quarta-feira, janeiro 04, 2017

Vanessa, Marco, Fábio, Márcio e a cretinice ambiente

Na revista Ler do Inverno de 2016 aparece uma longa entrevista a António Araújo, apresentado como "mestre em Direito Público" e doutorado em História Contemporânea na Univ. Católica com uma tese "sobre a oposição católica ao marcelismo e o caso da Capela do Rato", para além de outros itens de um currículo académico que o conduziu a  instituições extractivas ( é assessor, consultor, da presidência da República, o que fica tudo dito a esse propósito).

A entrevista é irritante em várias passagens, pela arrogância que exala a propósito de algumas explicações para certos  fenómenos sociais. Nunca aparecem as expressões "a meu ver", "segundo penso", "parece-me", etc etc.
Este indivíduo tende a categorizar certos fenómenos como se fosse um mestre intelectual do nosso pequeno universo e lhe tivesse sido revelada a essência das coisas banais em linguagem booleana eivada do simplismo próprio ao formato mp3. Explico:  o mp3 é um formato digital de compressão do som que suprime a linearidade analógica da onda, cortando-a literalmente em pedacinhos digitalizados, tentando enganar o ouvido humano habituado a subtilezas para além dos números. O som que daí resulta  é comprimido e incompleto. Quem escuta parece-lhe perfeito mas torna-se cansativo porque oco em algumas frequências e carente da beleza subtil da onda original.
O que se lê na entrevista assemelha-se a tal  por comprimir em conceitos  aparentemente adequados, o que resulta ser oco e desajustado e carente da explicação compreensiva do fenómeno.
Porém, para quem é, parece que bacalhau basta, como é o caso destes conceitos agora esportulados e que já faziam parte do livro que em tempos aqui foi recenseado em que comparei o autor a uma certa Eduarda Dionísio.

 


Por exemplo, o conceito de elite e povo que começa por dar o mote à entrevista.  "As elites estão muito afastadas daquilo que que se deve considerar cultura num sentido amplo, do ponto de vista de hábitos culturais e de consumo de massas. Quando se fala em cultura popular, por exemplo, isso pressupõe já, de certo modo, uma apropriação dos hábitos dos pobrezinhos. O "povo" tem estado ausente dos discursos sobre cultura".

O que quer isto dizer? O que são as tais elites? O que é o tal povo dos pobrezinhos? Quem é que produz o tal discurso sobre a cultura que não é ouvido pelos pobrezinhos?

Que raio de linguarejar é este? Outra Eduarda Dionísio?!

E a entrevistadora, na mesma onda mp3, pergunta indicando o problema: "apesar de, na verdade, quase ninguém saber do que fala quando fala de povo". Pois...mas ainda assim, insiste o intelectual na compressão:

"Dou três exemplos no livro ( textos de Clara Ferreira Alves, Pacheco Pereira e Miguel Sousa Tavares) de quando os intelectuais se arvoram em arautos do povo e não fazem mais que uma representação quase ficcionada desse mesmo povo".

Aqui chegado e apenas na segunda resposta da entrevista já estou cansado de ouvir este mp3 que me soa a frequência estafada da cretinice ambiente.

Então aqueles espécimes é que são os "intelectuais"? A Clara Ferreira Alves é uma intelectual?! De quê? Da croniqueta no Expresso? De um livro esquecido nas tulhas dos livreiros, coitados, que tiveram de suportar os custos da edição inútil?

E continua a recitar em compressão mp3, citando Milton Nascimento de um disco de 1981 ( Caçador de Mim): "dizer que  "é preciso ir onde o povo está",  como canta Milton Nascimento, pressupõe desde logo, que existe uma discrepância de lugares entre o povo e aqueles que falam em seu nome. Mas, na verdade, a elite intelectual não se interessa de todo por quem lê o Correio da Manhã ou por saber qual é o programa mais visto na televisão".

