A morte recente de David Bowie trouxe à tona um fenómeno
que parece ter chegado para ficar,
porque já se repete depois da morte de Lou Reed: a importância mediática concedida
aos desaparecimentos de alguns artistas, particularmente da música popular de
expressão anglo-saxónica.
Os cantores em inglês tornaram se um fenómeno global de uma cultura popular que em poucas décadas
conquistou o lugar de maior relevo na
divulgação musical nos media e até os “tops” são “hit parades” em vez de listas
de sucessos ou de mais vendidos.
Há quarenta anos ainda se ouvia nos rádios músicas cantadas
em línguas europeias mais vizinhas, como o francês, espanhol ou italiano. Hoje,
são raridade e está quase tudo tomado
pela produção em língua inglesa que se tornou avassaladora porque quem distribui os sons para se ouvirem nos rádios e vender em cd´s ou ver nos concertos são empresas provenientes desses países em que se fala inglês e nada mais.
Nós por cá, nesse aspecto, continuamos na cepa torta de que nunca saímos, apesar de a Antena Um ter passado a dar atenção maior à música feita em bom português, o que já não era sem tempo e cada vez mais bem feita, aliás.
Será o caso de David Bowie um reflexo desse fenómeno de aculturação por ausência de comparência? Parece-me que
nem tanto.
No dia a seguir à morte do artista os jornais deram um
destaque de primeira página com um relevo de várias páginas no interior em que
supostos especialistas em cultura musical pop publicaram impressões de
internet, agora muito recheada de informações a preceito e que ajudam qualquer
um a escrever um artigo qualquer, sem muito esforço a não ser o de procurar no
Google. Até a Vogue se meteu a tratar o assunto...decretando que Bowie mudou a música!
Este interesse inusitado e mediático por um David Bowie e antes por um Lou Reed, ambos do mundo do
espectáculo musical e não só, parece um bocado estranho, pela desmesura da
atenção, porque também vem acompanhado de considerações encomiásticas sobre músicos que se finaram com uma obra de várias décadas
mas que não eram especialmente populares em termos de vendas, na época em que
as publicaram.
As obras primas de Reed ou Bowie não despertaram a atenção
no tempo em que foram publicadas- todas na primeira metade da década de
setenta, de acordo com a que agora
merecem nos media de hoje.
A primeira compilação de êxitos de Bowie ocorreu nos anos
oitenta e o grande disco dos Greatest Hits, Changes One Bowie, é de 1990 e
integra Space Oddity, Changes,
Ziggystardust, Jean Genie, Rebel Rebel, Fame, entre outros.
Nada de especial, nada de fantásticamente genial e nada que outros na mesma
época não fizessem, pontualmente melhor, em forma de single de
sucesso.
Roxy Music, por exemplo ou Sparks
ou até Marc Bolan e os T. Rex, Mott the Hoople ou até Alice Cooper, Cockney
Rebel, Slade ou Gary Glitter porque o estilo musical até meados da década de
setenta baseou-se no que convencionalmente se chamava "glitter rock",
o rock do "glamour" das palhinhas , fitinhas e adereços a brilhar no escuro, com sapatos de salto alto e roupas efeminadas e suspeitas . Um rock com
acentos andróginos que chocava de algum modo o "mainstream" e que foi
rapidamente integrado como moda. Em 1976 já tinha passado e o punk dava os primeiros sinais.
Relativamente a Lou Reed pode dizer-se o mesmo. Quem é que
verdadeiramente ligou a Transformer, de 1972, como se fosse um disco de génio, mesmo com " Walk on
the wild side"? E mesmo aos Velvet
Underground, alguns anos antes?
Em Portugal, atrevo-me a dizer, ninguém de relevo porque não
se lia nada sobre eles, na época, embora se ouvissem porque se comprava os discos.
Lou Reed fez um grande sucesso radiofónico, por cá, com um
disco ao vivo, Rock n roll animal, em 1974 e com as versões de velhas canções
dos Velvet, como Sweet Jane, exploradas em ambiente de concerto e que são
magníficas passadas no rádio.
Quantas pessoas ouviram Major Tom ( Space Oddity) ou Sufragette city ou mesmo Rock n rol suicide,
em 1972, ano em que saiu Harvest de Neil Young e American Pie de Don McLean? Não muitas e suspeito que nem agora as ouviram ou conhecem.
