segunda-feira, janeiro 18, 2016

David Bowie: It´s only rock n´roll (but i like it)…mas não muito de Bowie




 A morte recente de David Bowie trouxe à tona um fenómeno que  parece ter chegado para ficar, porque já se repete depois da morte de Lou Reed: a importância mediática concedida aos desaparecimentos de alguns artistas, particularmente da música popular de expressão anglo-saxónica.
Os cantores em inglês tornaram se um fenómeno global  de uma cultura popular que em poucas décadas conquistou  o lugar de maior relevo na divulgação musical nos media e até os “tops” são “hit parades” em vez de listas de sucessos ou de mais vendidos.
Há quarenta anos ainda se ouvia nos rádios músicas cantadas em línguas europeias mais vizinhas, como o francês, espanhol ou italiano. Hoje, são raridade e está quase  tudo tomado pela produção em língua inglesa que se tornou avassaladora porque quem distribui os sons para se ouvirem nos rádios e vender em cd´s ou ver nos concertos são empresas provenientes desses países em que se fala inglês e nada mais. 
Nós por cá, nesse aspecto, continuamos na cepa torta de que nunca saímos, apesar de a Antena Um ter passado a dar atenção maior à música feita em bom português, o que já não era sem tempo e cada vez mais bem feita, aliás.

Será o caso de David Bowie um reflexo desse fenómeno de aculturação por ausência de comparência? Parece-me que nem tanto.
No dia a seguir à morte do artista os jornais deram um destaque de primeira página com um relevo de várias páginas no interior em que supostos especialistas em cultura musical pop publicaram impressões de internet, agora muito recheada de informações a preceito e que ajudam qualquer um a escrever um artigo qualquer, sem muito esforço a não ser o de procurar no Google. Até a Vogue se meteu a tratar o assunto...decretando que Bowie mudou a música!

Este interesse inusitado e mediático por um David Bowie  e antes por um Lou Reed, ambos do mundo do espectáculo musical e não só,  parece um bocado estranho, pela desmesura da atenção, porque também vem acompanhado de considerações encomiásticas sobre músicos  que se finaram com uma obra de várias décadas mas que não eram especialmente populares em termos de vendas, na época em que as publicaram.
As obras primas de Reed ou Bowie não despertaram a atenção no tempo em que foram publicadas- todas na primeira metade da década de setenta,  de acordo com a que agora merecem nos media de hoje. 
A primeira compilação de êxitos de Bowie ocorreu nos anos oitenta e o grande disco dos Greatest Hits, Changes One Bowie, é de 1990 e integra Space Oddity,  Changes, Ziggystardust, Jean Genie, Rebel Rebel, Fame, entre outros.
Nada de especial, nada de fantásticamente genial e nada que outros na mesma época não fizessem,   pontualmente melhor, em forma de single de sucesso.  
 Roxy Music, por exemplo ou Sparks ou até Marc Bolan e os T. Rex, Mott the Hoople ou até Alice Cooper, Cockney Rebel, Slade ou Gary Glitter porque o estilo musical até meados da década de setenta baseou-se no que convencionalmente se chamava "glitter rock", o rock do "glamour" das palhinhas , fitinhas e adereços a brilhar no escuro, com sapatos de salto alto e roupas efeminadas e   suspeitas . Um rock com acentos andróginos que chocava de algum modo o "mainstream" e que foi rapidamente integrado como moda.  Em 1976 já tinha passado e o punk dava os primeiros sinais.

