domingo, novembro 25, 2018

Violência domesticada e burocratizada

A entrevista que segue, no Público de hoje é a um magistrado do Ministério Público que tem experiência em assuntos de violência doméstica tal como são tratados nos tribunais, mormente no Ministério Púbico e organismos relacionados, como as comissões de promoção e protecção de menores, perdão, crianças e jovens.
Tem diversos artigos específicos publicados em revistas forenses, sendo pessoa bem formada, em todos os sentidos. Algumas das leis que se aplicam aos casos de menores, têm o seu contributo, igualmente.

Vale a pena ler para depois comentar.


O título da entrevista mostra que algo pode estar mal nesta concepção algo fundamentalista e judiciária de um problema que porventura atingiu um paradoxo: as medidas existentes para protecção das vítimas deste tipo de violência são insuficientes para estancar a corrente de sangue que não pára de correr na presença da criatura da foice que se aproxima destas pessoas cada vez mais. A morte tem sido um solução escolhidas demasiadas vezes no último ano, para resolver problemas desta natureza. 24 mulheres foram assassinadas à mão de homens que assim agiram em desespero de causa e algumas vezes se associaram ao sacrifício. Tal não me parece nada normal.

Porque é que isto aconteceu? Não há resposta satisfatória e a solução apresentada pelo entrevistado é mais e mais intervenção e "indignação pública".
A meu ver, está errado. Profundamente.

Enquanto não se souber ao certo por que razão aparece a criatura da foice tantas vezes junto destas pessoas, não haverá solução que estanque a sangueira.
E essas razões não são apresentadas de modo nenhum. "Infelizmente não temos um mapa dos homicídios". Não temos mas podemos ter. Basta pegar em cada um dos casos de homicídio ocorrido no ano corrente e situá-lo no espaço e circunstâncias adjacentes. Há tantas comissões para tanta coisa...que deve haver uma para isto, por aí esquecida nos relatórios das entidades oficiais.

A talhe de foice aparece o famigerado caso do acórdão de Neto de Moura, também fustigado pelo magistrado Rui do Carmo que  logo a seguir apresenta razões para que se compreendam as suspensões de pena nestes casos de violência doméstica. Como era o caso do tal acórdão...e por isso não havia qualquer necessidade de arrazoar sumariamente ( "situações anómalas"...) a palermice ambiente de que a jornalista se fez eco.

No fim da entrevista sobra-me uma observação acerca do esforço das autoridades legislativas, executivas e judiciais em lidar com os casos de violência extrema e que convoca a criatura da foice, entre os casais e pessoas que moram em conjunto.

Assim que conseguirem responder a tal questão terão o problema resolvido. Por enquanto o aumento dessa violência extrema e definitiva é a prova que estão errados nas medidas que têm proposto.

Por uma razão que me parece simples: se estiver certo estatisticamente, e julgo que estarei, há 50 ou 40 ou mesmo 30 anos havia menos presença da criatura da foice nestes acontecimentos funestos. Objectivamente os factos não lhes dão razão.

Então porque razão aparece assim tão frequentemente, agora, a criatura da foice?  Porque foi convocada por alguém. E a meu ver são aquelas entidades em triplicado: o poder legislativo, executivo e judicial.

Como diz o entrevistado de modo curioso e ao mesmo tempo perplexo, para quem lê, num caso concreto de análise retrospectiva de "um caso em que a Saúde interveio, a Segurança Social interveio, as forças de segurança intervieram, a Justiça interveio, mas depois se concluiu que não houve diálogo".

Diálogo? Que diálogo? Aparecer a Saúde a falar com a Segurança Social que por sua vez fala com as forças de Segurança e depois chegam todos a dialogar com a Justiça? Mas...tal já acontece. Através de relatórios, mais relatórios, cruzinhas sobre a perigosidade no caso concreto e outras questões precisas. Até se pergunta se há receio de aparecer a criatura da foice...e a resposta é dada através de uma cruzinha num papel. Infelizmente, porém, as cruzes em papel não contêm a virtualidade de afastar tal criatura do mal. Precisa-se por isso de um exorcismo conveniente.

Haverá explicações mais prosaicas para tais fenómenos mas podem ser de apreensão complexa e a exigir mais que conhecimento de leis: também da realidade e da psicologia social, se assim se pode dizer.

Seja como for, até agora, a evolução é simples de compreender, apesar de a jornalista não ter perguntado ao especialista. Nestes casos o assunto concreto de que se fala costuma dar-se por "assente" e compreendido plenamente. Ora nem sempre é o caso.

O que acontece sempre que há um caso da tal "violência doméstica" ?

O crime é assim definido e já teve cinco versões desde 1982. A jurisprudência é vasta e as orientações para o MºPº também são contínuas. As "formações" não faltam e contudo os resultados estão à vista.

Artigo 152.º
Violência doméstica

1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou
b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento;
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
6 - Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de um a dez anos.