Let´s dance ou Ashes to ashes, dez anos
mais tarde, já será mais provável, porque são de outro tempo mediático, mas
não seria suficiente para tanto barulho, apesar do ritmo dançante e petulante da década em que saíram.
Na lista da revista americana Billboard sobre os 100 discos mais
vendidos de 1972, não aparece um único
daqueles dois artistas. Nas listas
inglesas, idem, mas aparecem Marc Bolan
e os T.Rex, por exemplo.
Em 1973, ano do auge do rock glamoroso, o panorama não se
alterou muito porque aparecem Sorrow e Jean Genie a meio das tabelas de vendas inglesas, títulos porém ignorados nos EUA.
Tal não significa a irrelevância destes artistas no panorama
musical da pop dessa altura, mas serve de aferição para a relativização da sua
importância que agora se altera de modo drástico.
Tanto Bowie como Lou Reed, como músicos profissionais foram
produzindo ao longo dos anos as suas obras em disco, algumas delas importantes
e de grande qualidade mas o essencial das mesmas e que marcou o rock n roll
aconteceu até meados da década de setenta e havia muita concorrência artística
nessa época e nesse campo.
Basta ouvir os primeiros discos dos Roxy Music ou os
primeiros a solo de Brian Eno para perceber quem é quem nesse campeonato e o que é a verdadeira excelência nesse campo musical.
E isso para nem citar outros mestres da arte como Kevin
Ayers, falecido há anos num completo
silêncio dos que agora arvoram manchetes ditirâmbicas.
Há por isso um contexto que é o dessa época em que a música
popular de expressão anglo-saxónica se expandiu nesse universo dos discos
editados, alguns passados com insistência nos rádios, concertos realizados e
acompanhamento mediático que então se cingia às publicações da
especialidade.
Porém, nesse universo as estrelas não faltavam e essas nem
eram as mais brilhantes, razão pela qual é necessário compreender por que num
espaço de duas ou três décadas se tornaram os ícones dessa música e cultura popular, em
detrimento de alguns outros igualmente inventivos, imaginativos, interessantes
e com qualidade musical superior em alguns casos.
A maior parte dos leitores do Público, do Expresso ou de
qualquer outro jornal ( porque todos fizeram manchetes com a notícia) que deu uma importância de capa ao assunto Bowie nem conhece, pela certa, a maioria das canções que Bowie ou Reed então publicaram e que se tornaram
agora referências extemporâneas de um gosto serôdio .
Há por isso que se encontrar a razão do actual mito criado
para esses artistas e que é muito recente , tornando-se, como se diz agora,
viral.
A mitologia contemporânea tornou-se bastante curiosa porque
aparentemente não se suporta em razões que sejam conhecidas por razões
concretas muito definidas e necessariamente ligadas à arte musical.
A mitificação de Bowie ou Reed não decorre apenas das suas
canções, que sendo de qualidade não chega para
tal efeito.
Há vários artistas que na mesma época tinham canções de
qualidade superior e produção musical equivalente e não atingim e estrelato
deste firmamento. Porquê estes e não outros?
Uma evidência se impõe, desde logo: a exposição mediática,
tanto de Lou Reed como de David Bowie, ocorrida logo após a morte dos mesmos
foi excepcionalmente global e de intensidade noticiosa inusitada.
Basta googlar "david bowie magazine covers " para aparecer uma
cornucópia de imagens que explicam muita coisa sobre a desmedida atenção mediática concedida.
Bowie é um ícone incontestável da cultura pop e isso vê-se desde a década
de oitenta, até agora. Ora os mitos
fabricam-se desse material em imagem sintética e quanto mais estranha e mutante
melhor. David Bowie nunca se fez
rogado nesse aspecto e pode estar aí a explicação prosaica para o fenómeno.
Uma forma de explicar o seu aparecimento será recorrer à memória escrita do tempo que
passou. Recortes, pois claro.
A ideia mais antiga que tenho de ouvir Bowie remonta a 1973
e à canção Sorrow, que fazia parte da compilação Pin Ups, de final desse
ano. O disco não contava, apenas o single que passava repetidamente no
rádio, num programa do Porto apresentado por Júlio Montenegro.
Na mesma altura recordo-me de ver um colega de liceu com um
dos discos de Bowie debaixo do braço, possivelmente o mesmo Pin Ups, sem mais
porque era assim que a malta nova mostrava os os discos, dantes: exibia-os como ícones de linhagem cultural e afluência.