Este som, traduzido em bytes conceptuais, falha algo essencial. Milton Nascimento canta efectivamente que "todo o artista tem de ir onde o povo está", na canção Nos Bailes da Vida,  referindo-se ao ofício de cantor e à necessidade de ganhar a vida "na estrada",  quem assim começou. É esse o contexto e nenhum arrebatamento poético se extrapola para além disso:
Foi nos bailes da vida ou num bar
Em troca de pão
Que muita gente boa pôs o pé na profissão
De tocar um instrumento e de cantar
Não importando se quem pagou quis ouvir
Foi assim .  


Adaptar este conceito poético sobre a profissão do cantor popular ao intelectual que tem de se aproximar do povo é um exercício vão,  ao dizer que tal pressupõe uma discrepância de lugares entre o povo e aqueles que falam em seu nome. Não é nada disso e a comparação é apenas pedante.

Nos dizeres de Araújo, aliás, topam-se estas discrepâncias com alguma frequência de compressão e que enganam o leitor desatento.

A páginas tantas da entrevista sai-se com esta, a propósito da onomástica "antiga" supostamente recuperada depois do aparecimento da revista Olá, de um Semanário já extinto e que surgiu em 1983:

"Já passou o tempo das Cátias Vanessas...O primeiro momento de estupefacção com essa onomástica, muito importada das novelas, está registado na música do António Variações, "Maria Albertina, porque foste nessa de chamar Vanessa à tua menina?"

É certo que Variações cristalizou em sonoridade cantada o verso em causa. A música será de 1983,  mas foi popularizada apenas em 2004 pelo grupo Humanos. Mais de dez anos depois e só nessa altura ouvido publicamente porque Variações, nos discos que editou em vida não incluiu tal tema para ser ouvido como se fosse "o primeiro momento de estupefacção com essa onomástica, muito importada das novelas".

Não foi e estas compressões conceptuais ficam mal pela incorrecção, pela desnaturação e pela falsificação implícita. Nem chegam sequer a pedantice...

Muito antes de Variações ter descoberto em 1983 a especial apetência das marias albertinas em dar nomes abrasileirados aos filhos, já havia a tendência  para os marcos, para os fábios e até, quiçà, para as danielas. Não foi preciso o génio de Variações trazer à luz de uma canção a descoberta mirífica do fenómeno que toda a gente percebia. Se calhar com excepção dos intelectuais da escrita...

São estas compressões que desvirtuam a qualidade de análise destes fenómenos correntes e a entrevista parece-me eivada de casos destes, de compressão e desnaturação de conceitos. Outro exemplo, para terminar:

O Correio da Manhã é apresentado como o jornal que a "elite" não lê e destinado a quem não pertence à tal elite,  seja isso o que for que nunca é bem explicado e aparece comprimido, em tom de "elite intelectual",  o que é outra compressão desnaturada.

A ideia básica que se adivinha mas não se expressa é que o Correio da Manhã não é um..sei lá, um Público, ou até mesmo um Diário de Notícias.
Porquê? Porque sim, porque não é e dá-se como assente e consensual tal asserção assim comprimida.

 Ora, quod erat demonstrandum, como diria um jurista qualquer, sem compressão necessária.

O Correio da Manhã centra muita da sua atenção nos fait-divers noticiosos, com destaque para as ocorrências que denotam crimes, escândalos sociais ou tidos como tal, acontecimentos do dia a dia que deveriam ser o tema de qualquer jornal diário.
O Jornal de Notícias do Porto faz exactamente a mesma coisa, ainda melhor.

Colocar o Correio da Manhã como exemplo de jornal que não interessa às tais elites ( sejam lá o que forem, mesmo as intelectuais) é um erro e resulta outra vez da tal compressão conceptual que deriva de uma falta de entendimento sobre o que é verdadeiramente o jornal Correio da Manhã.
Raramente é desmentido, tem uma dignidade jornalística que o Diário de Notícias e o Público não têm, apesar de julgarem que sim, etc etc.

Como não temos em Portugal jornais verdadeiramente trash, embora politicamente o Diário de Notícias pudesse ser a tal assimilado ( e não o Correio da Manhã), resulta esta confusão conceptual que passa por sabedoria de elite.

Para mostrar a confusão que pode advir da classificação apressada do que é um jornal popular e desviado do interesse das tais "elites", deixo aqui um exemplo antigo de um jornal popular desafiando quem o possa classificar mesmo em modo de compressão...