Então o que falha de essencial para impedir a comparência da criatura da foice que arruma tudo definitivamente e sem remédio? É isso mesmo...parece-me.

A violência doméstica combate-se cada vez com maior violência. E violência gera violência, até à mais extrema. A violência do Estado tem que ser muito ponderada e proporcional, para ser entendida como razoável e principalmente muito bem administrada, com peso conta e medida.  É essa a explicação quanto a mim. Dizer que é preciso mais indignação pública contra a violência doméstica é a meu ver profundamente errado nesta perspectiva.

E então não se deve combater a violência doméstica e proteger as vítimas? Claro que sim. Tudo depende do modo como se faz.

Vou dar um exemplo concreto que talvez seja eloquente:

Há pouco tempo, numa determinada localidade que conheço, um casal desavindo foi apanhado nessa espiral de violência. Tipicamente, o marido alcoolizava-se e maltratava a mulher.  A pobreza ajudava a piorar o cenário diário de desavenças e maus tratos físicos e psicológicos, ocasionais mas constantes.
Foi alvo de processo penal, acusado, julgado e condenado. Em pena de prisão suspensa. E com uma obrigação que condicionou essa suspensão: sair de casa onde sempre morou, no prazo concedido.

Como não tinha casa alternativa, era pobre e portanto com destino incerto e inseguro, impossibilitado de fazer face a mais essa despesa, não cumpriu a condição. Foi denunciado por isso e o processo foi ao MºPº que sugeriu a audição do mesmo para se explicar, antes de eventual revogação da suspensão de pena. O juiz que leu tal promoção do MºPº não acolheu a sugestão e mandou que o indivíduo relapso saísse de casa, à força se preciso fosse, convocando a GNR para o efeito. E lá aconteceu o seguinte: o indivíduo dependurou-se numa trave, convocando para si mesmo a criatura da foice.
Porque é que a convocou para si, neste caso? A meu ver não há mistério: porque chegou ao fim da linha de resistência contra a violência, neste caso do Estado e  que agora era contra si.

Não há qualquer diferença nisto, entre o que se passou agora e o que se passava há 50,40 ou 30 anos. A não ser que nessa altura o Estado intervinha muito menos, com leis menos poderosas e instituições que nem existiam, como são actualmente as comissões de protecção quando há crianças envolvidas ou casas de abrigo para vítimas de violência ou medidas  pontuais de afastamento e  protecção  electrónica à distância, sempre que possível.
Nessa altura havia menos protecção a vítimas dessa violência? Bem,  as queixas das vítimas, quando existiam eram consideradas, analisadas e em muitos casos terminadas com acções de consenso ou com julgamentos e condenações. Estas eram muito mais raras que hoje por várias razões  e uma delas era a possibilidade de desistência de queixa, das vítimas, o que era relativamente frequente e originava novas queixas passado pouco tempo.

Permanece porém a questão de fundo: as vítimas de violência doméstica grave estavam então menos protegidas do que hoje?  A resposta não é unívoca. Não é clara. Será preciso estudar bastante estatísticas, processos, etc etc para se poder responder com autoridade e credibilidade.

Com o passar dos anos e a sensibilização paulatina da opinião pública e de quem faz leis, mais ainda o hábito de copiarmos hábitos lá de fora, apareceram novas leis relativas a esta matéria. As alterações ao Código Penal são de 1995, 1998, 2000, 2007 e 2013.
Ao longo destes anos o cerco legislativo, policial e judiciário aos suspeitos de violência doméstica enquanto fenómeno criminal tornou-se eficaz  na medida em que a evolução conceptual chegou em 2007, quando a revisão do Código tornou possível um crime desse género com um único acto de agressão à saúde, fisica ou mental.
Este radicalismo conduziu a novos desenvolvimentos com incidência processual, Ao exponencial aumento de processos crime por violência doméstica, em função daquela crescente "indignação social" , juntou-se a necessidade de os tratar com muita celeridade, tornando-se sempre processos urgentes, com medidas urgentes e intervenção urgente dos magistrados.

Esta dinâmica processual e legal conduziu ao estado em que nos encontramos: a maior parte dos processos crime em Portugal são de violência doméstica ou anda muito perto disso. O fenómeno tornou-se uma praga e parece que ninguém se importa muito com tal situação, aceitando-a como muito normal quando não é de todo.

A violência doméstica enquanto crime grave julgo que deve ser tão grave como era há 30 ou 40 anos.  E digo isso porque não vejo razões para que a violência entre duas pessoas que convivem juntas tenha aumentado tão exponencialmente. Os motivos não são claros e julgo que ainda ninguém os elencou com precisão. E tal seria necessário.

Porém, o modo como se lida com  tal fenómeno é que "engravidou" a  situação e os filhos já são muito mais que as mães.
Os processos dispararam estatisticamente, os casos graves são notícia sensacionalista nas tv´s que gastam horas e horas a dissecar o assunto do momento e na prática os casos menos graves vão-se resolvendo como se resolviam dantes e os mais graves idem.

