Embora o antigo primeiro-ministro José Sócrates continue a achar que a iminente bancarrota em que nos colocou, enquanto governante ( ao mesmo tempo que se governava com um amigo de contas por fazer) nada teve a ver com a sua governação mas apenas com a situação de crise internacional então vivida, a verdade é que foi obrigado a chamar a Portugal uma "troika" de credores internacionais que para nos tirarem do aperto financeiro ( já não tínhamos dinheiro para pagar ao funcionalismo público...) e nos emprestar umas dezenas largas de milhares de milhões de euros, puseram condições e exigências.
Para aplicar o programa que essa "troika" nos impôs enquanto devedores e que portanto nos tratou como país de terceiro-mundo, como o fomos por obra e graça daquele, as eleições designaram novas pessoas, com Passos Coelho à cabeça por ser do partido mais votado.
Passos Coelho aplicou um programa de recuperação económica e de poupança forçada como vista a podermos sair do aperto em que aquele governante do PS nos colocou, com ajuda da crise internacional.
Quando procedeu a determinados cortes em rendimentos de funcionários públicos, com o 14º mês abolido, subsídios repartidos, pensões reduzidas, em suma austeridade que já tínhamos experimentado por duas vezes anteriormente e todas tendo na sua génese políticas económicas comunistas e socialistas ( do PS de Mário Soares, daí a sua figura de padrinho de bancarrotas) , foi o descalabro mediático contra tais opções legislativas do orçamento de Estado. Passos Coelho ficou associado desse modo à tal austeridade e a mensagem que passou publicamente, através dos media foi de que o seu governo foi além das exigências da troika, nessas medidas restritivas e que sacrificaram o rendimento dos funcionários públicos em particular e o bem estar económico das pessoas em geral.
Pelos vistos não foi bem assim. As medidas tomadas e que foram de algum modo contestadas no tribunal Constitucional que aboliu algumas delas, obrigando a substituições igualmente dolorosas, foram afinal impostas por aquela troika e não apenas da iniciativa exclusiva do governo de Passos Coelho.
Pouco adiantará agora dizer tal coisa, mas a verdade tem um caminho e quem a repõe são dois juristas que escreveram isto que fica transcrito.
O que me espanta mais nem sei bem: se a insustentável leveza da política em Portugal; se a ignorância de alguns juízes do tribunal Constitucional. Se calhar uma coisa vai com a outra...
Observador:
Durante o período negro do resgate financeiro, o Tribunal
Constitucional foi para muitos portugueses uma espécie de herói
solitário contra a austeridade. Aos juízes do Palácio Ratton chegou
mesmo a ser atribuída a inversão da espiral económica recessiva iniciada
em 2011, por via da devolução de algum poder de compra aos funcionários
públicos e pensionistas. Já o anterior Governo ficou,
irremediavelmente, com o anátema de governar contra a Constituição. Um
anátema tão poderoso que deu corpo à narrativa que permitiu a atual
solução governativa, assente num histórico acordo alargado à esquerda –
ao tradicional “arco de governação” sobrepôs-se, em novembro de 2015, o
“arco da Constituição”. Este “arco da Constituição” busca, precisamente,
o mote nas decisões do Tribunal Constitucional que chumbaram algumas
políticas de austeridade.
A chamada jurisprudência da austeridade parte, todavia, de um erro singular cometido pelo Tribunal Constitucional.
Na verdade, e de acordo com o raciocínio adotado pelo próprio tribunal,
os juízes estavam impedidos de se pronunciar sobre a
constitucionalidade das medidas incluídas nos orçamentos aprovados
durante o período do resgate. O problema é fácil de explicar e remonta a
5 de julho de 2012, data em que o Tribunal Constitucional se
pronunciou, pela primeira vez, sobre um orçamento aprovado depois do
início da intervenção externa (a decisão sobre os chamados “cortes” dos subsídios de férias e de Natal).
O
Tribunal Constitucional afirmou, então, que o memorando de entendimento
assinado em 11 de maio de 2011 com a Comissão Europeia constituía um
instrumento jurídico vinculativo para o Estado português, que estaria
obrigado a cumprir as medidas nele incluídas sob pena de não ter acesso a
financiamento externo. Porém, nas palavras do Tribunal, o memorando não
previa a “suspensão do pagamento dos subsídios de férias e de Natal ou
de quaisquer prestações equivalentes”. Por outras palavras, estas
medidas incluídas na lei do Orçamento de Estado para 2012 provinham de
uma fonte exclusivamente interna (isto é, a vontade do legislador
nacional), pelo que poderiam ser objeto de fiscalização (e chumbo)
constitucional.
Contudo, e ao contrário do que afirmou o Tribunal
Constitucional, o memorando de entendimento previa, efetivamente, a
suspensão do pagamento dos subsídios, detalhando pormenorizadamente o
esquema de cortes que deveria ser adotado pelo legislador nacional.
Repetimos: apesar de se ler, na decisão, que o memorando não previa
aqueles cortes, o certo é que os mesmos se encontravam, concreta e
detalhadamente previstos, naquele documento [(no parágrafo 1.8., i), da versão em vigor à data da entrada em vigor do Orçamento do Estado para 2012 e, na versão resultante da terceira revisão, de 15 de março de 2012, no ponto 1.5)].
O que motivou este lapso?