Nos escaparates das
livrarias e quiosques da época lembro-me bem desta capa de Agosto de 1974 de uma revista
francesa- Rock & Folk- que dava importância a Bowie, para além da que os
ingleses davam, nos seus jornais NME, Melody Maker ou Disc.
Antes disso, em 15 de Julho de 1972, num jornal inglês- Disc- aparecia uma crítica a um espectáculo de Bowie, por ocasião do lançamento de Ziggy Stardust em que era colocado no lugar que então ocupava: a par dos demais, particularmente T. Rex, o grande fenómeno musical desse tempo.
Em Julho de 1974 uma publicidade numa revista
americana- National Lampoon- ao disco Diamond Dogs ( sem grande interesse musical) era um mimo artístico, com uma técnica de
ilustração então em moda: a areografia que os R. Stones também usavam
amiúde ( a língua de Sticky Fingers...)
Em Abril de 1975 o interesse da revista francesa reforçava-se, como aliás ao longo dos anos.
A Rock & Folk, desde 1972 a 1987 deu dez capas a David Bowie. A Rolling Stone americana no mesmo período, deu-lhe 4. Uma em 1972 e todas as demais depois de 1983.
No mês seguinte, na mesma revista, o grande crítico Philippe Garnier ( que escrevia sobre música popular como ninguém nessa altura ou depois, em Portugal) relatava as suas impressões sobre Bowie:
"Nunca gostei de Bowie; jamais ouvi um único dos seus discos do princípio ao fim, mesmo as supostas obras-primas como "Hunky Dory". Achei sempre a sua personalidade como execrável e as suas excentricidades banais. E quando o seu incontestável talento de fazedor e de produtor excitava um pouco a minha curiosidade, abandonava rapidamente porque é impossível uma aproximação à sua música sem patinhar na sua personalidade viciosa, sem jogar o seu jogo".
Garnier escrevia isto e depois declarava que gostava do novo disco...
É exactamente esta a opinião que tenho sobre David Bowie e não percebo este mito à sua volta. Bowie parece-me um Marcelo Rebelo de Sousa da música...
23 comentários:
ehehe
É o look. E agora até está na moda num sentido que antes nem tinha.
E é pop. Mais pop que rock
Mas em 72 já o José guardava notícias destas? e o jornal Disc?
C'um caraças
Isto ajuda
https://podofsweetpeas.files.wordpress.com/2014/10/angie-and-bowie.png
O jornal Disc comprei por causa dos...Deep Purple e do baterista Ian Paice. Toquei bateria...
Sobre Bowie, nessa altura, nada a não ser...Sorrow que nem é do cantor.
Acho que para escrever sobre música e músicos nesta era da internet com tudo em linha, o melhor é contar as experiências pessoais.
Tocou bateria?
ehehehe
Sim, tenho duas fotos...e já as coloquei algures.
Uma mostra a posição de baterista a cantar o Wild World do Cat Stevens que eu conhecia na versão de Jimmy Cliff. Oh...baby, baby, it´s a wild world...e lá ia uma rodada nos tons tons.
Entalado num deles tinha a letra em inglês que ainda mal dominava ( tinha 14 anos...)e a meio da cantiga o papel desapareceu. Tive que improvisar mais baby baby...
De outra vez a baqueta saiu me das mãos e voou para a frente do bombo. Lá tive que me levantar num ápice e ir buscar...enquanto ouvia um bruá na assistência, com palmas e risos à mistura. Uma vergonha.
eehehhe
Eu gostava do Bowie mas gostava mais do empurrão cultural do que da música. Sou filho da época do grunge e glitter a mais faz-me espécie...
Quanto a menos conhecidos que fazem melhor...o Buddy Guy faz e fez mais, melhor e primeiro que o Hendrix e é o que é.
Sobre o Bowie não coloquei a conclusão a que cheguei: este fenómeno tem a ver com a rebeldia de género. Bowie, como Reed e outros foram rebeldes que adoptaram atitudes muito dúbias em relação à sexualidade e isso é motivo de atracção para certas pessoas que agora estão nos media.
Lobby gay junta essa utilidade da notícia oportuna ao agradável de mencionarem o que pretendem, sempre. É esse o motivo quanto a mim.
Sim. É isso e agora nem sequer entendem que ele teatralizava e nada tinha a ver com militâncias de género.
Mas é isso- é o transgender, o andrógino.
Ele era british que pode parecer isso tudo e ser mentira.
A imagem fala mais alto nos dias de hoje.
