sábado, fevereiro 27, 2016

As peitas

O pecado maior de um  magistrado é a peita que resulta em deixar-se comprar, no dito popular. Há várias formas de peita embora a mais vergonhosa porque mais explícita e branqueadora de más consciências das demais peitas, é a troca  de despachos ou sentenças favoráveis por dinheiro vivo, dentro ou fora de portas. Sendo a mais explícita porque mostra a toda a gente o modus operandi da peita não é a única e haverá outras mais insidiosas e perversas.
Há quem se peite por vaidade, aplicando a Justiça a  contrario,  aplicando a Lei e o Direito com fundamentação ajustada e gozando intelectualmente com isso, por ver o efeito do virtuosismo consagrar uma peita inefável mas real. Há um caso paradigmático na Itália dos anos oitenta do século que passou: Corrado Carnevale, o "amazza sentenze" que num tribunal superior arrasava o trabalho de anos e o labor de investigação e julgamento de processos envolvendo mafiosos, apenas por idiossincrasia pessoal. Nunca foi condenado por isso, apesar de ser acusado de tal.
Há ainda quem se peite por loucura imanente e desregulação do sentido de Justiça, afrontando outros poderes só porque sim. Afere-se esta espécie pela quantidade inusitada de recursos das suas decisões e pela indiferença desse resultado no peitado.  Há em Portugal casos destes, conhecidos de advogados e particularmente um que um dia destes se tornará escandaloso.
Há também quem se peite por distinções de classe e prebendas em género de cargos de prestígio. Também haverá casos deste tipo, geralmente protagonizados por aqueles que não têm medo de ninguém, na medida em que se sentem superiores, emparceirando apenas com quem os pode nomear, não se sujeitando à peita pecuniária do suborno puro e simples, porque não é isso que os move e o resto vem por acréscimo.
A peita de magistrados pressupõe que os mesmos tenham poder e o possam usar para favorecer quem os possa peitar ou peitando-se a eles próprios em satisfação intelectual. E há um efeito implacável em todos estes feitios de peita: a injustiça que representam. O efeito inevitável de dar a alguém o que não lhe pertence por direito ou justiça. É por isso um imenso abuso, seja praticado a troco de dinheiro, em género ou sem sinalagma expresso imediatamente.
Qual a peita mais perigosa? Não sei porque todas redundam em injustiça e todas pressupõem uma atitude dolosa só levemente atenuada nos casos de insanidade mental para a profissão.

Qual a atitude ideal do magistrado? Aquele que seria capaz de se julgar a si próprio, contrariando o ditado popular? Nem sei, porque a Justiça não deve funcionar como um algoritmo que contemple os bons princípios pessoais, apenas. E se alguém se lembrar de Javert, a personagem de Vítor Hugo, nos Misérables, saberá do que falo. Aquele que convence as partes de que foi aplicada Justiça? Nem tanto, porque a eloquência e o virtuosismo podem sobrepor-se à Justiça.
Então como deve ser? Hesito entre o que cumpre o seu dever como um imperativo categórico, caldeado pela noção de humanismo admissível e o que cumpre o mesmo dever, com a indiferença de que a Justiça pode ser dura porque alguém assim o determinou.
Enfim, um assunto que deve ser entregue à Literatura, mais que à Filosofia. Camus, talvez seja boa leitura para acicatar estas dúvidas.
Porém, acima de tudo, deverá prevalecer um princípio: o da honestidade. Ser honesto, na magistratura, é apenas decidir de acordo com uma consciência limpa de vaidades, honradamente, com uma rectidão aperfeiçoada pela personalidade e pelos princípios morais.

Sobre o magistrado Orlando Figueira não faço juízos antecipados e já escrevi sobre o mesmo. Espero que um dia explique as suas razões e que se tiver culpa  a assuma e expurgue a desonra.

Hoje, o Expresso tem uma página que é das melhores que tenho lido sobre estes assuntos. Complexa nos factos, subtil nas informações e que ultrapassa tudo o que o Público e mesmo o Correio da Manhã escreveram sobre o assunto ( hoje até com um pequeno dossier). Parabéns aos autores.



5 comentários:

zazie disse...

Engraçado como estas, e mais coisas incluídas nestas, andaram a marinar durante 4 anos e até são arquivadas.

josé disse...

Huummm...não me parece que haja mistério. Este caso só foi descoberto porque houve denúncia em 2014.

O problema, no entanto, teve a sua origem no modo como se distribuíam os processos no DCIAP de Cândida de Almeida que nesse aspecto era mesmo cândida.
Suponho que nunca lhe passou pela cabeça que pudesse surgir um caso destes. O Expresso explica bem o assunto e se foi assim, parece-me difícil, a defesa.

Pergunto-me é a razão para a tentação e a queda.

zazie disse...

A razão há-de ter tido um bom preço.

Unknown disse...

E o superior hierárquico do magistrado que supostamente terá arquivado como contra-partida? Andava a dormir?

Maria disse...

José, desculpe sair do tema, mas acabo de ouvir nas notícias que o Dr. Ricardo Salgado publicou um livro a contar a história da queda do seu Banco. Vou comprá-lo, claro, porque me interessa saber tudo sobre o assunto. Continuo a dizer que gosto da pessoa de R.S. (lembra-se do que lhe disse sobre a personalidade dele e da principal pessoa(s) que terá estado por detrás de tudo o que de facto levou ao posterior descalabro da Instituição ("ai, ele vai falar, lá isso vai!)? Pois ia, então não ia...

Não conheço R.S. pessoalmente, mas conheci pessoas da sua família que muito apreço sempre me mereceram. Ricardo Salgado estava rodeado de corruptos em altíssima escala, dos quais, por demasiada ingenuidade da sua parte ou por pressões fortíssimas vindas de quem, inclusive recorrendo a chantagem (sim, é muito possível, esta gente que nos tem governado nos últimos quarenta anos, é capaz disso e de muito mais para conseguir os seus objectivos, o principal dos quais foi enriquecer obscenamente e fazer o mesmo aos seus familiares, camaradas de partido e restantes apaniguados) tinha poder político e protecção maçónica suficientes para o fazer. Crápulas do pior, evidentemente. Como aliás hoje está mais do que provado, sendo os seus nomes e apelidos, um a um, bem conhecidos de todos os portugueses.

Quererá o José abordar este assunto - por demais importante dado o prestígio e valor que este Banco representou durante décadas para Portugal e para os portugueses, para poder ser olvidado ou passado para debaixo do tapete..., como parece que quem está por detrás dele o quer à força, pois pudera! - com a sua consabida objectividade e a inteligência que lhe é reconhecida?

A obscenidade do jornalismo televisivo