é o CSMP, neste caso reduzido a uma comissão de alguns elementos em que se destaca aquele advogado sindicado pelo PS ao lugar e que foi fundador do partido- é preciso não esquecer tal circunstância. Por isso o mesmo se sente totalmente impune porque tem o poder de influenciar a punição de quem tenha a veleidade de o denunciar nesse papel...e nenhum magistrado vai dar o corpo a tal manifesto, publicamente e de modo assumido como tal.
Estas considerações não derivam nem de teorias de conspiração ou de procedimentos intencionais dirigidos ao indivíduo em causa, porque relevam apenas de atitudes e factos publicamente conhecidos e devidamente publicitados no passado. Manuel Magalhães e Silva é um comissário político do PS no CSMP. Ponto. Final.
E por isso mesmo deveria ficar afastado destes procedimentos de escolha sensível de magistrados para ocuparem lugares-chave como são os de coordenação das comarcas.
Deveria ficar afastado porque a sua designação para tais tarefas, ipso facto, implica que tenha o dever de cumprir o seu ofício que é o de representar o PS no órgão superior do MºPº e perante as suspeitas e denúncias públicas recentes e enunciadas em cima...o que parece acaba fatalmente por ser e se comprovar.
É apenas o sinal inequívoco do realismo e nunca uma teoria de conspiração ou processo intencional. Um comissário político nunca actua sem ser nessa condição porque em caso contrário é corrido pelo comissionante, ou seja o Governo, na primeira oportunidade. Manuel Magalhães e Silva é repetente nestas andanças e sabe o que a casa gasta.
É aliás Manuel Magalhães e Silva quem se põe sempre a jeito nestas circunstâncias...porque esteve no grupo reduzido que escolheu e graduou o procurador europeu e agora no dos coordenadores de comarca, para além de outros.
O PS escolhe efectivamente quem lhe interessa para tais cargos públicos, mesmo com concursos públicos aparentemente blindados a tais influências e é aqui que reside o busílis destas questões e a subtileza de actuação do referido advogado e outros membros da classe política porque tal não é exclusivo do PS, diga-se.
Será legítimo que um partido político possa escolher quem lhe agrada para ocupar lugares como os designados? É. Não devia ser, mas é. A única forma de evitar tal efeito seria o de impedir os comissários políticos de intervirem no procedimento de escolha, o que se revela difícil neste simulacro de democracia porque...estão lá exactamente para tal tarefa.
Porém, existe uma condição não escrita: a transparência da escolha não pode contender com habilidades ou artifícios de chico-espertismo que se tornem escandalosamente públicas, como foi o caso do procurador europeu, denunciado aliás nas instâncias europeias como similar a um procedimento fraudulento.
E se para além da ausência de tal transparência avultarem outras circunstâncias manhosas como sejam a obliteração de regras legais ou a simples adopção de procedimentos atentatórios da legalidade, então o jacobinismo reinante impor-se-á contra os próprios porque foram eles que criaram o monstro ideológico vigente.
Assim, no caso concreto importa verificar pontualmente e com todo o rigor possível como foi escolhido cada nome para o cargo de coordenador e como foram graduados e não graduados, excluídos. Quais os critérios seguidos, em concreto e se estavam de acordo com as prè-definições dos mesmos.
Se além disso subsistir apenas a subjectividade do procedimento de escolha e selecção importa saber qual o critério de opção, para além da objectividade inerente.
Na notícia do jornal dá-se conta que a escolha visou impedir pelo menos três nomes de ocuparem os respectivos lugares, indicando-se que presidiu a tal opção excludente a circunstância de se tornarem personae non gratae ao poder político do momento.
A acusação explícita, na notícia, visa a exclusão de magistrados com "provas dadas no combate à corrupção" e que terão sido escolhidos candidatos com currículo inferior aos visados, ou sem qualificação admissível, numa repetição do que aconteceu com a escolha do procurador europeu.
Será isto sindicável em termos penais e de modo a incluir estes procedimentos no âmbito da prática de crime de abuso de poder? Poderá efectivamente se tais suspeitas se confirmarem ou seja se a subjectividade da escolha contender com aqueles critérios de índole político-partidária como se tornou suspeito, agora publicamente.
E as suspeitas existem...pelo menos num caso em que se prolongou o exercício do cargo a um procurador que já tinha exercido o mesmo durante duas comissões de serviço. É sabido na notícia que se trata do procurador designado para o Porto, a segunda comarca do país...
Perante estas circunstâncias parece que deve ser aberto um inquérito pelo mesmo MºPº contra quem decidiu como decidiu, porque se for de outro modo, ou seja, com sindicância administrativa de tal actuação, com fundamento em ilegalidade sobra o motivo de tal e isso não se coaduna com o princípio da legalidade de actuação do MºPº.
Por muito menos que isto o MºPº em várias comarcas já abriu inquéritos para apurar o crime de abuso de poder em concursos públicos, em que aparentemente todas as regras concursais foram respeitadas e sobrava a escolha subjectiva não suficientemente fundamentada...e até foram acusadas pessoas de tais factos e submetidas a julgamento...
Inquérito ou procedimento disciplinar, porque os membros deste júri e do CSMP neste caso não estão isentos do respectivo dever de imparcialidade e isenção, pelo menos, sendo muito lestos noutros casos, em instaurar procedimentos deste tipo a magistrados, apenas com ligeiras suspeitas e mediante denúncia, até anónima...
Portanto...vai ficar tudo em águas de bacalhau.
ADITAMENTO em 1.3.2021:
O CM noticia assim o assunto:
Dá conta de três factos que por si só obrigam a instaurar um inquérito criminal porque os indícios são suficientes para tal:
"foi dispensada a audiência dos interessados, foi alterado o júri a meio do concurso, foi alterada a forma de decisão no dia da deliberação".
Se isto dissesse respeito a um concurso público numa câmara municipal para admissão de suspeitos de serem apaniguados, o MºPº já estava a investigar e se apurasse tais factos acusaria pelo crime de abuso de poder. Já aconteceu em Portugal.
Logo...talvez o bacalhau esteja com as barbas de molho.
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