A propósito do filme O Couraçado de Potemkine, do russo Eisenstein, estreado no dia 2 de Maio de 1974 e alvo de censura do regime anterior, durante décadas, torna-se curioso notar que em 1971 uma revista de grande difusão, a Vida Mundial, publicou um artigo extenso, quase um ensaio, sobre a obra cinematográfica daquele cineasta, a propósito da exibição comercial do seu último filme, Ivan o Terrível de 1945 e que não foi alvo de censura, por cá ( na pátria do cineasta, a segunda parte do filme foi julgada "anti-histórica" pelo Partido e por isso censurada).
O artigo da Vida Mundial ( de que se publica parte) torna-se tanto mais interessante quanto se nota a meia censura do regime. Por um lado, permite a publicação de 14 páginas sobre a obra do russo. Por outro, não se diz no artigo, claramente, que O Couraçado tinha sido proibido pela Censura, ficando pelas entrelinhas que "a forma, aparentemente dispersa e fragmentada, de um tal trabalho, é explicada pelo nosso insuficiente conhecimento de Eisenstein e da sua obra (teórica e prática)" , com uma grafia itálica do adjectivo insuficiente quase explícita para quem soubesse ler.
Esta ambivalência do regime era estúpida, no meu entender, porque não proibia toda e qualquer referência ao cineasta ou à sua obra, incluindo o Couraçado de Potemkine, cuja trama narrativa é explicada e comparada com Ivan o Terrível e por outro proibe a exibição pública do filme por motivos óbvios: é um panfleto comunista e como tal, veto político. Mas, segundo consta, não o proibia de ser exibido publicamente em cinema ambulante, por exemplo.
Ainda por cima nota-se que os autores do artigo, Borges Palma e João Assis-Gomes, leram o que era importante na altura para se perceber a obra do cineasta, designadamente os Cahiers du Cinema, bíblia dos nossos cineastas de então e viveiro de esquerdismo militante.
Por aqui se explica também por que razão a "intelligentsia" nacional, em 25 de Abril de 1974 estava perfeitamente politizada no esquerdismo e tomou logo parte do PREC.
Se o "povo" em geral tivesse a possibilidade de escolha e discussão destas matérias, com total liberdade de escolha das fontes, equacionando os problemas ideológicos do modo como por exemplo em França se fazia, com liberdade de expressão e publicação, talvez o esquerdismo em Portugal não tivesse atingido o ambiente de pandemia que existia em 25 de Abril de 1974 e o ambiente político fosse mais equilibrado, com uma discussão entendida e aceite sobre a natureza do comunismo e o socialismo marxista que o PS ainda exibia como matriz ( e abandonou logo a seguir...).
Como tal não existiu, o fruto proibido tornou-se fenómeno natural, o mais desejado por essa faixa de intelectuais dos jornais.
Assim, a esquerda e a sua vertente de doentes infantis do comunismo tomaram conta do espaço público e mediático e assistimos depois do 25 de Abril de 1974 à mais tremenda e eficaz lavagem ao cérebreo colectivo que ainda perdura, o que não aconteceu noutros países da Europa.
O Exame Prévio, como censura, tornou em vítimas gente que não o era tanto assim, como o Francisquinho do Expresso que declarou há uns tempos que se não fosse o 25 de Abril o jornal tinha fechado, por causa dos cortes censórios. Declaração despudorada e infeliz, pois os tais "cortes" fatais que até estão publicitados em livro de José Pedro Castanheira ( "O que a censura cortou") mostram que nada do que foi cortado era tão relevante que o devesse ter sido. E se tivesse sido publicado o jornal acabaria na mesma porque era simplesmente...mal feito.
Actualmente, continua na aurea mediocritas de sempre mas é a referência dos semanários, o que mostra bem a evolução intelectual de um povo que tem agora a "geração mais bem preparada de sempre" e que ao mesmo tempo lê jornais sem grande categoria intelectual, dirigidos, no caso, por uma dupla cretinóide que se deixou enrolar por um artur baptista da silva e sobreviveu....
É este sem dúvida e a meu ver um dos maiores erros de Marcello Caetano que em 1973 nas conversas que manteve com António Alçada Baptista, em livro publicado pela Moraes ( Conversas com Marcello Caetano), dizia que patati, patata, a liberdade coisa e tal e até que " gostaria de viver numa sociedade livre onde o respeito pela pessoa e pela liberade dos outros fosse uma preocupação constante de cada cidadão e é isso, como governante, o que também desejaria", mas depois justifica o Exame Prévio: " Em teoria nada mais desejável do que pretender que a informação seja ´verdadeira e objectiva`. Mas o que é informação ´verdadeira e objectiva`? Os acontecimentos são muitos para o tamanho das páginas dos jornais e, consequentemente, terão que ser seleccionados conforme o que se considera mais importante".
Aqui fica a explicação do Exame Prévio que Marcello Caetano gostaria de ver abolido, mas em 1974, "ainda não"...
Essencialmente a razão radicava na guerra no Ultramar. Percebe-se que em tempo de guerra haja censura e todos os países a fazem. Recentemente fizeram-na os EUA e a própria Inglaterra, nos anos oitenta aquando da guerra das Malvinas, uma censura plena e em forma como aqui existia relativamente a esse ponto político.
O que não se percebe é que a pretexto desse motivo válido não pudesse ser exibido o tal Couraçado ou mostradas outras coisas menores, ou cortados textos anódinos, mesmo do Expresso, com medo do papão comunista que depois se serviu despudoradamente disso para gozar com o facto de "comerem criancinhas ao pequeno almoço", exagerando no sarcasmo para obter o efeito deletério desejado.
Esse erro, a meu ver, foi fatal ao regime e era desnecessário.
O que é que deu isto? Deu nisto...