terça-feira, janeiro 04, 2022

Alta fidelidade caseira

 Há 50 anos em Portugal a alta fidelidade em som era assunto marginal aos media. Tirando uma ou outra publicidade a "aparelhagens" comercializadas por casas como a Valentim de Carvalho não havia modo de se saber em letra de imprensa o que havia no mercado e quais aparelhos valia a pena experimentar. 

Produtos havia, importados, como mostra esta publicidade a colunas de som americanas, as AR, na revista Mundo da Canção de Janeiro de 1972. Vendiam-se no Porto e em Lisboa a gente com dinheiro, certamente para ouvir jazz ou música clássica. Rock, duvido...


Ou esta que aparecia no jornal Disco, música e moda, ainda de 1971, a publicitar produtos japoneses que viriam a inundar o mercado dali a alguns poucos anos:


De resto, ouvia-se boa aparelhagem de som nas "discotecas", ou seja nas lojas de discos, et pour cause, uma vez que eram a melhor forma de os publicitar e em muitos casos soavam melhor nesses locais que em casa. 

Com a sonoridade dos inúmeros discos que então sairiam, os pink floyd, rolling stones e outros led zeppelin ou deeppurple, mais os cat stevens todos que se poderiam chamar elton john ou mesmo don mclean os anos setenta passaram rapidamente até chegar a 1974. 

Nessa altura já me contentava com este pequeno combo de rádio gravador e até o cheguei a procurar num efémero Clube do Livro e do Disco que o oferecia a preço mais convidativo para quem se tornasse sócio e ipso facto concorrente do Círculo de Leitores. 

Nem assim encontrei o objecto desejado e tive de me contentar com uma alternativa que se revelou bem mais interessante. Esta que permitia a ligação do gravador autónomo e eventualmente superior ao integrado naqueloutro aparelho: 


Foi assim que gravei algumas cassetes que se desgravavam e voltavam a gravar logo que o Quadrophenia dos The Who já fora bem ouvido e dava lugar ao The Lamb lies down on Broadway dos Genesis e a sua introdução pianística e misteriosa. Eventualmente a cassete esgotou-se dali a alguns anos com o Communiqué dos Dire Straits, e assim ficou a soar até hoje, com muitas saudades das gravações passadas.  

Por essa altura a Página Um e outros programas radiofónicos como o Dois Pontos,  aguçavam o apetite pela audição em condições sonoras aperfeiçoadas e um pouco mais sofisticadas que a dos transístores dos aparelhos portáteis, mesmo em qualidade Grundig ou Philips.

Ainda assim, as publicidades mais apetecidas só apareciam nas revistas estrangeiras, como esta de 1974 que mostra o que os japoneses tinham aperfeiçoado nos aparelhos de cassetes e as colunas que nunca tive e ainda hoje gostaria de ter, as JBL L 100 para ouvir música rock. 


Ou esta que mostra num artigo desenvolvido o universo inatingível de aparelhos de alta gama que se vendiam na América, no Verão de 1974,tirada de uma revista que se comprava por causa dos artigos...
 



Algumas destas aparelhagens ainda hoje soam bem se estiverem afinadas e em boas condições. à míngua destas pequenas maravilhas, a publicidade por cá, no caso num Expresso de 1974 dava conta de um "combo" cuja perfeição estética me fazia salivar de desejo sonoro:


Nesse Verão de 1974 uma revista francesa de banda desenhada ( Pilote, a nova série) mostrava outra sofisticação ainda mais aprimorada nessa estética da Sony que se viria a repetir nas décadas seguintes, até hoje:


"Cadeia de alta fidelidade compacta", nem mais! Gira-discos, gravador de cassete, amplificador e colunas, mais os botõezinhos esteticamente perfeitos e alinhados, tudo num pacote e reclamando qualidade hi-fi! Até fazia esquecer os Crown, ou Marantz e os Thorens e JBL da publicidade americana, cada vez mais inatingível com a bancarrota de 1976. 

Nesse ano as dificuldades económicas que tínhamos devido às aventuras do prec seguidas do socialismo democrático acelerado a caminho de uma sociedade sem classes, constitucionalmente garantida, os produtos que apareciam no nosso mercado eram de...contrabando. E havia de tudo, no Porto, na rua Escura; em Lisboa na Almirante Reis e noutros locais como Coimbra, nas couraças dos Apóstolos da urbe de quebra-costas. 