A explicação mais plausível é a de que o Tribunal Constitucional
estaria, muito provavelmente, a olhar para a versão original do
memorando e não para a versão atualizada de 9 de dezembro de 2011 ou a
subsequente de 15 de março de 2012, resultantes da segunda e terceira
avaliações da ‘troika’. Poderá justificar esta hipótese o facto de, na
realidade, o corte dos subsídios surgir no memorando em momento
posterior à apresentação, no Parlamento, da proposta de lei de Orçamento
do Estado para 2012: a genealogia destas medidas de austeridade aponta
para um esquema complexo, em que as mesmas são inicialmente propostas
pelo Governo e, posteriormente, absorvidas formalmente no programa de
resgate por via da sua inclusão no memorando que é assinado com a
Comissão Europeia. De um ponto de vista estritamente jurídico, contudo,
este aspeto é irrelevante: tais cortes estavam contemplados no memorando
de entendimento em vigor à data em que o Tribunal Constitucional
proferiu a sua decisão. Um erro flagrante, portanto, desta decisão.
Quais as consequências deste erro? Se o memorando é direito da União Europeia vinculativo – como o próprio Tribunal Constitucional assumiu, sem grandes dificuldades – então, muito simplesmente, esta
instância não podia decidir sobre a constitucionalidade das medidas
nele previstas sem primeiro consultar, a título prejudicial, o Tribunal
de Justiça da União Europeia. Com efeito, uma das regras
básicas do direito da União Europeia funda-se neste dever de reenvio
para o Tribunal de Justiça sempre que um tribunal nacional de última
instância se confronte com dúvidas quanto à validade do direito da União
Europeia que tem de aplicar ao caso concreto que foi chamado a
resolver.
O próprio tribunal do Luxemburgo, depois de lamentáveis hesitações iniciais em 2013 e 2014, veio recentemente confirmar que este era o único caminho a seguir: em 27 de fevereiro de 2018 pronunciou-se,
efetivamente, sobre a compatibilidade com o direito da União Europeia
de medidas de austeridade adotadas pelo Estado português no quadro do
procedimento por défice excessivo. Esta decisão do Tribunal de Justiça,
que se segue a outras em que fiscalizou a conformidade com a Carta dos
Direitos Fundamentais da União Europeia de medidas previstas em
memorandos que enquadraram a assistência financeira prestada ao Chipre e à Roménia,
permite, aliás, questionar, com a razoabilidade devida e sem grandes
exercícios especulativos, todas as decisões do Tribunal Constitucional
que tenham tido por objeto normas de atos legislativos que concretizam
compromissos assumidos por Portugal no memorando.
O erro é inerente a qualquer atividade humana. É-o, também, com toda a naturalidade, na atividade judiciária. Mas este é um erro singular, que parece ter sido apenas causado pela consulta da versão errada do memorando.
Não é fácil justificá-lo quando está em causa um órgão jurisdicional
com os recursos do Tribunal Constitucional. Contudo, o que torna todo
este caso particularmente notável é que parece estar em causa um erro de
uma profundidade maior, com um lastro sistémico. Desde logo, o lapso
não foi detetado pelo Governo. Como é possível que os membros do Governo
que negociaram e assinaram o memorando não tenham percebido a
contradição da decisão do Tribunal Constitucional? Aqui sim – e não como
foi feito, posteriormente, em 2014 – teria sido pertinente a dedução de
um pedido de aclaração da decisão, lançando mão de um mecanismo
processual destinado a corrigir situações de erro judiciário flagrantes
como esta.
Não foi, também, detetado pelos críticos do Tribunal
Constitucional. Durante anos, a sociedade portuguesa esteve dividida em
dois lados opostos: de um lado, os defensores convictos da
jurisprudência constitucional; de outro, os seus críticos ferozes, que
acusavam o Tribunal Constitucional de ser uma “força de bloqueio” e de
colocar em risco o sucesso do programa de ajustamento. Como é possível
que uma das decisões mais minuciosamente escrutinadas da história
judicial portuguesa possa conter um lapso que, por tanto tempo, permaneceu intocado?
Não
deixa de ser irónico que o papel de herói contra a austeridade poderia,
de todo o modo, ter sido desempenhado pelo Tribunal Constitucional caso
este tivesse suscitado uma questão prejudicial em que questionasse a
compatibilidade do memorando com os direitos sociais previstos na Carta
dos Direitos Fundamentais da União Europeia e com princípios
fundamentais de uma “Comunidade de Direito” como é a União Europeia.
O
reenvio teria muito provavelmente forçado o Tribunal de Justiça a
participar ativamente no processo de mutação constitucional que assolou a
União Europeia durante o pico da chamada crise do euro ou das dívidas
soberanas (2010-2014). Com efeito, com o reenvio teria sido possível
discutir, no plano europeu, o conteúdo de uma intervenção externa
comandada por uma instituição criada à margem dos Tratados (o Eurogrupo)
e, sobretudo, ter-se-ia evitado a situação de confronto institucional
permanente entre o Governo e o Tribunal Constitucional sobre a
repartição dos sacrifícios da austeridade.
Este processo de
“nacionalização” da crise e da austeridade, resultou, é certo, de
múltiplos outros fatores, internos e externos. Contudo, ao embarcar no
mesmo, o Tribunal Constitucional tornou-se vítima de uma narrativa
discursiva que tinha alicerces jurídicos débeis. E, deste modo, tomou
para si próprio parte de uma responsabilidade por um falhanço sistémico
que exacerbou as responsabilidades nacionais por um programa de
ajustamento cujo pedigree, factual e formal, transcendia
largamente os limites da soberania nacional. Em tempos de discussão
sobre os caminhos possíveis para a União Europeia, é essencial olhar
para o passado e dele extrair os devidos ensinamentos para um futuro
diferente. Por mais incómodo que esse passado possa ser.
Francisco Pereira Coutinho é professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.
Teresa Violante é constitucionalista e investigadora da Universidade Johann Wolfgang Goethe de Frankfurt.