Chegou-me por email este artigo de Jaime Nogueira Pinto que se explica a si próprio:
#NÃOPODIAS
Estando,
neste regime e neste país, preparado há muito para tudo, confesso que fiquei,
por uma vez, surpreendido.
29 abr. 2023, 00:1985
- JAIM NOGUEIRA PINTO
Pensei, em primeiro lugar, que se tratava de uma manobra da reacção, de uma
campanha engendrada por saudosistas do fascismo, sepultado há 49 anos, e que,
para desacreditar o regime democrático, tinham publicado, como que vindos de
genuínos antifascistas delirantes, os cartazes e as frases do Antes
do 25 de Abril #NãoPodias.
Mas não. Era mesmo uma campanha institucional, presumo que generosamente
financiada, com o objectivo de “Dar ênfase às liberdades conquistadas com a
revolução dos cravos, mostrando aos mais novos o que não se podia fazer antes
do Dia da Liberdade”, porque “Conhecer a História é imprescindível para
compreender o presente e construir o futuro.”
Trata-se nitidamente de uma campanha de Acção Psicológica que cumpre um
duplo objectivo: entreter os mais novos, sensibilizando-os para a amordaçada
existência juvenil dos agora “idosos”; e surpreender os que, antes do Dia da
Liberdade, já tinham atingido a “idade da razão”. Não sei quem tem a
responsabilidade da campanha, mas, se fosse seu correligionário, ficaria
seriamente preocupado.
Senão, vejamos algumas das coisas que não podíamos fazer antes do 25 de
Abril:
#NãoPodias esperar pela namorada ao sair das aulas
Lamento desiludir os mais novos, mas não foi a revolução dos cravos que
veio acabar com o “namoro de janela”. Eu andei, no Porto, no Liceu Normal de D.
Manuel II, um óptimo estabelecimento de ensino onde tive excelentes
professores, geralmente de esquerda, que me marcaram profundamente pelo seu
saber, amor à profissão e atenção aos alunos. No fim das aulas, íamos em bando
para a porta do vizinho liceu feminino Carolina Michaellis ver a saída das
“miúdas”. Alguns, os que ali tinham namoradas, iam buscá-las e acompanhavam-nas
a casa. Outros, ficávamos a ver, a conversar e a tentar a sorte, por vezes
através de piropos, geralmente decentes e inocentes (coisa que hoje #NãoPodes).
#NãoPodias beber vinhos franceses – não podiam entrar no mercado nacional
bebidas estrangeiras
Bebia-se whisky, sim, e não era nacional; e, pelo menos nos bons
restaurantes de Lisboa e do Porto, havia vinhos franceses. É natural que nesse
período, anterior à entrada de Portugal no Mercado Comum, houvesse impostos
altos para proteger a produção nacional, que era de boa qualidade. Enfim, não
beber vinhos franceses podia ser uma provação infligida pelo antigo regime, mas
a revolução dos cravos só nos veio libertar dela com a entrada na CEE. Agora,
embora haja vinhos franceses relativamente baratos em qualquer supermercado
nacional, representam um grande #NãoPodes para um número cada vez maior de
portugueses (a par de muitos bens de primeira necessidade).
#NãoPodias ver um filme dobrado
Lá isso é verdade. Ao contrário do que acontecia no Brasil e em Espanha,
países onde vivi no exílio depois do 25 de Abril (porque #NãoPodias não gostar
de cravos vermelhos), os filmes em Portugal não eram dobrados, e a prática,
graças a Deus, continuou com a democracia. O argumento avançado pela campanha
de que a legendagem ajudava à censura é, no mínimo, insólito, pois quem fazia a
dobragem também teria de ler um texto e a legendagem permitia até a comparação
com o original. Na altura, vi muito filme com muita legenda em Portugal, mas
nunca vi traduzir-se “extrema-esquerda” e “ultra-esquerda” por
“extrema-direita” e “ultra-direita”, como há dias na reportagem da RTP sobre as
manifestações de França.
#NãoPodias ter as pernas à mostra nas praias
A grande revolução dos costumes não se deu com a revolução dos cravos,
deu-se bem antes, nos anos 60, com os Beatles, o biquíni, a mini-saia, os
grupos yé-yé. Lembro-me de que, até ao final dos anos 50, até para os homens
havia uma regra nos fatos de banho, que tinham de ter uma espécie de peitilho;
mas isso acabou por volta de 1960. E bem antes do 25 de Abril já se usavam
biquínis nas praias portuguesas.Tive muitas amigas e conhecidas que usavam biquíni
nesse tempo. O “Biquíni pequenino às bolinhas amarelas” era aqui cantado, desde
os anos 60, por Pedro Osório e Seu Conjunto; e todos conhecíamos o “biquíni
encarnado” que, em 1968, Natércia Barreto levava para a praia juntamente com o
rádio portátil e os óculos de sol (além do pente, do espelho, do bâton e do
“creme muito bom”). Não é difícil deduzir que houvesse também pernas à mostra.
