Até aos anos noventa do século passado, os magistrados, do M.P ou da judicatura, eram uma classe discreta e sem relevo social de maior em que até se confundiam nas funções respectivas e nem os jornalistas distinguiam um procurador de um juiz.
A escola superior da magistratura, o CEJ, criada no início dos anos oitenta, era instituição prestigiada pela categoria pessoal e profissional de alguns magistrados que a dirigiam, como Laborinho Lúcio e quem de lá saía vinha preparado para lidar com assuntos judiciários e jurisdicionais, nos tribunais.
Tirando um ou outro caso mais mediatizado numa altura em que as televisões se resumiam aos canais da RTP e os jornais ainda vinham com selo estatizado, os assuntos de tribunal eram anódinos e os magistrados não falavam à comunicação social porque nem eram solicitados para tal.
Lembro-me de um caso singular ocorrido em em 1993, num lugar remoto (Termas de Monfortinho) em que o "inspector da PJ", no caso o procurador Euclides Dâmaso, recentemente jubilado, esclarecia pormenores de um rapto de um menor, deslindado pela polícia, informando o que era possível nas circunstâncias em causa. Antes disso, noutra situação ocorrida no tribunal de V.N. de Gaia, salvo o erro, o procurador no julgamento de um caso de droga, falou aos jornalistas abertamente sobre o assunto no final, esclarecendo o que estava em causa.
Poucos mais casos singulares se podem apontar em que os magistrados falem abertamente aos media sobre os processos em que intervêm. Geralmente não o fazem por terem medo das consequências disciplinares, derivadas da hipotética violação de um famigerado "dever de reserva".
A consequência lógica é uma atávica incapacidade em comunicar o que pode ter interesse para a opinião pública, cada vez mais bombardeada mediaticamente através das televisões em directo, particularmente daquelas que "dão primeiro".
A situação ao longo dos anos piorou significativamente e actualmente são muito raros os magistrados que se atrevem a falar seja do que for que diga respeito a um processo qualquer. Tirando os típicos dirigentes sindicais que se prestam a tal papel por se sentirem com costas mais aquecidas pela função, muito poucos se atrevem a enfrentar o poder na sombra dos respectivos conselhos superiores, colectivos onde predomina uma espécie que se foi aclimatando aos lugares semeando medo e terror: os políticos designados pelas instituições respectivas.
Este ambiente deletério e malsão começou nos anos noventa e pode mostrar-se de algum modo como foi através de recortes de jornais e revistas que dão conta dos fenómenos, melhor do que livros que aliás nem existem.
Em 1990, Laborinho Lúcio foi indicado para ministro da Justiça pelo então governo de Cavaco Silva e em 4.3.1990 o Jornal de Notícias entrevistou-o, dando-lhe oportunidade de manifestar o que pensava sobre a Justiça. O discurso redondinho de sempre não deixava adivinhar nada de especial, mas permitia entender que era adepto de que o que vinha de trás era para seguir para a frente.
É preciso dizer que nesta data os magistrados tinham acabado de ganhar um estatuto remuneratório distinto e deveras favorável a uma dignidade sempre reivindicada. Os problemas do ministério não vinham daí.
Em 7.3.1993 o Público numa crónica de Rogério Martins, um dos artífices do governo de Marcello Caetano, da ala tecnocrática e liberal, dizia o que se passava lá fora e cá dentro, no regime quanto a um fenómeno que ganhava então dimensão assinalável: a corrupção ligada aos políticos do sistema e regime.
Rogério Martins dizia que lá fora ( particularmente em Itália) se faziam coisas contra tal "cancro cívico" ao contrário do que por cá acontecia. E faziam-se porque os magistrados eram corajosos e os "media" independentes dos governos e granjeavam assim o respeito da população em geral . "Mais notável é que as cadeias televisivas públicas também não poupam governantes, políticos ou figuras de peso social atingidas pelos escândalos". E rematava: "Que diferença para a nossa terra!"
Hoje em dia este escrito tem mais validade que nunca com um acrescento: em Portugal desde os anos noventa até agora, a situação dos media piorou significativamente tornando-se dependentes de um poder que não tem interesse em questionar os tais políticos e figuras de peso social. Quem manda nos media, em Portugal e hoje em dia são pessoas e empresas que empregam profissionais encartados em agradar a ideologias e políticas de partidos. Sem excepção notória.
Rogério Martins elogiava a magistratura italiana e espanhola ou mesmo francesa pela sua acção. Por cá a este fenómeno chamou-se depois e continua a chamar "república de juízes" pelos komentadores tipo Sousa Tavares e quejandos pachecos pereiras, assalariados à peça por tais empresas jornalísticas ou de venda de mercearias diversas.
No final dos anos noventa o ambiente político-judiciário em Portugal tornou-se perigoso devido a diversos factores quase todos relacionados com a ausência de escrutínio mediático, isento e competente.
A maioria dos órgãos de informação ainda eram providos de jornalistas sem cursos de comunicação social e alguns deles virados mais para a política partidária ou a dos interesses particulares daí derivados. Os cursos que vieram a seguir, ministrados pelos antigos jornalistas pioraram ainda mais porque se acantonaram em ideologias espúrias e de moda. A ausência de formação cultural fez o resto.
O jornal Independente, aparecido no final dos oitentas, não é excepção a tal estado de coisas porque na altura Paulo Portas dirigia o jornal como arma de destruição maciça de políticos de um certo bloco centralizado nos governos de Cavaco Silva e nos seus ministros da "meia branca", como os que vieram a patrocinar os BPN é outras manigâncias com os fundos sociais da Europa.
