quinta-feira, julho 02, 2009

Observatório da justiça em acção

O Público de hoje, a propósito da condenação de Bernard Madoff, nos EUA, a uma pena de 150 anos de prisão, entrevistou Maria José Morgado que, brevemente, explicou a comparação do sistema americano com o nosso:
"Temos um sistema penal inteiramente desajustado da produção de prova e condenação rápida no crime económico-financeiro."
E ainda mais: " Para além das diferenças de métodos de trabalho pessoais, tendo em conta o sistema pena americano e português é como comparar uma formiga com um elefante. No processo português, há mil e um actos de recolha e produção de prova obrigatórios. Só depois de toda uma sucessão ritualizada de actos processuais é que é possível formular uma acusação. E só nessa altura o processo entra na fase judicial-quando for remetido para instrução ou para julgamento. Ou seja, toda esta ritualização processual encerra uma fase preliminar que não tem valor em julgamento!
E mais: todo o contraditório feito pelos arguidos na fase preliminar é repetido na instrução, não obstante os formalismos e garantismos da fase preliminar. Todas as provas recolhidas na fase preliminar têm de ser repetidas em julgamento.
A confissão de um arguido na fase preliminar que não seja mantida na fase de julgamento não tem valor nenhum e é prova proibida."
A explicação do sistema americano:
" No sistema americano, o MP recolhe as provas numa fase preliminar secreta, com escassa participação do acusado. O conjunto de provas é-lhe dado a conhecer no fim, no sentido de se considerar culpado ou inocentre. Nada que se compare com a nossa retualização labiríntica, ou seja, a diferença entre a formiga e o elefante."
E para concluir:
" O excesso de garantismo é tão injusto como a falta de garantias, porque conduz à impunidade".
Nem mais. A não ser o seguinte:
Durante a fase de julgamento, a possibilidade de encravar o andamento do processo é de tal ordem que qualquer advogado que nisso tenha interesse, o pode fazer impune, legal e entusiasticamente, sem ponta de perplexidade por quem fez estas leis.
Quem fez estas leis, é uma pessoa colectiva, a Assembleida da República, aproveitando ideias singulares de várias outras, geralmente professores de cátedra de Direito.
O nosso modelo de direito processual penal vem da escola de Direito de Coimbra, sendo o seu representante mais conhecido o professor Figueiredo Dias. Raramente o vi na tv e nunca a falar destes assuntos em concreto.
Está reformado, anda por aí e ninguém parece interessado em perguntar-lhe por estas coisas tão importantes para a nossa vida colectiva.
E Figueiredo Dias é, sem dúvida alguma, um dos maiores responsáveis individuais por este estado de coisas.
Outro que devia ser escutado sobre isto e há muito que não fala ( o único jornal que o ouvia era o Diabo, tal como aliás a Figueiredo Dias), é o professor Costa Andrade e ainda outro relativamente desconhecido, amigo de Manuel Alegre: o professore coimbrão Faria Costa.
Este trio de grandes professores universitários ( sans blague), devia ser ouvido em sede de inquérito parlamentar sobre o estado da Justiça penal, do mesmo modo que no caso BPN se está a proceder: um levantamento rigoroso das ideias, princípios, valores, interesses e métodos de feitura das leis penais.
Em alternativa, um programa de tv, durante várias sessões de duas horas cada, para se perceber minimamente o assunto.
Não para se responsabilizarem inquisitorial e publicamente pelas "crises" do sistema, mas para esclarecimento público das suas ideias que têm provocado este estado de coisas na justiça. Eventualmente para as defender e justificar...
Para tal inquérito de âmbito essencialmente pedagógico e esclarecedor da opinião pública, deviam ser chamados a intervir, o actual ministro da Administração Interna, Rui Pereira, a sua mulher Fernanda Palma e ainda os advogados Germano Marques da Silva, José António Barreiros ( que teve papel preponderante na passagem do antigo CPP para o novo em 1987), Daniel Proença de Carvalho ( um crítico que nunca fundamenta as críticas a não ser pela "responsabilidade") , António Almeida Santos ( o verdadeiro padrinho do sistema).
Ainda deviam ser ouvidos, pela qualidade do seu discurso, Cunha Rodrigues, antigo PGR, o sucessor, Souto Moura e Henriques Gaspar, actual juiz conselheiro e conservador em ideias jurídico-penais.
Se fosse ouvido o actual presidente do STJ, Noronha do Nascimento, apareceria a cizânia na discussão, em menos de 5 minutos. Por isso, pode prescindir-se. Tal como se deveria sempre prescindir de um Marinho e Pinto.
Pelos parlamentares, talvez Alberto Martins do PS tivesse algum interesse em ser ouvido. E mais ninguém. Jorge Miranda como professor universitário de Lisboa e Seiça Madeira, pelo Porto.
Dos magistrados no activo, indicaria os juizes António Martins, Orlando Afonso, Ricardo Cardoso, Tibério Silva e alguns outros que escrevem na revista digital InVerbis. Do MP, tenho alguma dificuldade em apontar nomes, para além da MJ Morgado. Talvez Paulo Dá Mesquita. E Pinto Nogueira.
Com a audição destas pessoas, durante vários dias e com a gravação do que dissessem, talvez se chegasse a um consenso: não há volta a dar ao sistema jurídido-penal português. Por uma razão que me parece cada vez mais evidente: depende de quase tantos factores aleatórios como a economia deste país.
E isso como corolário da falta de acordo entre todos que garantidamente sucederia. Duvido que se chegasse ao consenso principal sobre as garantias de defesa, sequer.

