No princípio era o som. E o som vinha das melodias gravadas em discos que se transmitiam em altifalantes. Foi durante os anos sessenta que estes sons gravados começaram a impressionar-me pela sua beleza estética que me conquistava os sentidos.
Rapidamente as melodias passaram a ser canções e com nomes
de artistas associados. Primeiro eram portugueses e se for preciso um exemplo
há o de António Mourão, a cantar Ó tempo volta p´ra trás, em 1965, um
grande sucesso que se fez primeiro numa revista teatral.
A par dessa, muitas
outras surgiram nesses anos e se as portuguesas foram as primeiras melodias,
logo apareceram francesas, italianas, espanholas e as que se cantavam em
inglês, língua ainda desconhecida para um jovem nascido na segunda metade dos
anos cinquenta.
As canções em inglês, para além do relativo exotismo vindo
do estrangeiro mais longínquo, tinham o suplemento da novidade de uma moda difundida
pela publicidade mais eficaz e directa: o rádio, numa época em que os discos
ainda eram objectos de um luxo que carecia de uma aparelhagem condizente para
os reproduzir e quase tudo se declinava em singles, simples e a dobrar, os ep´s.
Foi assim que ouvi os sons musicais dos últimos anos da
década dos sessenta em que a música popular se tornou um pouco mais
sofisticada, até nas temáticas das letras ainda não compreendidas.
Os Beatles, em 1967 apresentaram o seu trabalho Sgt.
Pepper´s com referências a temas até então obnóxios para o grande público
consumidor de tal música, com uma capa do disco em que surgiam várias figuras
desse mundo esquisito, incluindo escritores, intelectuais e artistas, numa
influência directa do clima intelectual da época dessa década prodigiosa.
A influência oriental da filosofia e religião budista,
associada a experiências com drogas sintetizadas, como o ácido lisérgico da
dietalmida, LSD-25, mais o interesse suscitado por obras como O Despertar
dos Mágicos, de dois franceses, Louis Pawels e Jacques Bergier, no início
da década, deram o mote para um tema que logo na década seguinte me
impressionou significativamente: a relevância do oculto na música popular.
Em 1967 os Rolling Stones, grupo cuja música nem apreciava
por aí além, publicaram um lp com um título que nada escondia do assunto em
causa – Their satanic´s majesty request- e em 1968 uma canção com o
título Sympathy for the Devil, inequivocamente uma alusão nada
metafórica ao Maligno, para quem acredita em Deus, convocando-o na primeira
pessoa.
Em 1969 dois acontecimentos fizeram os Stones reflectir na
companhia convocada e não voltaram a insistir muito na temática, depois disso.
No verão de 1969 surgiram as notícias acerca de assassínios
cometidos na California, por um grupo de fanáticos integrantes de uma seita
dirigida por um tal Charles Manson, nome logo divulgado como a encarnação de um
diabo qualquer, a par da descrição macabra dos crimes praticados pela seita e
que incidiram no meio artístico e cinematográfico de Hollywood e California em
que os Beach Boys não eram alheios.
Os media, incluindo
portugueses, deram amplo relevo ao assunto com a indicação de que a seita se
inspirou em músicas dos Beatles, como o então publicado “Album Branco”,
inscrevendo na porta da casa onde se encontravam as vítimas a palavra “pigs”,
uma referência difusa a uma letra de uma música de tal disco, acrescentada de
outra referência no mesmo disco: “Helter Skelter”.
A extrema mediatização de tal fait-divers tornou-se
planetária à escala ocidental e ajudou a um clima de suspeição de conluio da
música popular com o ocultismo satânico, ou pelo menos de alguns temas, como o
indicado dos Stones e as referências esotéricas e ocultas até nos Beatles.
Em Dezembro de 1969 aconteceu o desastre de Altamont, em que os Rolling Stones tocaram Sympathy for the devil, o que aliás não evitou o regresso à mesma temática iconográfica, alguns anos depois, em 1981 com a capa do single Start me up.
Com a explosão da música popular na década de setenta, o
fenómeno ampliou-se e vários artistas e grupos exploraram tal vertente
particularmente na música mais pesada, então apresentada pelo “heavy metal”
iniciado pelos Led Zeppelin e outros grupos, como os Ac/Dc e os Black Sabbath.
Nos anos oitenta e até noventa ampliou-se tal panorama. Kurt Cobain dos Nirvana era um cultor do
satanismo de um certo Anton LaVey, criador da Igreja Satânica, em 1966, em San
Francisco.
Jimmy Page, nos Led Zeppelin, associou-se a esta onda de
ocultismo desde muito cedo e quando teve sucesso financeiro, nos anos setenta,
comprou moradias pertencentes a um dos gurus do género, Aleister Crowley ( aliás conhecido de Fernando Pessoa que
também experimentou estas veredas sinuosas do ocultismo)
Tudo isto aparecia de vez em quando nas publicações musicais
que comecei a comprar desde o início dos setenta, com alusões por vezes claras
à bizarria oculta de certos artistas e canções, frequentemente associados a
manifestações também bizarras de natureza sexual, como as exposições
escandalosas do cantor dos Doors, Jim Morrison e outros que titilavam em modo
perturbador as consciências de certas seitas evangélicas nos EUA.
Daí à denúncia da música do diabo associado ao rock, foi um
pequeno passo, acelerado por circunstâncias anteriores misteriosas.
