domingo, abril 30, 2023

Antes de 25 de Abril não havia imbecilidades destas

 Chegou-me por email este artigo de Jaime Nogueira Pinto que se explica a si próprio:

#NÃOPODIAS

Estando, neste regime e neste país, preparado há muito para tudo, confesso que fiquei, por uma vez, surpreendido.

29 abr. 2023, 00:1985

  • JAIM NOGUEIRA PINTO

Pensei, em primeiro lugar, que se tratava de uma manobra da reacção, de uma campanha engendrada por saudosistas do fascismo, sepultado há 49 anos, e que, para desacreditar o regime democrático, tinham publicado, como que vindos de genuínos antifascistas delirantes, os cartazes e as frases do Antes do 25 de Abril #NãoPodias.

Mas não. Era mesmo uma campanha institucional, presumo que generosamente financiada, com o objectivo de “Dar ênfase às liberdades conquistadas com a revolução dos cravos, mostrando aos mais novos o que não se podia fazer antes do Dia da Liberdade”, porque “Conhecer a História é imprescindível para compreender o presente e construir o futuro.”

Trata-se nitidamente de uma campanha de Acção Psicológica que cumpre um duplo objectivo: entreter os mais novos, sensibilizando-os para a amordaçada existência juvenil dos agora “idosos”; e surpreender os que, antes do Dia da Liberdade, já tinham atingido a “idade da razão”. Não sei quem tem a responsabilidade da campanha, mas, se fosse seu correligionário, ficaria seriamente preocupado.

Senão, vejamos algumas das coisas que não podíamos fazer antes do 25 de Abril:

#NãoPodias esperar pela namorada ao sair das aulas

Lamento desiludir os mais novos, mas não foi a revolução dos cravos que veio acabar com o “namoro de janela”. Eu andei, no Porto, no Liceu Normal de D. Manuel II, um óptimo estabelecimento de ensino onde tive excelentes professores, geralmente de esquerda, que me marcaram profundamente pelo seu saber, amor à profissão e atenção aos alunos. No fim das aulas, íamos em bando para a porta do vizinho liceu feminino Carolina Michaellis ver a saída das “miúdas”. Alguns, os que ali tinham namoradas, iam buscá-las e acompanhavam-nas a casa. Outros, ficávamos a ver, a conversar e a tentar a sorte, por vezes através de piropos, geralmente decentes e inocentes (coisa que hoje #NãoPodes).

#NãoPodias beber vinhos franceses – não podiam entrar no mercado nacional bebidas estrangeiras

Bebia-se whisky, sim, e não era nacional; e, pelo menos nos bons restaurantes de Lisboa e do Porto, havia vinhos franceses. É natural que nesse período, anterior à entrada de Portugal no Mercado Comum, houvesse impostos altos para proteger a produção nacional, que era de boa qualidade. Enfim, não beber vinhos franceses podia ser uma provação infligida pelo antigo regime, mas a revolução dos cravos só nos veio libertar dela com a entrada na CEE. Agora, embora haja vinhos franceses relativamente baratos em qualquer supermercado nacional, representam um grande #NãoPodes para um número cada vez maior de portugueses (a par de muitos bens de primeira necessidade).

#NãoPodias ver um filme dobrado

Lá isso é verdade. Ao contrário do que acontecia no Brasil e em Espanha, países onde vivi no exílio depois do 25 de Abril (porque #NãoPodias não gostar de cravos vermelhos), os filmes em Portugal não eram dobrados, e a prática, graças a Deus, continuou com a democracia. O argumento avançado pela campanha de que a legendagem ajudava à censura é, no mínimo, insólito, pois quem fazia a dobragem também teria de ler um texto e a legendagem permitia até a comparação com o original. Na altura, vi muito filme com muita legenda em Portugal, mas nunca vi traduzir-se “extrema-esquerda” e “ultra-esquerda” por “extrema-direita” e “ultra-direita”, como há dias na reportagem da RTP sobre as manifestações de França.

#NãoPodias ter as pernas à mostra nas praias

A grande revolução dos costumes não se deu com a revolução dos cravos, deu-se bem antes, nos anos 60, com os Beatles, o biquíni, a mini-saia, os grupos yé-yé. Lembro-me de que, até ao final dos anos 50, até para os homens havia uma regra nos fatos de banho, que tinham de ter uma espécie de peitilho; mas isso acabou por volta de 1960. E bem antes do 25 de Abril já se usavam biquínis nas praias portuguesas.Tive muitas amigas e conhecidas que usavam biquíni nesse tempo. O “Biquíni pequenino às bolinhas amarelas” era aqui cantado, desde os anos 60, por Pedro Osório e Seu Conjunto; e todos conhecíamos o “biquíni encarnado” que, em 1968, Natércia Barreto levava para a praia juntamente com o rádio portátil e os óculos de sol (além do pente, do espelho, do bâton e do “creme muito bom”). Não é difícil deduzir que houvesse também pernas à mostra. Mas a comissão para a comemoração do 25 de Abril, lá saberá de outras praias, talvez mo Mar Negro ou no Báltico da RDA, onde os costumes seriam mais vigiados.

