terça-feira, agosto 10, 2010

O poço da iluminação

Vale a pena ler ( clicar para) este artigo judicioso de um juiz conselheiro do Tribunal de Contas, António Santos Carvalho.
Em primeiro lugar, seria ainda mais judicioso perceber a razão de um direito a expressão escrita em jornais ditos de referência, ser concedido a determinados magistrados, em detrimento de outros. Saber as razões dos convites para a escrita, os motivos inerentes a tal privilégio de exposição pública sempre em paralelo com um dever de reserva processual que se abre em excepção para determinadas personagens. Mas adiante.

O artigo é precioso de informação privilegiada sobre os meandros da magistratura estatutária e institucional. A história do MP em tandem com a dos juizes e a idiossincrasia do Estado Novo é dissecada em meia dúzia de frases aplicadas com um raro rigor de termos ajustados e exemplos antigos.

No entanto, a meio do artigo aparece um insidioso conceito de involução no percurso histórico do Ministério Público. A ideia que no Estado Novo existia uma eficácia no MP só comparável ao controlo efectivo do poder político da altura, é perversa e por motivos que me parecem esconsos e que esclarecerei no fim.
Escreve Santos Carvalho, para apreciar o actual estado de sítio do MP( e do poder judicial deve entender-se por inerência de raciocínio obrigatório):

"Em suma, deixou de haver barreiras e entraves administrativos e de polícia ao acesso à magistratura do Ministério Público, deixou de haver verdadeiramente um comando hierárquico, duvidoso, ou não que fosse, mas perdeu-se todo o saber fazer. É ao Ministério Público do PGR/Rainha de Inglaterra e das perguntas nulas ( do ponto de vista da investigação criminal) acrescentadas da antideontologia de um despacho de arquivamento. Caminhou-se pois das formas puras da Constituição para a degradação do amadorismo."

E pergunta Santos Carvalho: "Estaremos perante um fenómeno de dialética realística institucional? E se sim, tem alguma coisa a ver com a degradação demagógica do sistema político?"

Estas perguntas últimas partem de um equívoco que o próprio artigo, a meu ver, resolve e por isso o autor embrulha-se e tropeça nas próprias ideias.

Santos Carvalho afirma em determinado ponto que "certo é nenhum dos Magistrados do MP ter tido qualquer lampejo de formação académica neste domínio ou similar. E assim, como natural consequência destes dois factores negativos ( falta de poder hierárquico efectivo e ausência de formação académica em investigação, nota minha) não passa passa com facilidade para cada qual dos procuradores em exercício esse saber comum da descoberta dos crimes e que apesar de tudo assentava na cultura do Ministério Público, agora inútil, sem hierarquização que não seja a dos poderes corportativos."

O equívoco grave de Santos Carvalho é o de pensar que anteriormente havia a tal preparação académica específica que associada à hierarquização civilmente militarizada, conduzia à eficácia perfeita do MP de antanho.
Ora não havia coisa nenhuma dessa preparação específica e , agora sim, exigível nos tempos actuais de crescente complexidade nos domínios da sociedade onde se cometem crimes, principalmente económicos e de corrupção.
O que havia nesse tempo era um manual "elementar" para o delegado do procurador da República, escrito por um operacional que ensinava que o que vem de trás toca-se para a frente e onde se estabeleciam algumas regras de bom senso para investigação e um esquisso de uma incipiente psicologia do testemunho.
Nada mais e nem isso seria necessário num tempo em que a criminalidade grave a investigar pelo MP se circunscrevia a crimes de sangue. E para isso, só o faro de polícia se ajusta, não se aprendendo em nenhuma faculdade.
O que se aprendia nas faculdades, isso sim e sem necessidade de alimentar cursos rendosos de pós-graduação em horário nocturno e semanal, era um conjunto de matérias que davam uma bagagem cultural ao magistrado que hoje em dia fazem falta, mais que os cursos especializados de preparação para o combate à fraude fiscal, coisa inexistente nos tempos do Estado Novo, tal como eram inexistentes diversos crimes do catálogo de hoje.
Não havia criminalidade trans-nacional ancorada em off-shores, nem escritórios de advogados que disso se ocupavam a tempo inteiro porque nessa altura a Ordem dos Advogados lia a Alma da Toga e os governos não lhes solicitavam pareceres a troco de milhões.
Portanto, o problema da ineficácia actual do MP, no combate efectivo e eficiente à criminalidade económica que dantes nem existia, reside noutro paraíso legal: nas normas constitucionais e ordinárias ajustadas a essa mesma protecção de suspeitos excelentíssimos, aprovadas sob pretexto de avanço civilizacional, com o apoio explícito de grandes catedráticos de Direito que copiam à outrance, as regras estrangeiras e de duvidosa legalidade constitucional( caso da validade das escutas ou de elementos de prova que sendo nulos, são apreciados casuísticamente nesses países em relação a esse valor de prova) mas que por cá são dissecadas em cursos de pós-graduação, como o nec plus ultra da tecnologia jurídica de ponta.

Essa é a questão a colocar sempre que se questiona a eficácia das investigações criminais em Portugal e de que o caso Freeport é apenas o último exemplo mediaticamente instigador.
Quanto ao exercício do poder hierárquico em modo autocrático e militarizado, a pergunta lógica a colocar é saber se tal contribuirá para uma maior eficácia no combate a esse tipo de criminalidade ou, pelo contrário, tem o efeito de sapar e capar efectivamente essa necessidade civilizacional e que suponho nem merecer contestação teórica ou prática.
A conclusão parece tão lógica como a que decorre do último exemplo apontado por Santos Carvalho, no caso Alves dos Reis, aqui associado a um autêntico caso Dreyfus e por isso mesmo, mal explicado.

De resto, o artigo de Santos Carvalho pelas referências esparsas mas úteis, pela simbologia dos exemplos apontados, até pelo estilo de escrita de um gongorismo suave e principalmente pelo pathos que exala, poderia muito bem ter sido escrito nas arcadas da Grande Loja de um qualquer Oriente. Se Santos Carvalho não o escreveu por lá, mesmo em espírito, poderia tê-lo feito porque está mentalmente preparado para tal subida em caracol.

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