Assim, quem não tem cão, caça com gato se quiser apanhar alguma coisa aos ratos cada vez mais abundantes no respectivo largo e por isso era necessário saber alguma coisa sobre o assunto. A revista Science&Vie de finais de 1975 ensinava os rudimentos do som e introduzia os mistérios das maravilhas da alta fidelidade:


E também os americanos que apesar da abundância de produtos caseiros e japoneses estavam ainda na idade da expansão hi-fi, mostravam interesse em explicar os rudimentos desses fenómenos, com artigos especiais nas revistas da especialidade, como a Stereo Review:  





Em Portugal na mesma altura apareceu a revista Música & Som, para dar conta destas realidades, à dimensão caseira e portanto...pobre, condição que nos garantiram durante décadas. Até hoje. Logo no primeiro número de Fevereiro de 1977, aparecia o estudo do som:



Até aos anos oitenta o panorama não se alterou substancialmente. O contrabando continuou a ser a principal fonte de aprovisionamento de produtos de alta fidelidade de alta qualidade porque as importações legais estavam restritas às condições económicas de sujeição aos fmi´s e outros credores do país. 
No início da década a Grundig ( que tinha fábrica em Braga)  lançou um produto, também em "combo" que prometia alta-fidelidade segundo as normas e a preço razoável. Incluía um gira-discos Dual, um amplificador suficiente, um leitor e gravador de cassetes ( com sistema Dolby)  e ainda um sintonizador de rádio. Foi um sucesso e foi essa a minha primeira alta fidelidade a sério que me permitiu ouvir os sons doces e suaves da guitarra acústica Ovation que Paul Simon usa no The Concert in Central Park ou os sons electrónicos do Movement dos New Order :


Nesses primeiros anos da década e pouco antes do aparecimento da revolução sonora que foi o cd, a aparelhagem para ouvir discos foi essa, embora visse outras nas publicidades das revistas de especialidade, cada vez mais apelativas porque foi nessa década que se desenvolveu a indústria respectiva. 

High Fidelity americana de 1983, com um dos auscultadores mais aperfeiçoados que me foi dado ouvir e ainda por cima baratos. O modelo HD-40, muito leve, ainda hoje me serve para ouvir música com qualidade, a par de outros da mesma marca alemã: 


 


E de 1984, com a Sony outra vez a inovar nos produtos de alta fidelidade de "consumo", já com o cd na mira. Foi neste tipo de colunas e aparelho de reprodução de cd´s que ouvi pela primeira vez tal inovação tecnológica e que me pareceu espectacular: 


O aparecimento do cd logo no início da década, foi precedido nessa revista de um estudo publicado com opiniões dos peritos sobre a qualidade inerente ao novo media, em Janeiro de 1983. As conclusões dos entendidos não eram unânimes quanto à qualidade intrínseca do som do cd, para além da manifesta conveniência e facilidade de uso:


Na Inglaterra, para seguir a onda apareceu em 1985 uma revista inteiramente dedicada à divulgação
 das novas gravações em cd, Which Compact Disc, um apêndice editorial da mais tradicional Hi-Fi for Pleasure. 
Todos os meses aparecia a lista dos novos lançamentos, com discriminação, sempre que possível da indicação em acrónimo de as gravações serem de fonte analógica (A) ou digital (D).  


Na América, dali a algum tempo também surgiu revista idêntica, aqui num número de 1991: 


E em Portugal? Pois logo no início da década de oitenta havia nos jornais de espectáculos ( Sete, Êxito) pequenas secções dedicadas a tais assuntos e destacou-se desde logo o principal entendido na matéria, em Portugal e com expressão mediática: José Victor Henriques, um pioneiro e ainda hoje no activo da informação detalhada e com escrita inimitável e muitas vezes pitoresca acerca dos produtos inovadores que apareciam no mercado. 
Actualmente e desde há muito tempo tem poiso certo no Hificlube.net que vale a pena visitar. Uma das  últimas crónicas é sobre umas colunas de som que bem gostaria de ter (Magico A1) e diz muito sobre o estilo original e  particular que aliás me agrada, do seu autor.

Logo que surgiu o fenómeno da gravação digital do som, primeiro em cd, JVH acompanhou o assunto, tal como o fez relativamente ao seu desenvolvimento posterior, com o aparecimento dos melhoramentos introduzidos pela indústria, particularmente o DVD, incluindo o Audio, passando pelo Bluray e pelo SACD, o pináculo do som digital melhorado, segundo a sua opinião que aliás partilho.