Diário Popular de 7.12.1971:


Suplemento do Diário Popular das quintas-feiras, do dia7.1.1971:



























Se este jornal diário dos anos setenta, do tempo do Estado Social de Marcelo Caetano se destinava a leitores "populares" não parece nada despiciendo afirmar que era também um jornal para as "elites" tanto mais que a informação corrente da propaganda do actual regime é a de que nesse regime antigo o do "salazarismo" havia muito analfabetismo e obscurantismo. Este exemplar que mostro é anterior ao caso da "Capela do Rato"...

Algumas destas afirmações acerca da natureza daquele regime antigo são produzidas por quem era jornalista na época e devia saber melhor o que diz, deixando por isso de emitir opinião em modo mp3...como faz este António Araújo cuja entrevista, por isso mesmo se revela muito cansativa de ler.

10 comentários:

zazie disse...

Ele é o Mr Chance do "I like to watch". Literalmente- até fisicamente é parecido com o Peter Sellers (no caso o jardineiro que passava por génio apenas por repetir banalidades que via na tv)

Floribundus disse...

lembro-me dos
'peixinhos encarnados na pia da água benta'

a certidão de elite e intelectual são passadas pela esquerda

podem limpar o cu arrebentadoa à papeleta

lusitânea disse...

O Marcelo anda mesmo bem acompanhado.As bissectrizes são assim...

Floribundus disse...

será que no seu fabuloso arquivo possui elementos sobre a denúncia de Alfredo Pimenta de campos de concentração dos vencedores da IIGM
para internamento e reeducação dos nacional-socialistas alemães

na década de 40 conheci o sr através da familia de mulher

soube por essa altura da existência dos campos
por ter um prof judeu
amigo de um fundador de sinagoga no Porto


muja disse...

Por falar em salazarismo...

Neste Natal pedi ao Menino Jesus os Discursos de Salazar; e o alfarrabista designado para mos enviar informou que, infelizmente, já não tinha as edições em vários volumes para a qual tinha recebido o respectivo pagamento e que me remetia, em alternativa, uma edição num volume só, de 2015.

Intrigado, por ignorar que existisse tal coisa, ainda que desconfiado, aguardei o desenlace sem protestar.

Porém, cá a tenho. Existe, realmente, uma edição de 2015 dos Discursos, pelos vistos aumentada e tudo.

Não é barata - 80 euros! - mas parece satisfatória: capa dura, papel fino e, pelo menos, vem na ortografia original, ainda que, à primeira vista, a impressão não seja a melhor. Pode encontrar-se aqui:

http://www.livrariajuridica.com/ins_product.aspx?&SUB_NAV_ID_OBJ=42877

Não sei se vale justamente o dinheiro, mas como não há outra, é melhor que nada...

josé disse...

Não foi o único que andou à procura disso...só que eu comprei uma edição de luxo de Antologia dos discursos de Salazar, editada em 1955 e ainda com dedicatória do autor a uma pessoa bem conhecida do Porto de então: Braga da Cruz, governador civil...

muja disse...

Eu também vi uma autografada - pediam 500 euros por ela...

Mas essa de 55 não pode tê-los a todos...

josé disse...

Não, claro que não. Mas tem o que os discursos não têm: uma escolha entre discursos, entrevistas e artigos, com alguns temas como a Educação, em várias páginas.

muja disse...

Pois sim, fica o alerta para quem se interesse.

Manuel Pereira da Rosa disse...

Gostei da analogia com a onda sonora continua e completa com variação (derivada para elite) em cada ponto, sem quebras nem saltos.
Lembrando o meu anterior comentário onde chamava atenção para a palavra povo se encontrar em minúsculas na crp de 1976 - primeira vez que o soberano é assim designado - presumo que deve ser este tipo a lançar a confusão entre povo e populaçã.
Numa democracia é grave. Depois o que vemos é um bando de arrivistas a dar cabo disto tudo.
Já agora , nao basta um grupo de lobos para constituir uma alcateia. Se não souberem viver como alcatéia morrerão à fome e frio.

A obscenidade do jornalismo televisivo