quinta-feira, dezembro 23, 2021

O Expresso da Justiça

 Artigo de Luís Aguiar-Conraria no Expresso de hoje, sobre o velho ditado "cada cabeça sua sentença"...



"Perante os mesmos factos muitas vezes estilizados e simples, os juízes aplicam penas radicalmente diferentes".

"O meu irmão é advogado e conta-me, como, muitas vezes quando um cliente lhe apresenta um problema é obrigado a explicar-lhe que, perante situações inteiramente análogas, há acórdãos de tribunais superiores e acórdãos de tribunais do mesmo nível a determinar o exacto oposto" 

Adoptando uma designação para o fenómeno exposto, emprestada de autores estrangeiros, o cronista chama a isto "ruído", ou seja à diferença nas decisões dos tribunais sobre os mesmos factos julgados. Como exemplo traz à colação o caso de Manuel Pinho, afirmando que se o juiz de instrução fosse Ivo Rosa a decisão teria sido outra. Portanto houve "ruído", neste caso, tal como noutros. 

O exemplo não é bom. Aliás, não presta para o caso. Ivo Rosa decidiria de outro modo uma vez que já decidiu, nesse e noutros processos à volta do "marquês", várias vezes do mesmo modo, mas foi desfeiteado pelo tribunais superiores. O "ruído", porém, tem outra origem e quem a não entender não deveria escrever sobre estes assuntos. Aqui não se trata do velho problema de cada cabeça sua sentença, antes de  putativa "sentença" prenunciada e demasiado idiossincrática. Porém, atenta a natureza dos factos e crimes imputados e a circunstância de ser plausível a fuga do arguido, a solução só poderia ser uma, aliás a que foi tomada: medida de coacção de privação de liberdade, económica através de caução carcerária ou então a privação pura e simples da liberdade, provisoriamente e antes de julgamento. 

Aventar a possibilidade de ser outra a solução se o juiz fosse Ivo Rosa, contende com outro fenómeno: o de se admitir como juiz, neste caso das "liberdades", um indivíduo como Ivo Rosa, cujo historial profissional é já por demais conhecido e não pode sequer ser comparado com o outro juiz ou mesmo com qualquer um dos outros que assentarão praça no mesmo tribunal a partir de Janeiro. 

O cronista não entende tal subtileza e mete no mesmo saco ambos os juizes do referido tribunal, assim como assimila a tal situação as decisões que provocam "ruído" noutras circunstâncias. 

O resto do artigo não se afasta deste equívoco por uma razão: as sentenças relativas a penas são do julgamento dos factos em que existe debate e contraditório. As decisões sobre medidas de coacção em sede de inquérito ou instrução são outra coisa e misturar as duas é enganador. 

As penas previstas nas leis penais comportam uma moldura entre um mínimo e um máximo e há regras jurídicas para aplicar a medida certa. Se há diferenças entre tribunais tal se deve a critérios diversos obrigatoriamente justificados por lei, na fundamentação das sentenças.

No caso de Rendeiro, por exemplo, talvez valha a pena mencionar que a primeira condenação do arguido foi em pena suspensa e no tribunal superior tal suspensão foi revogada porque o entendimento dos dois juízes da Relação divergiu num ponto essencial, do dos três juízes da primeira instância: a noção de prevenção geral que preside sempre à aplicação das penas. E afinal quem teria mesmo razão? Onde está neste caso a fonte do ruído? 

Não me parece que seja nos tribunais, mas sim na pressão mediática, subtil e pervasiva. E quem se deixou ir na cantiga foi o tribunal superior...


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