Relativamente a Lou Reed pode dizer-se o mesmo. Quem é que verdadeiramente ligou a Transformer, de 1972,  como se fosse  um disco de génio, mesmo com " Walk on the wild side"?  E mesmo aos Velvet Underground, alguns anos antes?
Em Portugal, atrevo-me a dizer, ninguém de relevo porque não se lia nada sobre eles, na época, embora se ouvissem porque se comprava os discos.  
Lou Reed fez um grande sucesso radiofónico, por cá, com um disco ao vivo, Rock n roll animal, em 1974 e com as versões de velhas canções dos Velvet, como Sweet Jane, exploradas em ambiente de concerto e que são magníficas passadas no rádio.
Quantas pessoas ouviram Major Tom ( Space Oddity)  ou Sufragette city ou mesmo Rock n rol suicide, em 1972, ano em que saiu Harvest de Neil Young e American Pie de Don McLean? Não muitas e suspeito que nem agora as ouviram ou conhecem.
Let´s dance ou Ashes to ashes,  dez anos mais tarde,   já será mais provável, porque são de outro tempo mediático,  mas não seria suficiente para tanto barulho, apesar do ritmo dançante e petulante da década em que saíram.
Na lista da revista americana Billboard sobre os 100 discos mais vendidos de 1972,  não aparece um único daqueles dois artistas.  Nas listas inglesas, idem, mas aparecem  Marc Bolan e os T.Rex, por exemplo.
Em 1973, ano do auge do rock glamoroso, o panorama não se alterou muito porque aparecem Sorrow e Jean Genie a meio das tabelas de vendas  inglesas, títulos porém  ignorados nos EUA.
Tal não significa a irrelevância destes artistas no panorama musical da pop dessa altura, mas serve de aferição para a relativização da sua importância que agora se altera de modo drástico.
Tanto Bowie como Lou Reed, como músicos profissionais foram produzindo ao longo dos anos as suas obras em disco, algumas delas importantes e de grande qualidade mas o essencial das mesmas e que marcou o rock n roll aconteceu até meados da década de setenta e havia muita concorrência artística nessa época e nesse campo.
Basta ouvir os primeiros discos dos Roxy Music ou os primeiros a solo de Brian Eno para perceber quem é quem nesse campeonato e o que é a verdadeira excelência nesse campo musical.
E isso para nem citar outros mestres da arte como Kevin Ayers, falecido há anos  num completo silêncio dos que agora arvoram manchetes ditirâmbicas.
Há por isso um contexto que é o dessa época em que a música popular de expressão anglo-saxónica se expandiu nesse universo dos discos editados, alguns passados com insistência nos rádios, concertos realizados e acompanhamento mediático que então se cingia às publicações da especialidade. 
Porém, nesse universo as estrelas não faltavam e essas nem eram as mais brilhantes,  razão pela qual é necessário compreender por que num espaço de duas ou três décadas se tornaram os ícones dessa música e cultura popular, em detrimento de alguns outros igualmente inventivos, imaginativos, interessantes e com qualidade musical superior em alguns casos.
A maior parte dos leitores do Público, do Expresso ou de qualquer outro jornal ( porque todos fizeram manchetes com a notícia) que deu uma importância de capa ao assunto Bowie nem  conhece,  pela certa, a maioria das canções que Bowie  ou Reed então publicaram e que se tornaram agora referências extemporâneas de um gosto serôdio .  
Há por isso que se encontrar a razão do actual mito criado para esses artistas e que é muito recente , tornando-se, como se diz agora, viral.
A mitologia contemporânea tornou-se bastante curiosa porque aparentemente não se suporta em razões que sejam conhecidas por razões concretas muito definidas e necessariamente ligadas à arte musical. 
A mitificação de Bowie ou Reed não decorre apenas das suas canções, que sendo de qualidade não chega para  tal efeito.
Há vários artistas que na mesma época tinham canções de qualidade superior e produção musical equivalente e não atingim e estrelato deste firmamento. Porquê estes e não outros?
Uma evidência se impõe, desde logo: a exposição mediática, tanto de Lou Reed como de David Bowie, ocorrida logo após a morte dos mesmos foi excepcionalmente global e de intensidade noticiosa inusitada. 
Basta googlar "david bowie magazine covers " para aparecer uma cornucópia de imagens que explicam muita coisa sobre a desmedida atenção mediática concedida.   
Bowie é um ícone incontestável da cultura pop e isso vê-se desde a década de oitenta, até agora.  Ora os mitos fabricam-se desse material em imagem sintética e quanto mais estranha e mutante melhor.  David Bowie nunca se fez   rogado nesse aspecto e pode estar aí a explicação prosaica para o fenómeno.
Uma  forma de  explicar o seu aparecimento  será recorrer à memória escrita do tempo que passou.  Recortes, pois claro.
A ideia mais antiga que tenho de ouvir Bowie remonta a 1973 e à canção Sorrow, que fazia parte da compilação Pin Ups, de final desse ano.  O disco não contava, apenas o single que  passava repetidamente no rádio, num programa do Porto apresentado por Júlio Montenegro. 
Na mesma altura recordo-me de ver um colega de liceu com um dos discos de Bowie debaixo do braço, possivelmente o mesmo Pin Ups, sem mais porque era assim que a malta nova mostrava os os discos, dantes: exibia-os como ícones de linhagem cultural e afluência.
 Nos escaparates das livrarias e quiosques da época lembro-me bem desta capa de Agosto de 1974 de uma revista francesa- Rock & Folk- que dava importância a Bowie, para além da que os ingleses davam, nos seus jornais NME, Melody Maker ou Disc. 

 

  Antes disso, em 15 de Julho de 1972, num jornal inglês- Disc- aparecia uma crítica a um espectáculo de Bowie, por ocasião do lançamento de Ziggy Stardust  em que era colocado no lugar que então ocupava: a par dos demais, particularmente T. Rex, o grande fenómeno musical desse tempo. 






Em Julho de 1974 uma publicidade numa revista americana- National Lampoon- ao disco Diamond Dogs ( sem grande interesse musical) era um mimo artístico, com uma técnica de ilustração então em moda: a areografia que os R. Stones também usavam amiúde ( a língua de Sticky Fingers...)




 Em Abril de 1975 o interesse da revista francesa reforçava-se, como aliás ao longo dos anos. 
 A Rock & Folk, desde 1972 a 1987 deu dez capas a David Bowie. A Rolling Stone americana no mesmo período, deu-lhe 4. Uma em 1972 e todas as demais depois de 1983.




 No mês seguinte, na mesma revista, o grande crítico Philippe Garnier ( que escrevia sobre música popular como ninguém nessa altura ou depois,  em Portugal) relatava as suas impressões sobre Bowie:

"Nunca gostei de Bowie; jamais ouvi um único dos seus discos do princípio ao fim, mesmo as supostas obras-primas como "Hunky Dory". Achei sempre a sua personalidade como execrável e as suas excentricidades banais. E quando o seu incontestável talento de fazedor e de produtor excitava um pouco a minha curiosidade, abandonava rapidamente porque é impossível uma aproximação à sua música sem patinhar na sua personalidade viciosa, sem jogar o seu jogo". 

Garnier escrevia isto e depois declarava que gostava do novo disco...

É exactamente esta a opinião que tenho sobre David Bowie e não percebo este mito à sua volta. Bowie parece-me um Marcelo Rebelo de Sousa da música...



Questuber! Mais um escândalo!