O fascismo, enquanto termo designativo de um regime não existia em Portugal antes de 25 de Abril de 1974, a não ser nas publicações clandestinas dos comunistas, a que se juntavam alguns socialistas então marxistas.
Porém, na linguagem comum e corrente do povo e mesmo dos media, ( com censura) o termo era ignorado como palavra-chave para designar o regime político do Estado Novo de Salazar e do Estado Social de Marcello Caetano.
Por mim só dei com a palavra "fascismo", designando o regime anterior, nos dias a seguir ao 25 de Abril de 1974. E digo dias a seguir porque no próprio dia, os jornais, rádios e tv ainda não usavam o termo.
Em Janeiro e Fevereiro desse ano de 1974 a linguagem corrente era esta, como mostra o jornal Diário de Lisboa que se tornaria um dos expoentes comunistas mais notórios logo nos dias a seguir ao 25 de Abril. Não se nota "fascismo" em lado nenhum. Escrevia-se Ultramar em vez de Colónias e Nação em vez de "este País". E falava-se em moral, conceito que depois desapareceu para dar lugar, alguns anos depois a "ética". Marcello Caetano adivinhava os "tempos dificeis" que viriam e provavelmente nem imaginava como! Dali a dois anos havia uma bancarrota em perspectiva e dez anos depois, outra. Coisa inédita no Portugal desse tempo.
E dava-se notícia dos militares mortos em combate, na guerra "na Província da Guiné" e "no "Estado de Moçambique".
No dia 25 de Abril de 1974 o Diário de Notícias não noticiou a queda do regime como "o derrube do fascismo". Aliás, nenhum jornal diário o fez, aposto.
Nem sequer o Diário de Lisboa do dia 27 de Abril mostrava tal coisa nos comunicados do Movimento das Forças Armadas que apenas falavam em sistema político. Porém, os comunicados da CDE já não escondiam a palavra "fascismo" e noticiava-se que um grupo de manifestantes do MRPP gritava "o slogan favorito, "guerra do povo à guerra colonial". A palavra fascismo aparece também nas designações que os comunistas fazem do regime, relatadas no jornal.
Esta palavra "fascismo" foi introduzida no léxico corrente pela esquerda comunista, com efectivo apoio socialista, parece-me um facto indiscutível. Ou seja, a esquerda inventou o termo "fascismo" para designar o regime de Salazar/Caetano e conseguiu torná-lo designativo corrente, tal como a palavra "kispo" designava blusões. Uma metonímia notável.
Em 29 de Abril o mesmo jornal já definia na página dois o regime anterior, como ainda não se fizera mediaticamente: "regime fascist", ou seja tal e qual a esquerda comunista sempre o designou.
No mesmo dia 29 de Abril de 1974, o República, dirigido pelo socialista maçónico Raul Rego dava estatuto de herói ao regressado de Paris no dia anterior, Mário Soares. E publicava o primeiro comunicado do PCP em que aparece a expressão mágica, como não podia deixar de ser: "ditadura fascista".
Dali para a frente foi sempre a somar adesões à novíssima designação cuja aparição ocorreu deste modo.
Quanto ao partido Socialista, para não ficar atrás dos operários e camponeses, também partilhava os desideratos comunistas de liderar a "luta contra o capitalismo" e naturalmente a sua declaração de princípios, um ano antes, já garantia "o combate visando a eliminação dos suportes sociais do fascismo e do colonialismo" , ou seja, contra " a burguesia" e banqueiros, um deles por sinal mecenas de Mário Soares no exílio, segundo consta...
Com este ideário expresso e a linguagem usada, quem aderiu ao socialismo democrático passou a usar a mesma língua de trapo dos comunistas.
Em 29 de Setembro de 1974 o Expresso já escrevia em editorial ( possivelmente Marcelo Rebelo de Sousa) "luta antifascista". O Expresso é o melhor expoente explicativo do fenómeno que se introduziu na semântica nacional. O Expresso de Balsemão, deputado da Ala Liberal do Estado Social que a esquerda passou a apelidar de "fascista", sem qualquer protesto ou oposição daquele, foi sempre um jornal "liberal" à moda do Minho, ou seja, de Cascais ou da Quinta da Marinha. Foi sempre contra o comunismo do PC, na fase em que este partido que ainda se diz democrático queria açambarcar todo o poder político e cujas veleidades só terminaram em Novembro de 1975. Mas foi também um jornal "inserido no processo revolucionário", como atestou o comandante do Copcon, Otelo, quando Vasco Gonçalves o apodou de "pasquim", num discurso surrealista em Almada, nos idos de 1975.
Quer dizer, o Expresso foi sempre um jornal que não quis ser carne nem peixe, preferindo os congelados do "tipo serra". Tipo professor Marcelo, o melhor paradigma do jornal.
O termo "fascista" pegou de estaca, deste modo e até hoje, modificando a linguagem antiga e dando nova dimensão ao panorama político. Nas semanas e meses depois do golpe ninguém queria ser "fascista", o que se tornou um termo de insulto e exclusão quando não de prisão como aconteceu com estes pobres fascistas, adeptos irredutíveis de Mussolini, falangistas sinistros de uma ordem nova de violência anti-democrática, arrebanhados pelos democratas da esquerda revolucionária, na sequência dos acontecimentos de 28 de Setembro de 1974, como relata o DL de 30 de Setembro de 74.
A partir daqui o PREC levantou voos mais altos, até 25 de Novembro de 1975. Fascismo, ditadura fascista, reaccionário, até mesmo nazi, foram termos que se vulgarizaram e abrangeram todos aqueles que não partilhavam a mesma cartilha desta esquerda comunista e socialista. Hoje, 40 anos de depois, o esquema mental dessas pessoas continua o mesmíssimo de sempre: apodar de fascistas quem ousa falar do regime anterior noutros termos que não os que eles mesmos assim definiram.
Como dizia uma mulher num autocarro para defender outra mulher, preta, das invectivas de um energúmeno qualquer: olhe senhora, preto é ele...
No caso, fascistas, são eles...
Quanto aos media tradicionais, seguiram todos, sem excepção, o mesmo guião. Os que o não fizeram tiveram um destino de inquisição. Assim, em 29 de Setembro de 1974, no jornal Sempre Fixe, dirigido então pelo mesmo director do Diário de Lisboa:
Logo em Junho de 1974 a Flama mostrava mais um dos sinais do fenómeno. "A arte fascista faz mal à vista", proclamaram alguns artistas plásticos no interior do palácio Foz, nos Restauradores, para tapar de negro uma estátua de Salazar.
"Fascismo" já era o termo da ordem nova.
Naturalmente, quando em 1983 alguns adeptos do antigo regime se reuniram no Porto para comemorar o 28 de Maio de 1926, data do golpe que conduziu Salazar ao poder, o Expresso de 4 de Junho de 1983 deu assim a notícia, com fotos.
O texto é exemplar do que aconteceu à linguagem nesses anos, pouco mais de meia dúzia sobre o 25 de Abril: mistura verdadeiros adeptos da extrema-direita, eventualmente fascista segundo os cânones correctos da designação com elementos de direita, salazaristas de vários matizes e todos embrulhados numa conveniente designação de "direita nacionalista e antidemocrática". Fascista, quoi!
Em Portugal quem não segue a cartilha da esquerda que inclui naturalmente a social-democracia que temos, é simplesmente "fascista" ou mesmo "nazi" e julgo que a explicação está dada.