A revista Sábado desta semana tem um artigo de encarte, com meia dúzia de páginas sobre os discos de 1973 e que titula- "Há 50 anos era esta a música que rodava".
O autor, Pedro Henrique Miranda, podia ter escrito outra coisa, sobre algumas músicas de 1973 ou até, como evidentemente fez, consultar a internet e compor o ramalhete, evitando alguns disparates escritos.
Na introdução ao artigo é difícil escrever pior que isto sobre a música de 1973:
"Há 50 anos, a música sofria uma reviravolta como raramente se viu" !
E vai de pedir ajuda a Júlio Isidro, um veterano das andanças mediáticas, para o ajudar a compor a "música que se cantava em Portugal" ( sic) e assim reuniu " os discos de 1973 que ajudaram a inventar a música como hoje a conhecemos".
O veterano mediático lá lhe disse que nessa altura, em Portugal e no rádio, a programação era "sortida" querendo significar o que o autor não entendeu: que se ouvia no rádio " proporções diversas de música portuguesa, brasileira, italiana, francesa, espanhola e anglo-americana" , o que aliás era verdade, embora apenas em certos programas.
Apesar de o autor atribuir a locução do programa Em Órbita, a Júlio Isidro em 1973 e deixar implícito que passaria música anglo-americana, na qual se especializou, a verdade é que o Em Órbita nesse ano já não passava música desse género, tendo-o trocado por música clássica, erudita, em 1971. E não era, segundo julgo, Júlio Isidro quem o animava...como mostra esta imagem do jornal Disco, música e moda, tirada de um blog ali citado. Está tudo na internet...mas é preciso saber procurar:
A música de expressão francesa, italiana ou espanhola é corrida a um pequeno parágrafo, com citação de dois ou três artistas, incluindo um- Serge Gainsbourg- sem qualquer relevância em 1973. Teve-a, sim, mas anos antes e por causa do célebre Je t´aime, moi non plus, que passou no rádio nacional quando era proibido por exemplo, em Itália.
Jacques Brel, em 1973, também é muito duvidoso que tenha sido ouvido no rádio, assim tanto, apesar de Júlio Isidro gostar de o ouvir. E há uma razão prosaica para tal: Jacques Brel não editou nenhum disco em 1973. É possível no entanto que nesse ano se ouvisse outra vez Ne me quitte pas, de 1960 por ter sido reeditado em 1972. Não obstante, Brel só se tornou moda do rádio, anos mais tarde, em 1977 com o disco homónimo então lançado, aliás um grande disco.
Quanto a Leo Ferré era mesmo um ferrinho em certos programas de rádio da altura e em 1973 lançou um dos seus discos mais célebres- Il n´y a plus rien- que me lembro de ouvir na época e no rádio, com Júlio Isidro ou com outros.
De resto Leo Ferré era um velho anarquista muito estimado pelos radialistas portugueses como Júlio Isidro, um conhecido libertário do belo chique burguês, apreciador de pullovers Pringle.
Falta no entanto mencionar um artista francês passou em 1973 no rádio, com disco do ano anterior e importado provavelmente em 1973. Este, publicitado pela Cinéfilo de 4.12.1973:
E e
ste disco de 1973 de Maxime Le Forestier, simplesmente fantástico e que se não passou em 1973 devia ter passado, porque todas as músicas e letras são de grande qualidade, com melodias memoráveis. Tal como o do ano anterior, aliás, saído no final do ano de 1972.
Forestier continua a trabalhar.
Na música brasileira também aparecem citados Chico Buarque, Milton Nascimento, Elis Regina, Caetano Veloso e Gilberto Gil, sem discos nomeados.
Vamos lá a ver...em 1973 saíram bons discos de mpb que foram ouvidos por cá. Porém, da dupla Chico/Caetano, o mais provável é que nesse ano ainda se ouvisse mais um disco do ano anterior ,
Juntos e ao vivo que foi um verdadeiro sucesso por cá. Em 1973 e a solo, nenhum deles publicou disco memorável. Tal como Gilberto Gil ou mesmo Elis Regina.
