quinta-feira, outubro 20, 2022

A insustentável leveza dos comentadores da Justiça

 Um comentador dedicado a assuntos de justiça colocou ontem o seguinte comentário acerca do postal sobre o juiz de instrução, Carlos Alexandre e que vou comentar a seguir:


"O José quer esconder-se atrás de tecnalidades, algumas das quais aliás por si erróneamente invocadas.

Questão não é se o modelo acusatório daqui e dali é decalcado ou cópia vil um do outro. Questão é saber se há ou não um actor que age ultra vires, usurpando as funções próprias de outro actor do mesmo poder (ou até de outro dos poderes) e, por essa via, se convola naquilo que não deveria ser. Sei que entende isto que digo.

Raia a provocação sugerir que seja alvo de medalha quem, em monopólio de longos anos, e obviamente ufano de tal privilégio, concentrou em si tanto poder e tantos dados (se vazaram ou não, pergunte-se à manha do correio?) e que, contrariamente ao dr. Ivo Rosa ou à dr.ª Fátima Mata-Mouros, jamais agiu nas suas vestes constitucionais de juiz das liberdades ou de juiz-travão.

Seja em sede de uma tarefa essencial no Estado-de-Direito, de garante de qualquer investigado ou acusado contra os poderes: abrir / vedar a sinaleira ao impulso do investigador durante o inquérito - no qual, aliás, esse mesmo investigador deveria sempre investigar não apenas à charge mas também à décharge; ou sindicar a actividade pretérita do investigador.

Portanto, se o José crê que o dr. Carlos Alexandre é credor de uma homenagem no 10 de Junho, fica claro o seu modelo de juíz de instrução.
Algo entre o "herói" a premiar, o "herói" cujo nome deve ser conhecido, o "heroi" que dá entrevistas televisivas; o "herói-xerife" que apesar de não ser juiz de julgamento, deixa passar para a turbamulta, através dos respectivos ductos de escoamento, o papel de justiciador dos malandros, entretanto aggiornados pelas "pessoas de bem" como "corja de malandros dos políticos e dos poderosos".
Portanto, alguém que, por acção ou omissão, deixa medrar - ou, recte, intencionalmente fomenta - o germen da destruição, da indistinção e do "nothing works".
Que leva à erosão e, por fim, ao desamor aos valores próprios - humanistas, racionais e garantísticos - do Estado-de-Direito.

Mais. O que o José diz sobre Moro mostra que o José ou não sabe ou, sabendo, faz que não sabe.
Ali, foi grosseiramente violado desde logo o princípio do juiz natural aquando da avocação (!) do processo pelo mesmo Moro de Brasília para o Paraná.
Ou quando determinou a “condução coerciva” para inquirição do ex presidente, a quem não havia notificado para apresentação espontânea.
Ou quando, juiz de primeira instância, expressamente deixou gravar a conversa da então presidente e de imediato a vazou, às claras e assumidamente, para a televisão; ilegalidade e iniquidade que, posteriormente, o mesmo Moro se veio retractar perante o falecido Ministro Teori, pese embora com óbvia reserva mental.
Ou quando determinou a escuta de TODOS os advogados do escritório dos advogados do ex presidente.
Ou, entre tantos exemplos de negação prática do que deva ser um magistrado imparcial, desinteressado e respeitador da estrutura acusatória do processo penal brasileiro, quando o mesmo Moro, mesmo estando de férias em Portugal e estando já os autos em recurso perante o Tribunal Regional, esse mesmo "juiz" (com quaisquer poderes funcionais já evidentemente exauridos) agiu nos autos para que se não cumprisse um mandado de soltura imediata do ex presidente Lula decretada por um dos desembargadores de plantão do Tribunal Regional.
Ou ainda quando o mesmo Moro decretou o início de cumprimento de pena a quem não havia esgotado as legais vias de impugnação e recurso em instâncias superiores, atropelando a garantia de que só com uma condenação transitada em julgado - e ressalvada a prisão cautelar e preeventiva - se pode efectivar uma pena condenatória, situação que só muito mais tarde, quase 2 anos depois do início da prisão do ex presidente, foi atalhada pelo STF quando, por fim, revendo anterior posicionamento, repôs a vigência da Constituição Federal.
Ou ainda quando – sem qualquer menção ou sequer alusão fundamentatória às “escutas” mencionadas pelo José – o mesmo STF julgou nulo todo o processo face à parcialidade do Sérgio Moro, arrimando-se, entre o mais, na violação do juiz natural ou na actuação concertada com o M.P. em violação da estrutura acusatória do processo penal brasileiro
Ou, enfim, quando, tendo prendido o ex presidente que ganharia a eleição de 2018, se coloca ao serviço de um boçal e vai a ministro da justiça; e que, saindo um ano e tal depois, agora, às vésperas do 2.º turno, volta para o seu colo…
Enfim, por todo este curriculum acumulado de Sérgio Moro e do seu desserviço à integridade da Justiça, alguns dos magistrados da operação mani pulite vieram recentemente pedir para que se deixe de associar a “lava-jato” à operação italiana.