JVH escrevia artigos para mim interessantíssimos em suplementos do jornal Diário de Notícias, como este, de 16.11.2002, precisamente sobre o tema da melhoria sonora introduzida na gravação digital: 


Ou em Março de 2001 acerca do sacd:



Uma das contrariedades do sacd era a de não se poder gravar digitalmente em formato "nativo", ou seja, com a resolução típica do meio, como se podia fazer com o cd ou mesmo o dvd e bluray, depois de alguns passes de mágica no software. 
Durante anos andei à procura do modo de lá chegar pois sabia que havia gente armada em "hacker" capaz de tornear as dificuldades técnicas e as barreiras tecnológicas introduzidas pela Sony para impedir tal desiderato. Faziam-no com as primeiras máquinas da Sony Playsation 3, de determinado modelo. 
Depois de longas horas de pesquisa, dei conta que um leitor de bluray, Pioneer, modelo BDP 160 ( suponho que nunca esteve à venda por cá...mas há outros que podem ter a mesma função, embora restritos a certas marcas e modelos) associado a um pequeno  programa de software disponibilizado pelos entendidos, na NET ( ainda hoje é possível ir buscá-lo e transferi-lo para uma pen que se introduz nas traseiras, salvo seja, do Pioneer, numa entrada usb)  e tendo uma ligação em rede, é possível transferir toda a informação digital contida nos sacd. Já fiz a experiência e resultou em pleno.  

E pode perguntar-se: qual a vantagem de tal operação? Pois...é a de ter em formato digital e ficheiro transportável, mesmo em cartão sd, a música e o som que de outra forma só se ouve com o disco físico ou quando muito com o "download" em sítios da especialidade ( e caros) de tais ficheiros em formato dsd.

Toda esta evolução tecnológica porém, nunca fez perder de vista o som analógico ou reproduzido nas aparelhagens clássicas, através do vinil e dos gira-discos convencionais, mesmo que transposto para ficheiros digitais, depois de gravado em alta resolução ( no caso dsd, porque também já é possível fazê-lo, a par do mais vulgar pcm) e reproduzido através de aparelhos de descodificação do digital para analógico, no meu caso da marca Ifi ( actualmente Neo e também iDSD BL).

Para a reprodução de tais sonoridades continuam a existir e a produzir-se todos os anos as "aparelhagens", algumas cada vez melhores e de marcas com décadas de tradição. 
É sobre tais aparelhagens que as revistas da especialidade se alimentam geralmente em periodicidade mensal e em mercados alargados como o anglo-saxónico ou teutónico. Os títulos Hi-Fi News, Hi-Fi Choice, Stereophile ou Haute-Fidelité ou ainda diversas alemãs com a palavra Audio no título vendem-se e aparecem regularmente nos escaparates ( com excepção das alemãs, curiosamente que nunca por cá apareceram). 
Em Portugal, logo na segunda metade dos anos oitenta e pela mão também do mencionado especialista JVH apareceu uma revista cuja apresentação deixava um pouco a desejar apesar de ser a cores e ter papel lustroso, demasiado e pesado para folhear com gosto. O título que comprei logo nas primeiras edições era IMASON e que depois se autonomizou para outro título, Audio e mais tarde Audio-Cinema em Casa. 
Outro responsável por tais edições foi um indivíduo que emparceirou com JVH, de seu nome Jorge Gonçalves e foi o primeiro impulsionador de tais publicações e organizador durante anos de exposições dedicadas a produtos audio, as conhecidas Audio-Show. 
Obviamente que nestas andanças aparecem ligados os comerciantes de tais produtos, que financiam através de publicidade tais revistas e contribuem para se dar a conhecer ao público nacional o que de melhor se faz lá por fora, na indústria europeia, japonesas e americana. 
Um dos grandes comerciantes desta área é a Imacústica do Porto, onde aliás comprei alguns dos componentes da minha primeira aparelhagem, já quase no final dos anos oitenta e ainda nas instalações da Duque da Terceira. 
A história destas revistas foi agora contada na primeira pessoa pelo mencionado Jorge Gonçalves, por ocasião do fecho da revista em causa. A Audio, terminou, com um número especial:





E os audio-shows, interrompidos com a crise sanitária, talvez retomem um dia destes. Desde 1990 que são as ocasiões para se conhecer e ouvir ao vivo o que as marcas têm para oferecer: 


Quanto ao nosso mercado nacional, pois desde finais da década de oitenta que está em crise...e continua.




Porém haverá sempre os incondicionais da busca do graal sonoro, mesmo através de revistas. 

Uma das melhores apreciações desta fauna particular entre a qual me incluo, com todo o garbo, é um artigo de um francês da Rock & Folk, Philippe Manoeuvre que em Dezembro de 1999 fez assim o seu relato pessoal da descoberta do nirvana sonoro proporcionado pelas "aparelhagens": nem sempre ilusório mas inefável e aditivo. 




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