Mas a comissão para a comemoração do 25 de Abril, lá saberá de outras praias,
talvez mo Mar Negro ou no Báltico da RDA, onde os costumes seriam mais
vigiados.
#NãoPodias sonhar com um curso
A taxa de escolaridade e frequência de cursos médios e superiores era com
certeza inferior à de hoje, como em qualquer país europeu. No entanto, os
licenciados não tinham de emigrar porque #Podiam sonhar com um emprego em
Portugal.
#NãoPodias viajar sem autorização
Outra vez, o redactor desta frase deve estar a confundir o Portugal de
antes de Abril com a então União Soviética… Independentemente do facto de, há
50 anos, aqui e no resto do mundo, se viajar muito menos, sobretudo para o
estrangeiro, no meu caso concreto – e de todos os jovens que tínhamos feito 20
anos e estávamos a aguardar a incorporação militar –, tínhamos de pedir
autorização para deslocações ao estrangeiro; mas o resto era livre. Quanto às
mulheres casadas, foi antes da revolução que deixaram de precisar do aval do
marido para viajarem sozinhas.
#NãoPodias ler o livro que quisesses
Havia alguns livros proibidos ou retirados de circulação, ora por razões
políticas, ora por serem considerados moralmente impróprios. Mas quem tivesse
vontade de ler, lia. Li as principais obras de Marx e Lenine em francês ou em
edições brasileiras. Os escritores esquerdistas e comunistas, franceses e
italianos, estavam todos na edição corrente. Quanto à “moralidade”, li a Lolita, de
Nabokov, e O Amante de Lady Chaterley, de D.H. Lawrence, entre os
15 e 16 anos, no Livre de Poche. Agora há livros que só se
podem ler quando devidamente expurgados pelos novos censores (que não existem,
porque #VivemosEmDemocracia).
#NãoPodias falar com um grupo de amigos na rua
Esta “História” (de não poder falar com um grupo de amigos na rua) é
verdadeiramente “imprescindível para compreender este presente.”
#NãoPodias votar
Podia-se votar, os adultos maiores de sexo masculino e as mulheres
licenciadas ou cabeças de casal podiam votar… só que, de facto, o governo
ganhava sempre as eleições (PS: Felizmente, temos agora liberdade
de voto e muito por onde escolher, como se pode ver). Antes da Revolução não
havia partidos políticos, o regime era autoritário e havia censura. Mas
sabia-se que havia e o que aquilo era, para efeitos de confronto.
#NãoPodias beber Coca-Cola
Não havia, de facto, Coca Cola em Portugal. Foi proibida no tempo da I
República pelo Professor Ricardo Jorge por causa de a marca não facultar
publicamente os ingredientes. Quanto à embirração de Salazar com a Coca Cola
tem uma história curiosa, ligada a um administrador da dita marca que veio a
Portugal e, pensando que estava numa república das bananas ou no Portugal de
hoje, tentou subornar o próprio Presidente do Conselho… No Portugal
pós-revolucionário, no seu período mais eufórico, o entusiasmo com a entrada no
País da “água suja do imperialismo americano” também não foi unânime.
#NãoPodias adoecer
Só entre os anos 70 e 80 se generalizaram na Europa os Serviços de Saúde
universais. Agora, felizmente temos SNS, mas dado o estado a que chegou nos
últimos anos #ÉMelhorQueNãoAdoeças.
#NãoPodias dizer “vermelho”
Quanto custou este cartaz? O orçamento já deve estar a bater no vermelho.
No Porto sempre se disse e, em Lisboa, era mais uma questão social, como, de
resto, ainda é. Dizer ou não dizer “vermelho” ou “encarnado” não é nem nunca
foi uma questão política.
#NãoPodias namorar na rua
Não fiz outra coisa – eu e toda a minha geração. Na rua, na faculdade, nos
cafés.
#NãoPodias manifestar-te
É um facto. No Estado Novo todas as manifestações de rua tinham de ser
autorizadas pelo Governo Civil. Agora, basta avisar a Câmara Municipal. Pode
também dizer-se que, então, as manifestações não eram propriamente encorajadas,
dado que não havia muitos direitos políticos. Mas havia direitos civis. Apesar
disso vi, desde o liceu, muitas manifestações estudantis e entrei em algumas.
#NãoPodias fazer parte da Europa
Felizmente, não fazíamos parte da Europa do Pacto de Varsóvia, mas
estávamos na EFTA, Associação Europeia de Comércio Livre. Ao tempo, o Mercado
Comum tinha apenas nove membros: Alemanha, França, Itália, Países Baixos,
Bélgica, Luxemburgo, Dinamarca, Irlanda, Reino Unido.
#NãoPodias discordar
Agora podemos discordar. E até perguntar: a quem foi entregue esta
campanha? Qual o orçamento desta Comissão, paga por nós todos? Chegou-se a isto
por consenso político? A escolha foi por concurso público?
#PodesDiscordarOuPerguntar mas #NinguémTeVaiResponder.
Estando, neste regime e neste país, preparado há muito para tudo, confesso
que fiquei, por uma vez, surpreendido.
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