No ano seguinte, em 1974, sim, foi publicado um grande disco reunindo GIlberto Gil e Caetano Veloso, ao vivo, chamado
Temporada de Verão. Quanto a Milton Nascimento publicou de facto um grande disco em 1973,
Milagre dos Peixes, com repetição no ano seguinte, em versão ao vivo e seguramente mais ouvido do que a versão em estúdio.
Milton Nascimento e a música brasileira de qualidade acima da média só em meados dos anos setenta mereceu destaque em Portugal pela mão de José Nuno Martins aos comandos dos gira-discos do rádio, em programas dedicados.
O que se ouvia em 1973 e com muita insistência foi outra música aqui nem sequer mencionada.
Um disco esquecido de Raul Seixas,
Krig-ha, bandolo! e um outro, já mais no final do ano, ainda em versão original e que foi uma autêntica revelação,
o dos Secos & Molhados, grupo que integrava, além de Ney Matogrosso, o músico oriundo de Faldejães, Arcozelo, Ponte de Lima, chamado João Ricardo, emigrado para o Brasil com os pais, alguns anos antes.
Estes discos, foram verdadeiros sucessos de audição em 1973, com passagem para 1974, nos rádios nacionais.
Raul Seixas com as canções Mosca na sopa e principalmente Ouro de Tolo e os Secos & Molhados, com várias porque o álbum, com um pouco mais de meia-hora de duração, é um compêndio de boas músicas, como Sangue Latino, o Vira, O patrão nosso de cada dia, Rosa de Hiroxima, etc. Admira como estejam esquecidos, estes discos :
O disco dos Secos & Molhados só foi publicado em edição nacional em Abril de 1974 mas já era conhecido do ano anterior, na versão original, porque em Portugal no rádio da época havia outro fenómeno interessante que era o de alguns divulgadores de música e cultura brasileiras, com acesso aos media, como James Anhanguera e outros aparecerem a apresentar a música do seu país.
Na música nacional o destaque vai para os discos de Sérgio Godinho e José Afonso, com justiça porque são dois bons discos que eram efectivamente ouvidos no rádio da época, particularmente Venham mais cinco, um grande disco que foi uma pedrada no charco da música popular portuguesa, maior do que a do disco de Sérgio Godinho.
A menção a Amália é algo despropositada porque a artista, em 1973 era simplesmente ignorada como estrela de música popular portuguesa, como hoje é. Era uma fadista, como outras.
Júlio Isidro recorda ao autor do artigo que via na sua cabine radiofónica "
discos de Luís Cília proibidos". Talvez fossem, mas já alguém se deu ao cuidado de ler as letras das canções de tais discos? Aliás, em 1973 o disco de Luís Cília que estaria proibido, desse ano,
foi este, com letras como o
Le chant du déserteur em francês porque foi editado em França, pela Chant du Monde.
O que acho curioso é estes jornalistas ignorantes e que escrevem patacoadas a preceito, como demonstrado- e há mais...-sentirem-se obrigados, se calhar por causa dos professores nos cursos que tiveram, em mencionar sempre a censura e os censores e a ditadura e os discos proibidos. Deve parecer-lhes que se tal não mencionarem a propósito dos discos editados antes de 25 de Abril de 1974 a redacção não fica feita como deve ser, mostrando de caminho que aprenderam bem a lição.
Assim, lá aparece o Cília fora de tempo e também a canção Tourada, do Tordo que ganhou o festival da canção desse ano e que segundo Júlio Isidro nem se sabe como passou no crivo da censura...e o mesmo acha que passou por causa da "incultura" dos censores, o que é de rir, mas enfim.
Aliás nem se percebe como é que em Janeiro de 1973 o autor da letra da canção, o celebrado comunista ou cripto que tal, o poeta Ary, era capa de revista de grande difusão na época em que se escrevia que Ary era o tom do festival...imagine-se! E compare-se com o tom do artigo da Sábado...