6 comentários:

Miguel disse...

Sem embargo de poderem ser assacadas culpas à Escola de Direito Coimbrã, não me parece que esteja ai o principal problema.

Existem inumeros caso públicos, e quem anda nos tribunais conhece centenas/milhares de outros, onde o MP é completamente negligente na condução dos processos, praticando actos a conta gotas...

Será por falta de meios? Será por incúria dos procuradores? Será pelas deficientes Leis?

Provavelmente um pouco por todas....

Mas o exemplo da operação furacão é nitido...é um processo que dura há anos...e ainda não saiu do inquérito!!!! Que Lei está a atrapalhar o processo? Que artigo no CPP está a atrapalhar o processo?

P.S. Nota-se ai alguma "raiva" (perdoe a expressão) contra Coimbra....n sei porque será!!!

josé disse...

Não há raiva alguma. Até há consideração pelos mestres. O que existe é a dúvida sobre a validade das suas ideias e teorias que nos conduziram a este beco.

Gostava de os ouvir a defenderem as suas ideias e a apontarem argumentos perante estas evidências.


Quanto ao Furacão: o problema é, como disse o PGR, que todos os bancos estão a ser investigados.

E a investigação obedece a regras jurídicas muito precisas e que demoram, demoram, demoram.

Porquê?

Por causa das famosas garantias de defesa em...Inquérito.
E por causa das formalidades que tais garantias implicam.

De onde vêm tudo isso?

De Coimbra, meu caro. De Coimbra.

Anónimo disse...

Uma das melhores postas de sempre.

josé disse...

Miguel Ferreira:

Noto aí uma pequena dúvida sobre a minha isenção ao escrever sobre a escola de Coimbra.

Apesar de ter sido a minha escola formal, pouco valeu para lhe poder querer seja o que for, bem ou mal.

O professor Figueiredo Dias chegou a ser meu professor e guardo a melhor das impressões. Tal como a outros.
Ao Faria Costa topo-lhe uma soberba que só pode ser postiça. Ao professor Costa Andrade noto-lhe um saber que só posso admirar.

Mas...o resto continua a ser o mesmo: foram eles quem inspiraram a legislação processual penal.
Não há volta a dar a isto e se esta legislação provoca estas crises só posso citar o Evangelho em minha defesa, na crítica que lhes faço: a árvore conhece-se pelos seus frutos.
Pelos frutos reais. Não pelos ambicionados e utópicos.

Miguel disse...

Longe de mim defender legislação processual penal...

No entanto, e porque ando por cá (entenda-se tribunais) também...atribuo muito mais a "culpa" destas demoras à ineficiência do MP, seja por incompetência, seja por falta de meios.

basta ver os milhares de processos que andam por ai...meses à espera de despachos (por vezes de mero expediente)...meses para realizar diligências básicas...enfim....

PB Pereira disse...

Gostei de ler. Como diz o anúncio, "e assim se escreve em bom português".

O Público activista e relapso