Por fim, Gárzon foi cassado das suas funções por ter ordenado escutas indiscriminadas a advogados.

Portanto, esses “heróis” que escolheu louvar têm também feito um péssimo e deletério serviço à salus publica e à democracia, muitos actuando para a degredar em mera Demagogia.
Medalhe-os, pois, José."

O assunto é recorrente, tenho escrito aqui sobre o mesmo e sendo recorrentes os argumentos também merecem que se repitam as respostas e por isso aqui vai:

A ideia de associar juízes, particularmente de instrução, a justiceiros, tem barbas. E já nem estão de molho. No início de 2017 escrevi aqui o seguinte, a propósito da associação do juiz Carlos Alexandre ao juiz brasileiro Sérgio Moro, feita por um jornalista do Sol:

"Em Portugal quem tem o poder de iniciativa e de investigação criminal em casos desta gravidade e nos demais é o Ministério Público. A Alemanha tem um modelo similar, na Europa e os restantes países seguem o modelo "francês" em que é o juiz que investiga, dirigindo tal função no papel de autoridade judiciária.
Por cá é o Ministério Público, no caso o DCIAP. O papel do juiz de instrução, cá, ou seja de Carlos Alexandre e do colega que agora lá está e estes candongueiros nunca referem, não se percebendo porquê, é apenas, no caso dos inquéritos criminais,  o de assegurarem que o MºPº não cometa ilegalidades na detenção de suspeitos ou arguidos e compete-lhes aplicarem medidas de coacção que o MºPº pode propor.  Para tal terão que avaliar os indícios recolhidos pelo MºPº e por isso mesmo interrogar os suspeitos ou arguidos para lhes aplicar a medida de coacção adequada.

Ou seja, os verdadeiros "justiceiros" não são os juizes de instrução mas os magistrados do MºPº do DCIAP, neste caso.
(...) 
Assim, ao mencionar o juiz Moro, brasileiro, deveria dizer que na operação Lava Jato, a par de Moro trabalham centenas de centenas de magistrados, todos "justiceiros" no conceito da candonguice."

Em 22 de Junho de 2015, durante um debate de "Prós e Contras" na RTP comentei em directo o que disseram alguns intervenientes acerca de processos penais, com destaque evidente para o que então se agigantava nos media e servia de mote oculto à conversa, nessa altura o do Marquês, ou do então preso 44.

Mencionei então a intervenção do professor Costa Andrade ( antes de ir para presidente do Constitucional, um cargo à altura das suas circunstâncias, sistema de contactos e competências político-profissionais ao longo de décadas) que dizia algo que lhe era típico, citando autores clássicos: E Costa Andrade interroga-se, citando Séneca, ( já cá faltava...ahahah) que para a investigação deve colocar-se a questão: "para quem é que foi bom?"


Então, seguindo o mesmo método de Séneca, que é o de saber a quem aproveitam certas coisas, vamos lá saber a quem é que interessa e aproveita a confusão conceptual, travestida de discussão jurídica constante, até ao Constitucional e a chicana processual permanente.  Até um tribunal da Relação já se pronunciou sobre tais práticas há longos anos e pela pena de um juiz, pai de um ministro que já foi de um destes últimos governos. 

A chicana processual, em casos como o do Marquês, BES e EDP é notória pública e nem precisa de grandes explicações porque é o óbvio ululante. 

Por isso a resposta é simples: aproveita a quem se serve de tais expedientes. Nesse contexto que sentido fará uma observação do género "Questão é saber se há ou não um actor que age ultra vires, usurpando as funções próprias de outro actor do mesmo poder (ou até de outro dos poderes) e, por essa via, se convola naquilo que não deveria ser."

Neste caso, o actor em causa seria o juiz Carlos Alexandre que no entender do comentador agiria "ultra vires", ou seja para além do poder que lhe é conferido, abusando desse poder, por suposto, através da usurpação das funções próprias de outro actor do mesmo poder. Confesso que aqui já não entendo muito bem. A tal usurpação de funções de outro poder, refere-se a que outro poder? Só pode ser um poder estranho ao jurisdicional, por conseguinte seria o poder conferido a quem? Ao Executivo? Ao Legislativo? Ao do Ministério Público aferido ao poder de acção penal exclusiva? Se for ao Executivo não percebo sequer a alusão e muito menos ao Legislativo, porque nunca se verificou tal abuso com consequências jurídicas adequadas e que seriam apuradas em sede de recurso de decisões do mesmo juiz. Do Ministério Público ainda menos sentido faz porque abusar de tal poder é contrasenso, a não ser que se entenda que o juiz em causa vai além do exercício do poder do MºPº e é mais papista que o papa, sem justificação alguma. 

