No Público de hoje, Jorge Miranda espraia-se em mais uma entrevista de fundo sobre problemas constitucionais. Sobre a Constituição actual de que foi, em 1976, um dos patronos técnicos, ( a par de Gomes Canotilho e Vital Moreira, então comunistas), Jorge Miranda resumidamente diz que a CRP é um modelo ( "está avançada e adequada à modernidade", diz), invejado até no estrangeiro ( esta parolice recorrente até aflige quando nos lembramos que a Inglaterra não precisa destes modelos para ser um país democráticos e desenvolvido...)
Jorge Miranda aceita "aperfeiçoamentos" do seu instrumenro jurídico de eleição e até explica alguns. Porém, quanto a revisões de fundo e de forma acha que não, que está tudo bem e agora, neste momento político, é que nunca se deveria mexer nessa vaca sagrada. Enfim.
No jornal i de fim de semana, António Barreto que não é jurista nem constitucialista e que é ou foi próximo da área política ( PS) daquele Miranda, acha coisa bem diversa da Constituição que temos e di-lo claramente e sem refluxos reaccionários ( no sentido que a esquerda usa para desqualificar) como aquele universitário sempre acaparou.
Há anos, já décadas, que andamos nisto. Uns a defender a alteração do modelo constitucional, expurgando-o da carga ideológica marcadamente de esquerda e que se revela antidemocrático, naquela acepção do constitucionalista e outros a reagir contra qualquer mudança no texto constitucional, tendo sempre na vanguarda reaccionária, o PCP que bebe do seu próprio veneno mas encontra sempre o antídoto marxista-leninista para escapar da liquidação e assim se juntar às ideias fossilizadas que defende.
Vejamos a contradição do sistema:
Preâmbulo
A 25 de Abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas,
coroando a longa resistência do povo português e interpretando os seus
sentimentos profundos, derrubou o regime fascista.
Libertar Portugal da ditadura, da opressão e do colonialismo
representou uma transformação revolucionária e o início de uma viragem
histórica da sociedade portuguesa.
A Revolução restituiu aos Portugueses os direitos e
liberdades fundamentais. No exercício destes direitos e liberdades, os
legítimos representantes do povo reúnem-se para elaborar uma Constituição que
corresponde às aspirações do país.
A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português
de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos
cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o
primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade
socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a
construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno.
Este é o preâmbulo da actual Constituição Portuguesa. A anterior Constituição, de 1933 ( que não é
estudada nas nossas escolas secundárias e eventualmente nem nas universidades, porque é "fassista" e portanto censurada como tal)
não tinha preâmbulos ideológicos e ao contrário da actual, não permitiu nenhuma bancarrota. Esta já vai na terceira e com garantias de mais.
Este preâmbulo da actual Constituição é como um programa
ideológico de base e que mostra o que é a Constituição: um instrumento jurídico
assente num pressuposto ideológico não sufragado democraticamente. O comunismo e o socialismo não são nem
poderiam ser a base democrática plena da nossa legalidade. Logo, a Constituição
é antidemocrática e inconstitucional.
Se, como diz Jorge Miranda, “o princípio democrático assenta
no direito da maioria e o princípio do estado de direito assenta no princípio
da legalidade e no respeito dos direitos fundamentais, esta Constituição assenta
numa ideia antidemocrática, porque nenhuma maioria sufragou a ideia de que
somos um país a caminho do socialismo. E não se diga que ao se aprovar a
Constituição in totum se legitimou democraticamente essa opção porque a
contradição entre os princípios não pode ser sufragada democraticamente e assim
legitimada.
Sendo a expressão “socialismo” vaga e polissémica ( a noção
dos comunistas sobre o socialismo não é certamente a mesma que a dos
socialistas democráticos) cada um repara
no lado que lhe interessa. Os
esquerdistas vêem a garrafa meio-cheia de socialismo a transbordar de intenção
e os outros olham para o meio-vazio de um socialismo sem objecto socialmente
viável ou identificável. Isto é fruto de formulações equívocas, gizadas nos
consensos parlamentares para contentar todo o espectro político e causa directa
de dissenções no tribunal constitucional. Os que se revêem numa esquerda mítica
apostam na vista cheia e os demais, na ausência de conteúdo real que observam,
proclamam a irrelevância do conceito.
Todos ficam contentes até ao momento em que uma decisão do
tribunal constitucional lembra o equívoco permanente. E ai nasce outro equívoco em cima daquele: os
juízes do tribunal são criticados por decidirem a seu modo sobre um texto que se pode ler de modo diverso.
A quem interessa este equívoco permanente? A todos, quando
lhes satisfaz o respectivo quinhão de
razão e a ninguém quando ficam sem ela.
Como se sai deste impasse que dura décadas? Com definições
claras e inequívocas sobre o que os portugueses pretendem para a sociedade em
que vivem. Querem socialismo? Que se defina em primeiro lugar o contorno exacto
desse conceito para permitir uma escolha livre e consciente.
Para tal só com debates ideológicos se alcança tal
desiderato e dai a importância das discussões públicas.
Esta discussão já era nítida em 1976 e aquando da primeira revisão, em 1982. Jorge Miranda até apresentou vários projectos da sua autoria para tal, mas declarava no O Jornal de 1 de Abril de 1977, que " a nossa Constituição é um documento excepcional"! E vituperava a Constituição de 1933 por ser um documento "seminecrológico" por ter sido plebiscitado por "vivos e mortos". Sobre a então bancarrota, escancarada em 1977 ( já nem tínhamos dinheiro para comer, a não ser emprestado) e permitida pelo Constituição excepcional, nem uma palavra. Enfim, outra vez.
A discussão que se reatou em 1982 aquando da primeira revisão constitucional deixou intactas as marcas ideológicas marxistas-leninistas que nunca incomodaram o professor do PS e que tinha sido do PPD. Porém, António Barreto que tinha sido ministro da Agricultura logo a seguir ao período quente do PREC, num governo do PS e que fora comunista até ao 25 de Abril de 74, entendia que a revisão de 82 foi um quase nada, restrito à reorganização do sistema político, sem tocar na parte económica, programática ou ideológica ( nessa altura ainda se garantia na Constituição que caminhávamos para a "sociedade sem classes", para gáudio dos comunistas e esquerdistas em geral que acreditavam ainda nessas balelas.
A revisão foi quase um nada porque os revisores foram sempre os mesmos, com Jorge Miranda a capitanear juridicamente os desígnios politicos desta gente que mais uma vez, no ano a seguir nos conduziu a outra bancarrota! Mais uma e a Constituição nada disse sobre a inconstitucionalidade de tal situação criada exclusivamente por aqueles revisores.
O Jornal, órgão ideológico por excelência deste estado de espírito esquerdizante, em 23 de Abril de 1982 não deixava lugar a qualquer dúvida:
Será isto tudo um castigo do Céu que nos atingiu algures na década de setenta do século passado e que perdura até aos dias de hoje? Será que isto não muda na nossa geração? Será que vamos aturar esta cambada de...de...deixa-me refrear porque até me perco em insultos a esta gente que destruiu um país por motivos essencialmente ideológicos. Que tragédia!