Rui Nobre Gonçalves, ex-secretário de Estado do Ambiente de um governo recente escreve hoje no Público em lugar do Provedor, de férias.
O artigo é um apanhado de razões justificativas do licenciamento do empreendimento Freeport e um branqueamento objectivo dos intervenientes com condutas duvidosas no âmbito desse centro comercial de milhões.
A biografia de Rui Nobre Gonçalves qualifica-o como um técnico de resíduos e de ar. Limpo, supõe-se, e depois de tratado pela sua sabedoria técnica e empresarial, pois para tal estudou e se qualificou. Desde 1995 que se familiarizou com lixeiras a nível governamental e por isso perceberá imenso de pântanos, embora na Cova da Beira não existam tantos assim porque enquanto viveiros de insectos, mal se coadunam com os melros que por lá andaram e voaram para outras paragens mais amenas e rentáveis na alpista que sempre almejam, tendo pousado em institutos governamentais e até universidades independentes.
O artigo de Rui Nobre Gonçalves é uma mistificação. E a prova reside apenas numa frase a meio do artigo que reza assim: " Entretanto a comunicação social ( toda, de referência, popular e tablóide), baseando-se em fontes com acesso ao processo judicial, foi convictamente transformando em verdades as presunções de que a decisão sobre a AIA, designada sempre como "licenciamento", foi demasiado rápida e ilegal; que a alteração dos limites da ZPE do Estuário do Tejo se destinou a legalizar a construção do Freeport; que a reprovação do primeiro estudo de impacte ambiental foi estratégica; e inúmeras variações à volta destes temas. O que é verdadeiramente extraordinário é que, quer o que se apurou, quer a falsidade do que se presumiu, tudo é do conhecimento da comunicação social há pelo menos, ano e meio. Por que razão se continuam hoje, a publicar peças misturando o apurado, verdadeiro, com o presumido, falso? Qual é a vantagem em manter o primeiro-ministro sob suspeita? Trata-se de tentar vender mais papel?
Penso que não. A comunicação social deixou de ser um esteio da democracia e das liberdades e, lenta e imperceptivelmente, passou a alimentar o monstro populista".
Este naco de prosa tem muito que se lhe diga para quem conviveu com o pântano de tão perto, sendo admirável que nem se tenha contaminado, sequer pelo cheiro.
Portanto, o que o ex-secretário de Estado do Ambiente proclama é a pax dos cemitérios neste género de casos. Assunto arrumado pelo poder judicial, é assunto politicamente terminado. E por isso dá muito jeito, por vezes, judicializar a política. Pelo menos sempre que se possa desse modo enterrar casos polémicos no olvido dos arquivos das procuradorias ou nas catacumbas dos tribunais.
Para quê desenterrar factos tão polémicos como a negação de autorização de um cemitério no mesmo local em que depois se autorizou uma necrópole da memória para melros e outras aves de arribação, para além dos sapos e rãs que coaxam em lugares lodosos?
O verdadeiro "caso contra a democracia", ao contrário do que Rui Nobre Gonçalves escreve, não é o desenterro da memória dos factos lodosos que incomodam governantes, por que o papel da comunicação social é esse, precisamente. Será, antes, essa atitude de governante que foi e gestor de empresa pública que é, umbilicalmente ligado ao poder situado, reveladora da incapacidade em perceber, por anomia atroz, o cancro que afecta a democracia que temos: a corrupção endémica e cuja inefabilidade ambiente impede a revelação das provas dos seus efeitos nefastos.
Por outro lado e correlacionado com este fenómeno de ausência de percepção de efeitos nefastos para o povo em geral, está a apreciação da Justiça em relação a este caso.
Escreve Rui Nobre Gonçalves:
" de acordo com a minha experiência, a equipa que investigou o caso não ignorou os efeitos perniciosos para o fundamento do regime democrático que o arrastar do processo provocou e continua a provocar. Se as coisas se passaram como se passaram neste caso, só podem ser bem piores em todos os casos de igual complexidade. O (nã0) funcionamento da Justiça é o principal problema do país e não se resolve com mais uma alteração legislativa ou com a remoção do procurador A ou do juiz B. Os decisores políticos continuam a não perceber isto."