O que há de novo, mesmo é a premência, urgência e importância dada ao fenómeno por via das instruções e imposições legislativas, regulamentares e de "boas práticas".

O crime de violência doméstica tornou-se o coqueluche da actualidade judiciária e tal é frequente motivo de perplexidade.
Qualquer caso de violência doméstica, seja grave ou seja de menor importância é tratado com o mesmo grau de cuidado e atenção urgente.
As vítimas, verdadeiras, imaginárias ou apenas alvo da violência que geram com o próprio comportamento recíproco, são tratadas com a atenção devida e tornada possível. Podem sair da casa comum, serem acolhidas em lares, serem monitorizadas à distância pelas autoridades que poderão intervir em caso de necessidade e gozam de vários direitos que lhes são explicados num papel que lhes é entregue aquando da primeira audição pelas autoridades. Os autores das agressões, verdadeiras, imaginárias, reais, aumentadas ou inventadas ou distorcidas são abandonados à sua sorte e passam a ser vítimas, por vezes, de uma violência excessiva por parte do Estado.

Para mim é essa violência que gera a violência maior, a que convoca a criatura da foice.   Essa falta de equilíbrio e proporção nas reacções que permite o aparecimento e aumento das mortes por violência doméstica.

Mas se calhar estou a ver mal o problema e é preciso aumentar a "indignação social"...

A tal "indignação social" será isto, agora mesmo noticiado? :

A Polícia de Segurança Pública, na sua página oficial de Facebook, escreve uma carta aberta a todas as mulheres vítimas de violência. “Sabemos quem és e o que estás a passar. Acredita que sim. Queremos ajudar e trabalhamos em conjunto com outros parceiros para te manter segura. Estamos sempre contigo, 24/7. Existimos para isso”, pode ler-se na publicação nas redes sociais.

Mas a força não se fica por aqui e vai ainda mais longe: “A tua família e amigos dizem-te que corres perigo e tens de mudar essa situação. Não é só a violência física, mas a psicológica também”.

A PSP recorda também que “agressões, ofensas e perseguição não podem fazer parte da vida de uma mulher. Ouves ‘não volta a acontecer’, ‘eu vou mudar’, ‘desculpa’ ou ‘a culpa é tua’, mas não é não”.
Para terminar, a Polícia de Segurança Pública sublinha: “Não estás sozinha. Liga-nos ou vai à esquadra mais próxima. Estamos aqui”.


Não sei quem pensa estas "campanhas" mas parecem-me profundamente erradas.  A meu ver, vão ter o efeito oposto ao pretendido e se assim for, são mais que erradas: são estúpidas.

ADITAMENTO:



O correio da Manhã de hoje dá conta de uma manifestação realizada ontem, por mulheres contra a "violência doméstica", violência contra as mulheres, violência de género, como dizem.

Será este o caminho mais próximo da  indignação social ou pública como dizia o entrevistado de ontem?
Se for é selectiva, também violenta e propõe denúncias a preceito, intervenção das autoridades, formação dos magistrados, adequada aos desideratos explícitos: combater os homens, potenciais abusadores e presumíveis culpados nestas causas.

Brecht, um autor estimado nessas margens, dizia que todos dizem que o rio é violento mas ninguém repara na violência das margens que o comprimem. Mesmo mal comparado, podem extrair-se ilações deste princípio de sabedoria prática.

O que pretendem as activistas de género, apoiadas nesta manifestação por "membras" do actual Executivo do Estado ( só faltou a Isabel Moreira a arranjar as unhas durante o percurso) ) é burocratizar ainda mais esta violência de Estado, esperando pelo efeito típico das burocracias de todo o género: a disfunção típica ( aqui enunciada com recurso a Max Weber)  que já ocorre, em que a própria burocracia se transforma num fim em si mesma. A partir do momento da denúncia, esta toma vida própria e independente dos sujeitos, apenas orientada pelas linhas de conduta formatadas nas "acções de formação" e instruções genéricas  que visam "reeducar" quem decide, nas polícias, tribunais e em todo o lado.

E quem divergir é Neto de Moura. Se citar a Bíblia, então é o fim da linha de tolerância. A Bíblia fala de Deus e Este é a referência maldita para os/as activistas em causa...

Esta loucura radical anda associada ao veganismo, animalismo e fundamentalismo de várias cores. Mesmo que não pareça...

São os cátaros  e valdenses das seitas milenares  do nosso tempo. É um espírito que já vem da Idade Média e que nunca nos abandonou enquanto humanidade. Teve reflexos em todos os fundamentalismos, religiosos ou não e em todos os totalitarismos.

 Estas já estão convertidas à seita:


Tendo em atenção o título, a manifestação devia era preocupar-se com o assunto de caixa, do jornal...esse sim é que merecia manifestação.

Sem comentários:

Megaprocessos...quem os quer?