A este respeito lembro, porque lembrou uma juiz que foi em tempos também de instrução, no mesmo TCIC e que num acórdão quando era desembargadora fez a mesma figura que pode ser lida aqui e que contrasta com a famigerada afirmação de que o papel do juiz de instrução seria o de dizer não ao MºPº e polícias. Está aqui, com o carimbo da jornalista Tânia Laranjo, a assunção de que a função jurisdicional também comporta atitudes dessas, como a de instruir o MºPº a actuar em determinado modo...

Portanto, neste aspecto, o juiz merece a medalha proposta, ficando a de cortiça para quem o critica sem fundamento algum e apenas porque "sim" e porque "não", quer dizer porque não lhe agrada e isso por motivos inconfessáveis, ou seja dos tais que o Séneca sindicava há séculos. Em prol da Justiça é que não serão, com toda a certeza. 

Sobre outra afirmação em comentário, a que se refere em tom depreciativa ao juiz  "herói" a premiar, o "herói" cujo nome deve ser conhecido, o "heroi" que dá entrevistas televisivas; o "herói-xerife" que apesar de não ser juiz de julgamento, deixa passar para a turbamulta, através dos respectivos ductos de escoamento, o papel de justiciador dos malandros, entretanto aggiornados pelas "pessoas de bem" como "corja de malandros dos políticos e dos poderosos", também há algo a dizer.

Qual o requisitório, neste caso, contra o juiz? O de "exfiltrar" uma imagem de "justiciador dos malandros", alguns ligados à política partidária. 

 O argumento é de alguma forma risível, pela simples razão de que alguém no poder judicial, neste caso na instrução criminal, tem que se ocupar dos "malandros". Faz parte da profissão e a única reserva a colocar será a de se sinalizar alguma atitude, comportamento, decisão que revele prevaricação e abuso. Houve alguma, alguma vez? Sim, foi denunciado tal juiz por dar uma entrevista em que referiu "a latere" que não vivia de empréstimos de amigos  e por isso tinha que trabalhar. Tanto bastou para que os cães do costume lhe fosse morder as canelas arrastando-o para o opróbrio da queixa disciplinar. Que deu em nada. 

Pode dizer-se, como aliás disseram os mesmos mabecos, que foi tudo arquivado por artes corporativas, mas a verdade é que tal foi desvalorizado pelo poder judicial que apreciou tais queixas lamentáveis. Isso depois de os mesmos mabecos terem insultado, repetida, soez e gravemente a reputação de tal juiz, sem que o mesmo tugisse ou mugisse porque era disso mesmo que estavam à espera. 

Portanto, neste caso quem é que denigre sistemática e reiteradamente a Justiça e a sua imagem de equilíbrio e ponderação isenta? Nem é preciso responder porque a evidência ressalta mesmo à má-fé.

Sobre o requisitório que afere ao actual candidato Lula, então presidiário por corrupção grave, condenado em várias instâncias por tais práticas, a resposta é também simples porque basta evocar a suprema hipocrisia dos argumentos. Por várias razões e uma delas é esta, evidentemente. 

Vejamos: o juiz Moro foi sujeito a linchamento político-mediático como e porque razão?
Em Dezembro de 2015, Moro era um herói. 

Em Dezembro de 2019 era assim:


Não há nada como uma imagem com algumas palavras que valem mais de mil para mostrar o sentimento geral do povo em relação a Lula:



Como tudo isto era insuportável, politicamente, houve um modo de arruinar a reputação do juiz em causa e por  via indirecta arrasar o processo, como de facto aconteceu. 

O modo, completamente criminoso e com gravidade muito superior às denunciadas irregularidades do juiz em causa (e nunca foi condenado por isso mas por ter sido considerado suspeito de parcialidade na condenação de Lula em primeira instância, erigindo-se na decisão do Supremo, a hipocrisia como letra de lei), consistiu no seguinte que se transcreve da Wikipedia e que mostra bem algumas semelhanças com o que se pretende fazer aqui, no processo Marquês ( e com os mesmíssimos objectivos, até agora gorados): 

"O Intercept Brasil publicou mais de 100 artigos[268] mostrando, entre outras coisas, que Moro coordenou indevidamente com o Ministério Público e trouxe evidências de fontes externas que não passaram pelos canais legais adequados.[269]

Em junho de 2019, o periódico virtual The Intercept publicou matéria com vazamento, de fonte anônima, de conversas no aplicativo Telegram na qual orientava a promotoria, sugerindo modificação nas fases da operação Lava Jato. Também mostram cobrança de agilidade em novas operações, conselhos estratégicos, e antecipação de pelo menos uma decisão.[270][271]

Moro teria ainda fornecido pistas informais e sugestões de recursos ao Ministério Público. Segundo juristas, tal prática viola o código de ética da magistratura e a Constituição brasileira, por desrespeitar os princípios da imparcialidade, independência e equidistância entre defesa e acusação.[272]"

(...)