Um dos inspiradores principais do rock, foi o artista preto
Robert Johnson que influenciado por outro cantor de blues- Son House- aprendeu
miraculosamente a técnica de guitarra, aparecendo da noite para o dia como um
mestre das seis cordas acústicas e influenciando muitos artistas supervenientes
no rock dos sessenta, como Eric Clapton, nesse estilo particular e com um acervo
musical de duas dúzias de canções. O mito que ficou foi o de ter conseguido o
milagre da técnica artística através de um pacto com o Demónio num certo
cruzamento de estradas e que ficou associado na mitologia da canção Cross-road-blues.
Não sabia nada destas coisas quando ouvia a música em causa
e só por leituras travessas é que descobri o significado oculto das intenções
maléficas nessas aparentemente inócuas e belas melodias.
Por outro lado a associação da música rock às drogas
alucinogénias, aliás evidenciada em vários discos, incluindo os dos Beatles,
bem como aos costumes desregrados e bem publicitados no comportamento de certos
artistas, como Keih Moon dos The Who ou mesmo Frank Zappa ( com um poster, sentado numa sanita), contribuía muito
para um mal-estar e uma má-consciência que só a beleza musical das obras
produzidas e apelo estético redimiam.
Um dos primeiros sinais de alerta para estes fenómenos abstrusos
apareceu em 1975 com o livro de Jorge Lima Barreto, Rock Trip. O livro,
muito mal escrito, aliás, centra-se no aspecto psicadélico da música popular
com a alusão explícita a vários músicos e começa com uma citação de Herberto
Hélder- “Beije-me ele com beijos da sua boca. Amor melhor que o vinho” .
Drogas, bizarrias ocultas, homossexualidade, eram coisas demasiado pesadas para
um jovem entrado na adolescência e na descoberta do mundo e da vida adulta,
educado nos princípios cristãos e na normalidade do viver habitual da tradição
rural portuguesa.
O livrinho de Lima Barreto foi lido com todas as pinças disponíveis, rodeado de cuidados particularmente em passagens como a citação do livro de Jerry Rubin- Do it- uma apologia do roubo e da perversão e a apologia frenética dos alucinogénios com a caução da tradição índia sul-americana e a citação de gurus orientais, alguns deles seguidos pelos artistas da música popular, incluindo os Beatles e a sua viagem ao universo oriental de Kathmandu, breve mas perturbadora.
O livro congrega praticamente todas as citações disponíveis
da então contra-cultura, em modo atrabiliário, de forma que o chorrilho de
alusões se torna auto-destruidor de qualquer coerência interessante e
acolhedora. É uma cloaca de inépcias narrativas que se exemplifica em algumas citações como esta de William
Reich :” o interesse cultural gira à volta da sexualidade prolifera sobre a
afirmação do ideal e a negação do actual”. Voilà, como aperitivo da
sabedoria deste falso profeta degenerado; ou esta de outro degenerado- Michel
Foucault- trazida no livro: “ na droga, trata-se de descobrir dentro de nós
mesmos as possibilidades interiores da loucura: não as da loucura normal para
alcançar a verdadeira realidade, mas as possibilidades de recuperar através da
razão do mundo uma loucura individual, da qual somos involuntariamente
detentores”; ou mesmo uma citação do autor que asegura- “Na minha teoria
a arte caminha para uma incentivação da energia parapsíquica e a experiência
psicadélica pode ser reduzida simplesmente a uma experiência parapsíquica onde
os fenómenos de clarividência e telepatia se realizam perfeitamente”.
O que o livro apresentava então para mim era claro: pode
ouvir-se música popular e dela usufruir de todo o significado estético e
sensorial, apenas com a simples audição ou careceria tal experiência do uso de
alucinogénios, como sugeria o autor? A resposta para mim era clara e negativa
porque o prazer que usufruía com a audição não era passível de evidente
incremento com a ingestão de substâncias do género.
O que o livro então me transmitia ainda era outra coisa,
particularmente a quarta parte do escrito, sobre os diversos tipos de rock, a
começar no sincrético, identificado com o som dos Beatles, Stones, Moody Blues,
Byrds e tutti quanti associados ao estilo “difuso, multi-discursivo, e,
talvez inconsistente da pop”. O que se podia ler nessa parte do livro era a
experiência auditiva de quem conhecia praticamente toda a música popular da
época, dos anos sessenta e já dos setenta e as citações avulsas e constantes de
tais obras e grupos musicais. Um catálogo, portanto, do mesmo género que dez anos depois Miguel Esteves Cardoso fez no posfácio ao livro Pop Music-Rock de Philippe Daufouy e Pierre Sarton. Tudo o resto era marginalidade, vício e degenerescência que
se tornavam desprezíveis no meu ambiente moral e estético.
No entanto a música e os grupos e artistas elencados,
dezenas deles, são ainda os que aprecio
nos dias de hoje, quase exclusivamente porque constituem a essência do que foi
a música rock, cujos discos originais ouço regularmente porque ainda são os que transmitem tal essência com a qualidade devida das gravações da época.
A perplexidade e confusão que o livro veio suscitar
adensou-se no ano seguinte com um artigo de Setembro de 1976 a revista americana Crawdaddy que
começara a comprar no início desse ano. O artigo versava um personagem- Kenneth Anger
e a sua ligação aos meios ocultistas e esotéricos do satanismo norte-americano,
algo perturbador e com referências musicais explícitas à música popular,
particularmente dos Led Zeppelin, de Jimmy Page e do misterioso Aleister
Crowley, o velho conhecido de Fernando Pessoa e que aliás fazia a ligação ao
ambiente esotérico que já descobrira no livro O Despertar dos Mágicos,
em finais de 1973.
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