
É a terceira vez em tempos recentes que me deparo com o estenderete jornalístico acerca de artistas musicais que desaparecem de cena definitivamente e pelos estribilhos mediáticos a música é o que menos conta.
Tudo roda em volta de imagens, mitos e supostas influências na arte musical pop das últimas décadas quando se sabe há muitos anos que a inovação desse género morreu quase à nascença. As réplicas que se ouvem há mais de trinta anos são ecos do passado e pouco mais.
Duvido muito que os jornalistas que agora publicam estas homenagens em formato multi-página conheçam bem a obra desses artistas ou sequer o nome de mais de uma ou duas canções, se tanto.
E contudo escrevem como se os artistas fossem o supra-sumo dessa categoria transcendente que é a música pop ao ritmo 4/4.
O fenómeno dantes estava reservado aos ícones do cinema de sala e em casa pela tv. De há uns anos para cá, a cultura mediática abrangeu também estes trovadores do disco e do youtube pirata que permite um curso aceleradíssimo sobre a vida e obra dos ditos. Daí a extensão e a publicação de plágios em catadupa que até afligem pela semelhança do copianço generalizado.
A imagem destes artistas e a sua pretensa popularidade inventada a preceito preenchem papel e tempo de antena como nunca dantes ocorria e esse é que é o fenómeno.
Vejamos como ocorreu:.
Em 16 de Agosto de 1977 morreu o "rei" dessa música popular, Elvis Presley. Comparando com o destaque que agora é dado a este Prince torna-se absurdo medir a relevância de ambos pela exposição que mereceram.
Elvis Presley foi um percursor, um inventor, um ícone verdadeiro da pop-rock. Quando desapareceu os jornais portugueses do dia seguinte pouca importância lhe deram. Sendo certo que Elvis estava morto há muito para a vida artística de valor de uso, os obituários foram parcos em referências e esconderam-se em páginas interiores dos jornais, sem referências de maior na primeira página.
Por exemplo o Diário de Lisboa de 17 de Agosto de 1977, exemplar colhido no acervo arquivístico de uma fundação que tem um chinês como membro e que agora foi preso nos EUA.
Se alargarmos a curiosidade a um dos semanários de referência de então, O Jornal de 19 de Agosto de 1977 dava assim a imagem da importância desse rei da pop:
E nem mesmo as revistas da especialidade se alargavam muito na exegese da obra ou nos encómios ao falecido, do mesmo modo que actualmente se faz com um Lou Reed, Bowie ou agora Prince.
Na época, a música popular ainda era vista como algo relativamente marginal aos demais assuntos e relegado para o lugar que deve ocupar: o do bom senso em se apreciar com conta peso e medida apenas quando tal se justifica. E relativamente a Elvis já não se justificava e era o "rei"...
Até mesmo numa revista da especialidade, a única que então existia em Portugal e reunia o gotha da crítica do género ( que sabiam ler inglês da NME ou do Melody Maker, ou ainda da Rolling Stone americana e francês da Rock&Folk) se e escrevia assim sobre o assunto do momento:
Como se pode ler só mais de um mês depois, em 1 de Outubro de 1977 a Música & Som arranjou espaço para um pequeno apontamento sobre a morte do "rei" e para dizer que afinal estava morto há muito. A imagem nessa altura tinha pouca importância ( a não ser para o poster que pretendia vender a revista, numa imitação do início da década e com provas dadas no estrangeiro) e a lembrança da sua herança também não contava assim muito.
Então como se pode explicar a importância dada agora a tantos príncipes herdeiros desse rei morto e quase esquecido?
Não se compreende a não ser pela infantilização progressiva dos media, da predominância da imagem e da forma sobre o conteúdo e da relativização da mensagem musical substituída pela projecção de mitos assentes em ideário publicitário que falseia qualquer realidade e a transforma em algo diverso. Uma menorização da cultura, afinal e talvez um novo conceito artístico: o falso que toma o lugar do real sem qualquer pudor ou cuidado. O triunfo da imagem virtual de quem projecta mitos desvalorizados pela própria criação medíocre.
A sensatez antiga que impedia tal efeito deletério foi-se perdendo e actualmente o pendor histérico de esganiçadas da cultura soterra em níveis pindéricos tudo o que mexe, com a imagem a condizer em bandeira que os assinala sobre o lugar que ocupam.
Mais: a música de Prince com maior interesse, no caso, tem cerca de trinta anos e ficou marcada nesse tempo, apesar de algumas obras resistirem bem a audições repetidas ( "Around the world in a day de 1985 ou a banda sonora do primeiro Batman, de 1989). Mas não parece ser isso que importa frisar nessa histeria porque o relevo vai todo para a imagem e para o folclore que a envolve. É por isso provavelmente que se escreve sobre Prince como se fosse figura icónica deste presente e não uma relíquia do passado de há trinta anos, das discotecas e programas radiofónicos de bocas e berros. Foi assim com Eusébio, também. Foi assim com vários mitos do passado repescados para o presente sem a patine acumulada. É um fenómeno bem estranho e a merecer estudo local.
Essa colagem diacrónica com figuras do passado musical, ou de outras áreas, assimiladas no tempo à força de colagens de imagens variadas é um verdadeiro sinal dos tempos porque prescinde do essencial: a música que as sustentava ou a realidade vivida no tempo verdadeiro.
Vendo bem esta espécie de cultura popular empobreceu para níveis insuportáveis, mesmo. Não entendo isto e portanto é assunto para continuar a ocupar este espaço.
ADITAMENTO em 25.4.2016:
Para entender melhor o fenómeno estranho da glorificação serôdia de um mito do passado, ficam aqui páginas do semanário Sete de Dezembro de 1985 num número especial consagrado ao "rock in USA".
Entre os nomes coligidos para figurar no panteão dessa época como os mais representativos do rock de expressão norte-americana não aparecia o nome de Prince ou qualquer referência ao mesmo.
Em finais de 1985, Prince já tinha publicado pelo menos dois discos maiores, incluindo Around the world in a day nesse mesmo ano e Purple Rain, agora muito celebrado, em 1984.
O Sete era então o veículo de publicidade a espectáculos de vário tipo e na altura provavelmente a única referência de imprensa de grande divulgação de cultura popular, musical e não só. Pois nem uma palavra sobre Prince. Nem o nome!
Nessa altura, o estranho fenómeno de conceder primeiras páginas de jornais e aberturas de telejornais a ocorrências como a morte de certos artistas pop ainda não era uso ou costume.