Em outubro de 2019, juízes europeus acusaram Moro de parcialidade afirmando que houve "...procedimentos ilegais e imorais adotados contra o ex-presidente Lula, a justiça brasileira hoje está passando por uma verdadeira crise de credibilidade"[230] e em novembro uma pesquisa interna da força tarefa da operação "lava jato" concluiu que Moro foi parcial com Lula.[231]

Segundo uma pesquisa divulgada pela Folha de S.Paulo em agosto de 2020, 97% dos 283 professores de direito que responderam à pergunta disseram considerar que o ex-magistrado não atuou “com a imparcialidade exigida para um julgamento justo no caso”, apesar da manchete da Folha afirmar que "Moro não foi imparcial em julgamento de Lula, dizem 97% de professores de direito em pesquisa".[232]

A decisão de condenação do ex-presidente Lula no julgamento dos casos do tríplex do Guarujá, do sítio de Atibaia e do Instituto Lula estava mantida em segunda e terceira instância, até o ministro do STF Edson Fachin ter decidido em 8 de março de 2021, pela incompetência jurisdicional da 13ª Vara Federal de Curitiba para julgar os processos. Fachin deliberou que o julgamento dos casos pela 13ª Vara Federal de Curitiba, que tinha Sergio Moro como titular na época das condenações, não obedeceu ao princípio do juiz natural. A decisão de Fachin foi vista por juristas e políticos como uma tentativa de anular o julgamento mas preservar a imagem do ex-juiz, anulando os três processos que corriam em Curitiba, sendo determinado a anulação dos atos decisórios e a remessa dos autos para distribuição a um juiz competente em Brasília-DF.[233] O Supremo Tribunal Federal anulou as sentenças contra Lula em duas as decisões.[234] Em 2022, após seis anos de análise do caso em Genebra, o Comitê de Direitos Humanos da ONU concluiu que Moro foi parcial em seus julgamentos dos processos contra o ex-presidente.[235][236]

Moro avaliou que o comité da ONU errou[236] e "a decisão do STF [foi] um grande erro judiciário"[237] A decisão favorável dada pelo STF e pelo Comitê de Direitos Humanos levou Sergio Moro a gravar uma série de vídeos em defesa da Lava Jato.[130]


Em relação a tudo isto torna-se necessário dizer o seguinte: a justiça brasileira é como é. A nossa idem, aspas. Uma coisa é certa:

Tanto o juiz Sérgio Moro como o juiz Carlos Alexandre não merecem o tratamento que lhes foi dispensado por alguns media e alguns comentadores. Em coerência, os mesmos deveriam ignorar as provas recolhidas por métodos criminosos, como foi o caso de Lula e Sérgio Moro, porque não toleram qualquer irregularidade que possa ser assacada aos juízes. 

As "ilegalidades" apontadas ao juiz Moro consistiram basicamente em quê? Em conversas que manteve com o MºPº acerca dos métodos que poderiam e deveriam ser usados para maior eficácia relativamente ao processo. 

Qual a infracção? "Segundo juristas, tal prática viola o código de ética da magistratura e a Constituição brasileira, por desrespeitar os princípios da imparcialidade, independência e equidistância entre defesa e acusação."

Diga-se desde já o seguinte: como foi isto e nada mais, se em qualquer processo português ou estrangeiro, fosse recolhida prova do mesmo modo, relativamente ao relacionamento pessoal e institucional entre procuradores e juízes de instrução, mesmo em Portugal, o escândalo porventura seria ainda maior do que este de Sérgio Moro. Porque na realidade as coisas passam-se de modo prosaico e por vezes muito semelhante, sem qualquer problema jurídico ou de outra natureza. O relacionamento profissional entre magistrados por vezes assim o permite, sem pruridos ou impedimentos de qualquer espécie. E não vejo qualquer inconveniente nisso. O mesmo se passa entre juízes e advogados em sede de processo civil, actualmente. 

Por outro lado, será legítimo aproveitar esta prática criminosa de intercepção, já nem digo ilegal, mas pura e simplesmente criminosa, para sustentar violações de natureza ética de um juiz? É a pergunta que fica. 

A hipocrisia dos dois pesos e duas medidas é evidente e por isso volto a Séneca: a quem aproveita tal hipocrisia?!

Tinha colocado o título do postal como "A hipocrisia dos comentadores da Justiça". Mudei, não porque deixasse de ter sentido mas porque afinal os argumentos hipócritas não se devem confundir com as qualidades das pessoas que os usam. 

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