Ora esta passagem do texto revela todo um panorama que já não é o da simples corrupção, mas do descalabro de um sistema e de um regime que acolheu estes peritos em resíduos e ar limpo. Explico, frase por frase.
Que pretende Rui Nobre Gonçalves significar com a expressão "a equipa que investigou o caso não ignorou os efeitos perniciosos para o fundamento do regime democrático que o arrastar do processo provocou e continua a provocar"?
Vejamos: o que é o fundamento do regime democrático, para Rui Nobre Gonçalves? Não se sabe porque é sempre muito conveniente proclamar estas grandiloquências deixando a interpretação subjectiva a quem lê. Por mim, então, leio uma grave deficiência democrática no espírito de Rui Nobre Gonçalves e que reside na incapacidada de perceber que um regime assim, como deve ser, funda-se da divisão de poderes e atendendo ao extremo poder, até mesmo amplamente discricionário, de um executivo como aquele em que governou, torna-se essencial que as instâncias de controlo do sistema funcionem bem. E que instâncias são essas? O Parlamento, que deve fiscalizar permanentemente o Executivo e que obviamente não tem esse poder sempre que está repartido em maiorias relativas ou minadas por interesses eleitoraleiros que implicam o próprio presidente da República. Depois, os tribunais em sentido amplo, incluindo-se as instâncias de "supervisão" como seja a PGR que deve ser um órgão o mais independente possível do Governo que nomeou a sua cabeça, por uma razão essencial que Rui Nobre Gonçalves parece não entender: o Ministério Público deve ser uma entidade com autonomia do Executivo precisamente para poder investigar em toda a liberdade democrática os actos dos membros do Governo que foram fundadamente denunciados como eventualmente criminosos.
Tal fenómeno acontece em todos os países democráticos. Porém, alguns há que não entendem tão bem esta separação de poderes e funções, pretendendo de algum modo condicionar esse poder de controlo e supervisão, por motivos óbvios: manter e conservar o poder político que lhes confere réditos e prebendas, para além do efeito útil que é governar para todos em nome de todos.
Ora, no caso Freeport isso esteve longe de acontecer como foi dado como provado, mesmo em processo oficial, que o primeiro-ministro que temos, por interpostas pessoas, procurou influenciar e sapar a investigação desse mesmo Freeport. Esse facto é inadmissível em qualquer regime democrático que se preze e numa Inglaterra nenhum Blair ou Gordon Bowne sobreviviram politicamente a esses desmandos.
Porém, Rui Nobre Gonçalves não alcança tal iluminação, mesmo em poço de sabedoria secreta.
Depois disso, continua com a frase "O (nã0) funcionamento da Justiça é o principal problema do país", assim repetindo o estribilho gasto e revelho dos que não estão contentes com a Justiça mas nunca dizem porquê exactamente. Então vou tentar adivinhar as razões ocultas.
Para os vários ruis nobres gonçalves que escrevem opinião nos jornais, casos como o Freeport nem deviam existir oficialmente como investigação criminal. Por isso, o método a seguir seria o adoptado pelo actual procurador-geral da República em relação ao crime de atentado ao Estado de Direito com suspeitas no primeiro-ministro: impensável porque improvável e como letra morta que é, enterra-se num qualquer expediente administrativo.
Isso, para os ruis nobres gonçalves é que é aplicar Justiça como deve ser. De contrário, é um calvário até ao golgotha da incerteza eleitoral e que mantém o poder por largos anos. E sendo tal calvário pejado de jornalistas e polícias, há que afastá-los como "judeus" que se obstinam em sacrificar justos que são assimilados a pequenos deuses pelos apaniguados ( Almeida Santos dixit).
Casos como o Freeport, manhosamente denunciados judicialmente por uma oposição sem credibilidade, sofrem à partida de uma capitis diminutio que os atira irremediavelmente para o lombo dos casos inexistentes e por isso mesmo publica e afanosamente celerados .
É este o entendimento corrente que da Justiça fazem os vários ruis nobres gonçalves que por aí pululam no universo político que temos e que como todos sabem é de uma intensa e insuportável corrupção que todos cheiram menos eles. Porque se habituaram?
Para continuar a convencer papalvos escrevem e debitam opiniões deletérias porque sabem muito bem que é na dúvida que o pântano se alimenta e de caminho dá sustento a apaniguados.