Este Ary esta mais popular que os tremoços, nos festivais da canção dos anos setenta. Como dizia um dos organizadores, "dr. Oliveira Martis" à R&T de 27de Janeiro de 1973, a escolha de muita poesia daquele era explicada em modo prosaico que afasta a tenebrosa e insinuada conspiração da Censura:
Aliás a música nacional em 1973 não foi por aí além, como se davam conta os críticos de ocasião da época, como uma que escrevia na R&T e ainda ensina por aí, segundo julgo, no artigo síntese sobre o ano musical de 1973, na R&T de fim de ano. Teresa Botelho era a melhor crítica de música popular da época, repetindo ao mesmo tempo os chavões habituais da crítica especializada lá de fora, como a da Rolling Stone, a Rock & Folk e provavelmente a Crawdaddy. [Aliás ocorreu-me agora, em aditamento ao postal, uma dúvida acerca do acesso a tais revistas e ao mesmo tempo o acesso aos discos que eram recenseados, mormente os da West Coast que não costumavam chegar cá, como era o caso dos Grateful Dead e afins. Como é que a crítica ouvia tais discos para escrever sobre tal música?]
Sobre a música internacional aparece o óbvio ululante dos Pink Floyd e outros como os Procol Harum com o disco
Grand Hotel, de grande repercussão por cá (
tocaram em Cascais em Fevereiro de 1973, num espectáculo raro, no género) e aparecem outras referências óbvias, eventualmente copiadas da internet.
O que a internet não ensina a quem não sabe procurar é que o reggae enquanto estilo musical e género particular não era ainda música que se ouvisse como tal em 1973, ao contrário do que escreve o autor, destacando Bob Marley e o disco Burnin´saído nesse ano.
O reggae de Bob Marley ou de outro qualquer jamaicano ainda não se ouvia em 1973 como passou a ouvir-se nos anos seguintes, particularmente em 1975 com o disco Live e o tema No woman no cry e a divulgação de I shot the Sheriff, por Eric Clapton em 1974, desse tema de bob Marley.
Nenhuma tabela de venda de discos o atesta, assim como nenhuma história da música popular o confirma. Logo é uma asneira escrever que se ouvia Bob Marley em Portugal, em 1973 como se passou a ouvir alguns anos depois.
A primeira vez que se ouviu qualquer coisa semelhante ao reggae em Portugal foi anos antes com o tema
Wild World, de Cat Stevens, cantado por Jimmy Cliff. E o termo reggae só nos anos seguintes passou a ser usado como designação de música desse género. Aliás
qualquer artigo de enciclopedia ou wikipedia o confirma. O lp
Burnin´de Bob Marley, de 1973 provavelmente nunca foi ouvido em Portugal nessa altura e no estrangeiro consta que vendeu poucos exemplares...
As músicas que se escutavam realmente em Portugal nesse ano e nos rádios, bem como nos discos vendidos, eram mais estas,
aqui mencionadas e que passam completamente ao lado do artigo em causa:
Suzi Quatro , com uma xaropada intensiva no rádio com "can the can"; Gilbert O´Sullivan com um tema para esquecer; , Strawbs e Part of the Union, de que me lembro bem e muito apreciava; Doobie Brothers e Long train running de que não me lembro e aprendi depois a lembrar-me porque é muito bom; Eagles e Tequila Sunrise de que nunca me esqueci e continuo a ouvir muitas vezes; Steve Miller o assobio de Joker, inesquecível; John Lennon e o fantástico Mind Games, só replicado no disco do ano seguinte; Ringo Starre e Photograph que me faz sentir nostálgico; Angie dos Rolling Stones que ouvi vezes sem conta e tentei aprender a tocar porque não é difícil; e, claro, os Pink Floyd do álbum desse ano, Dark Side of the moon, prestes a ser reeditado em formato de luxo; o grande single de Paul Simon, Kodachrome, com um ritmo preciso e precioso; E outros, como Just you n ´me dos Chicago VII que apreciava muito na altura e agora.
Essa era a música estrangeira que se ouvia e merecia ser ouvida, em 1973. Quanto ao que se anunciava para venda era assim, como mostra a revista Mundo da Canção de alguns meses desse ano:
Havia quase tudo o que de importante se publicava lá fora, o que não quer dizer que fosse o mais popular ou passasse no rádio.
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