#NãoPodias sonhar com um curso

A taxa de escolaridade e frequência de cursos médios e superiores era com certeza inferior à de hoje, como em qualquer país europeu. No entanto, os licenciados não tinham de emigrar porque #Podiam sonhar com um emprego em Portugal.

#NãoPodias viajar sem autorização

Outra vez, o redactor desta frase deve estar a confundir o Portugal de antes de Abril com a então União Soviética… Independentemente do facto de, há 50 anos, aqui e no resto do mundo, se viajar muito menos, sobretudo para o estrangeiro, no meu caso concreto – e de todos os jovens que tínhamos feito 20 anos e estávamos a aguardar a incorporação militar –, tínhamos de pedir autorização para deslocações ao estrangeiro; mas o resto era livre. Quanto às mulheres casadas, foi antes da revolução que deixaram de precisar do aval do marido para viajarem sozinhas.

#NãoPodias ler o livro que quisesses

Havia alguns livros proibidos ou retirados de circulação, ora por razões políticas, ora por serem considerados moralmente impróprios. Mas quem tivesse vontade de ler, lia. Li as principais obras de Marx e Lenine em francês ou em edições brasileiras. Os escritores esquerdistas e comunistas, franceses e italianos, estavam todos na edição corrente. Quanto à “moralidade”, li a Lolita, de Nabokov, e O Amante de Lady Chaterley, de D.H. Lawrence, entre os 15 e 16 anos, no Livre de Poche. Agora há livros que só se podem ler quando devidamente expurgados pelos novos censores (que não existem, porque #VivemosEmDemocracia).

#NãoPodias falar com um grupo de amigos na rua

Esta “História” (de não poder falar com um grupo de amigos na rua) é verdadeiramente “imprescindível para compreender este presente.”

#NãoPodias votar

Podia-se votar, os adultos maiores de sexo masculino e as mulheres licenciadas ou cabeças de casal podiam votar… só que, de facto, o governo ganhava sempre as eleições (PS: Felizmente, temos agora liberdade de voto e muito por onde escolher, como se pode ver). Antes da Revolução não havia partidos políticos, o regime era autoritário e havia censura. Mas sabia-se que havia e o que aquilo era, para efeitos de confronto.

#NãoPodias beber Coca-Cola

Não havia, de facto, Coca Cola em Portugal. Foi proibida no tempo da I República pelo Professor Ricardo Jorge por causa de a marca não facultar publicamente os ingredientes. Quanto à embirração de Salazar com a Coca Cola tem uma história curiosa, ligada a um administrador da dita marca que veio a Portugal e, pensando que estava numa república das bananas ou no Portugal de hoje, tentou subornar o próprio Presidente do Conselho… No Portugal pós-revolucionário, no seu período mais eufórico, o entusiasmo com a entrada no País da “água suja do imperialismo americano” também não foi unânime.

#NãoPodias adoecer

Só entre os anos 70 e 80 se generalizaram na Europa os Serviços de Saúde universais. Agora, felizmente temos SNS, mas dado o estado a que chegou nos últimos anos #ÉMelhorQueNãoAdoeças.

#NãoPodias dizer “vermelho”

Quanto custou este cartaz? O orçamento já deve estar a bater no vermelho. No Porto sempre se disse e, em Lisboa, era mais uma questão social, como, de resto, ainda é. Dizer ou não dizer “vermelho” ou “encarnado” não é nem nunca foi uma questão política.

#NãoPodias namorar na rua

Não fiz outra coisa – eu e toda a minha geração. Na rua, na faculdade, nos cafés.

#NãoPodias manifestar-te

É um facto. No Estado Novo todas as manifestações de rua tinham de ser autorizadas pelo Governo Civil. Agora, basta avisar a Câmara Municipal. Pode também dizer-se que, então, as manifestações não eram propriamente encorajadas, dado que não havia muitos direitos políticos. Mas havia direitos civis. Apesar disso vi, desde o liceu, muitas manifestações estudantis e entrei em algumas.

#NãoPodias fazer parte da Europa

Felizmente, não fazíamos parte da Europa do Pacto de Varsóvia, mas estávamos na EFTA, Associação Europeia de Comércio Livre. Ao tempo, o Mercado Comum tinha apenas nove membros: Alemanha, França, Itália, Países Baixos, Bélgica, Luxemburgo, Dinamarca, Irlanda, Reino Unido.

#NãoPodias discordar

Agora podemos discordar. E até perguntar: a quem foi entregue esta campanha? Qual o orçamento desta Comissão, paga por nós todos? Chegou-se a isto por consenso político? A escolha foi por concurso público? #PodesDiscordarOuPerguntar mas #NinguémTeVaiResponder.

Estando, neste regime e neste país, preparado há muito para tudo, confesso que fiquei, por uma vez, surpreendido.

 Comentários? Nem é preciso muito para se concluir que a ignorância estupidez e capacidade de endrominar desta gente que escreveu estes "hashtags" é sinal da maior imbecilidade ou pior que isso: vontade expressa de manipulação e de tomar os outros por parvos. 


Sem comentários:

O Público activista e relapso