Só há uns meses comprei o lp Changes One Bowie por causa do Space Oddity. Não tinha a canção e apetecia-me gravar em formato digital de alta resolução, para ouvir como estou a ouvir agora o Another Green World de Brian Eno, na versão original do LP Island ( tinha o da Polydor mas não era o original e há diferenças para melhor, neste último que é fantástico e nunca Bowie fez coisa que se assemelhasse.)
E tinha em cd os clássicos Hunky Dory, ziggy Stardust, Scary Monsters, que ouvi ontem. Não me convencem quanto ao som e nem mesmo Time ou Rock n roll suicide me fazem alegrar o espírito musical. Mas mandei vir Let´s Dance que não tinha e tenho andado a lembrar porque é uma grande composição dos oitenta.
não desgosto de alguns anglo-sexónicos
mas este não conhecia nem aprecio
como não sou saudosista ando a ouvir clássicos que nunca tivera oportunidade de escutar
o som do pc não é o melhor, mas é melhor que nada
Ó homem compre uns altifalantes
Pouco adianta. Vale mais a pena comprar um dac. Um barato que se vende nsa fnacs. Um dac é uma carta de som externa e que permite reproduzir através das entradas/ saídas USB o som em condições mais perfeitas.
Para ouvir a diferença basta uns auscultadores.
Neste momento enquanto vejo o Diehard na tv ouço os Byrds e escrevo aqui, através de um dac externo: Fiio X5 ligado a um TEAC UD H01. Som de alta fidelidade garantida. O melhor que se pode ouvir.
Daqui a pouco vou me deitar que já o devia ter feito.
O FiiO é um leitor de alta resolução de ficheiros digitais gravados num cartão sd, em 24 bits e 192 kHz. O máximo de resolução para ser lido deste modo.
O leitor que é um pequeno aparelho está ligado ao TEAC proque é de mesa e permite um som melhor ainda. Mas o Fiio X5 ( chinês, bas ver no Google o que é) é uma pequena maravilha técnica.
Fantástico.
O FiiO é uma especie de Walkman do tempo actual. Comprei o na Alemanha, nas férias.
Os auscultadores são Sennheiser hd 40 com trinta anos que me custaram uma dúzia de euros na ebay. Perfeitos. Tenho três pares porque são os que gosto mais de todos os que já ouvi.
o FiiO se quiser posso ouvir em ambulatório como nos walkman.
E agora estou a ouvir Wish you peace dos Eagles de One of these nights.
Glenn Frey, um dos membros principais do grupo morreu hoje. Amanhã faço um obituário porque este merece.
Não sou um audiófilo. Gosto de música mas a minha abordagem é como a do Floribundus: ouvir clássicos que nunca tive oportunidade de escutar. Ultimamente até tem sido essa música francesa e italiana. Para isso bastam-me uns altifalantes que não sejam sucata.
Mas ouço um pouco de tudo. De contemporâneo é que pouco e cada vez menos. Aliás, o grosso do que por aí se ouve sem querer é cada vez mais insuportável. Já nem é música, é paramúsica ou "marketing" sonoro.
E isto não é snobismo. Gosto de música electrónica e também ouço as minhas "bandas". Mas a verdade é que tudo isso é muito fraquinho comparado com o que se dantes fazia.
Seria interessante perceber porquê. Eu cá tenho as minhas suspeitas ahaha!
E isto para dizer que no sítio desse leitor FiiO tem uma ligação para confirmar a autenticidade, presumo que do artigo adquirido. O que, vindo duma marca chinesa, não deixa de ser irónico e (para mim) divertido.
E o engraçado é que, no que toca à manufactura, sofremos uma crise semelhante à da música: é tudo sucata cujo único e singular propósito é ser vendida.
O Ike a a Tina Turner também não venderam muito na década de 60 e no início dos 70, apesar dela ser apreciada pelos grandes artistas rock da época e de fazer capa na Rolling Stone.
Os Velvet Undergroung praticamente nada vendiam nos EUA e nem entravam no top dos 150 discos mais vendidos.
O Bowie foi ganhando culto por causa das letras e da imagem dos alter-egos como o Ziggy bissexual que segundo ele revelou nos anos 80 estragou-lhe a carreira nos EUA.
Muito do que agora aparece nas listas dos melhores de sempre de revistas como a Rolling Stone, NME ou Pitchfork poucou ou nada vendeu quando surgiu.
Enviar um comentário