Uma das forças de bloqueio a tais entorses democráticas que corroem o regime por dentro, foi incontestavelmente o procurador Cunha Rodrigues, um juiz que se dedicou à função de procurador-geral em modo quase exemplar não se desse o caso de estar demasiado enfeudado a um soarismo e almeidasantismo mais do que seria desejável. Esse pecado quase mortal e sem redenção impediu-o de limpar o sistema como os magistrados italianos o fizeram com o mesmíssimo tipo de problemas embora de outra dimensão.
A explicação cabal do que se passou é simples de apresentar e fez-se nas páginas do Expresso de 27 de Janeiro de 1996.
Um conhecedor "por dentro" dos meandros do poder soarista e almeidasantista e da mafia que se criou em Macau e que agora tem a sua expressão no governo que temos ( António Costa e Eduardo Cabrita e outros como Pedro Siza Vieira, são dois indivíduos que conhecem isto de ginjeira porque lá estiveram na altura...) dizia então que era tudo uma corrupção medonha e pior que na Itália.
Apesar disso Cunha Rodrigues, intelectualmente esclarecido e pensador seguro de princípios, sempre admitiu que os magistrados pudessem falar, sempre que necessário, livremente e sem constrangimentos de medo dos processos e inquéritos disciplinares. Ao contrário do que hoje sucede com a influência de alguns gnomos, feitos ajudantes de ministérios e morgadios políticos, feitos juízes quando nunca deveriam ter saído das secretarias burocráticas onde trabalharam como mangas de alpaca.
Em 8.8.1994 Cunha Rodrigues dizia o que nunca ninguém da magistratura até então dissera e aliás não mais se disse, porque o actual estado da arte é o do silêncio de medrosos, tartufos e carreiristas:
Por causa disso, no final dos anos noventa os políticos interessados no bloco central decidiram tacita ou expressamente modificar o sistema judiciário, certamente para impedir veleidades como as italianas. O modo concreto foi claro: introduzir nos conselhos superiores das magistraturas elementos designados por eles para controlarem por dentro o que pudesse ser controlado, mormente o poder de certos magistrados em processos concretos e perigosos para tais interesses.
O método usou as mentiras e aldrabices de sempre, como acontece agora com a extinção do TCIC na sua fórmula actual e pelos mesmíssimos motivos: impedir o são funcionamento da justiça relativamente a tais interesses colocando obstáculos diversos às tarefas dos magistrados ou removendo os mais incómodos.
Em Novembro de 1997 estava em curso tal mudança radical, justificada sempre pelos argumentos democráticos e de legitimidade reforçada, imbatíveis em qualquer discussão mas falsos como judas.
Em Janeiro de 1998 a revista PM mostrava o que estava em jogo, sempre com o pano de fundo da legitimidade democrática hipócrita:
Em Dezembro de 1998 a revista Política moderna dava um pequeno resumo dos problemas que viriam a seguir, envolvendo a magistratura e os políticos.
Em 29 de Julho de 1999 o então presidente do STJ, Cardona Ferreira dava uma entrevista ao suplemento do Primeiro de Janeiro, Justiça e Cidadania, em que mostrava alguns dos problemas que o sector enfrentava e dizia algo sobre os magistrados, mas com aquele véu próprio de quem não consegue falar claro e se torna completamente inútil no discurso:
Quem falava mais claro e sem papas na língua era outro magistrado que conheceu por dentro os processos e casos que passavam no tribunal da Boa Hora, incluindo o relativo ao assunto que aquele destacado militante do PS denunciava no livro dos contos proibidos.
Em 29 de Maio de 2009, dez anos depois do que aconteceu no CSM ainda podia falar assim, dizendo tudo que há para dizer e que hoje nenhum juiz se atreve a dizer, por causa dos tais gnomos que ameaçam inquisitorialmente quem o fizer.
O juiz Ricardo Cardoso, actualmente desembargador, se desse hoje em dia uma entrevista em que dissesse isto que então disse e que é a exposição da corrupção do sistema político que temos, estava feito num processo de inquérito disciplinar por violação de vários deveres funcionais ( os gnomos arranjam sempre um pretexto legal para tal, como os russos fazem aos opositores).
Há poucos anos o juiz Carlos Alexandre deu uma entrevista quase inócua, deste ponto de vista, a uma estação de tv. No mesmo dia em que foi anunciada a transmissão da entrevista soube-se que lhe tinha sido instaurado um inquérito disciplinar, por suspeita de violação de tais deveres funcionais que constam do cardápio dos deveres da função pública, aplicável aos magistrados. O resultado do inquérito foi o arquivamento mas não sem os gnomos do costume terem exercido o seu poder inquisitorial e com vista a dar o sinal que está em vigor: quietos, calados e direitos! Senão...
A evolução em vinte anos, na magistratura e quanto ao direito a uma liberdade de expressão foi como se vê: primeiro inundar os conselhos superiores com elementos da "sociedade civil", para reforçar a democracia e aumentar a legitimidade dos magistrados. Depois, através de tal estratagema, calá-los.
Objectivo conseguido!
Em vinte anos o sistema judicial transformou-se num sítio de corajosos silenciados pelo medo em que apenas falam e escrevem os que são inócuos para o sistema, incluindo agora os dirigentes dos sindicatos da magistratura, domesticados na ausência de cultura e visão e por isso cúmplices da mordaça e alguns habitués da catilinária estafada e inconsequente contra a corrupção.
É essa a "dimensão pessoal" dos magistrados que temos: diminuídos na capacidade em se exprimirem livremente, reduzem-se a si mesmos ao trivial da função procurando escapar ao opróbrio que nem sentem.
Sem comentários:
Enviar um comentário