segunda-feira, agosto 23, 2010

Justiça e jornalismo

Francisco Sarsfield de Cabral, jornalista, assina hoje no Público um artigo de opinião que intitulou "A justiça e a política".
Começa por dizer da proliferação legislativa o que é comum: que prejudica a justiça. E entra logo na apreciação pessoal do sistema de justiça que temos e que considera que padece de um mal que é o do "alheamento do poder político da"gestão do sistema" .
Para explicar esta explicação, adianta algumas ideias feitas, tal como a de " as corporações do sector tomarem conta dele, geralmente em guerra umas contra as outras". E concluiu que tal efeito de omissão interventiva do poder político na gestão do sistema implica também um efeito de suspeita relevante quanto a desígnios políticos na justiça e até a sua politização.
Passando à frente a aparente contradição ( uma putativa politização da justiça por omissão de intervenção do poder político...), importa desde logo ponderar estes argumentos falaciosos e reveladores do estado de (in)cultura de alguns comentadores de jornal sobre estes temas.

Sobre a diarreira legislativa toda a gente tende a estar de acordo e bastam as mais de vinte alterações aos códigos penais, em menos de vinte anos, para sustentar tal tese que peregrina sempre por aí.

Sobre as "corporações que tomaram conta do sistema", porém, apetece perguntar como é que isso ocorre, no sistema que temos?

Supondo que as corporações são os magistrados, funcionários e advogados que operam directamente no sistema, temos diferenças de desempenho e papel interventor. Os magistrados estão constitucional, estatutária e legalmente obrigados e cingidos ao princípio da legalidade. Saberá Sarsfield de Cabral o que significa isto, exactamente?
Exactamente o oposto ao que escreve a seguir, a propósito da ausência de responsabilidade dos juizes na gestão dos "seus" funcionários no tribunal, revelando que "os políticos que conceberam em abstracto o sistema e o deixaram em roda livre, sempre com o pretexto da sagrada independência dos juízes e da autonomia dos magistrados do MP".
Nem o sistema está em roda livre nem aqueles princípios são meros pretextos para as disfunções causadas pela "abstracção do sistema", mormente no caso apontado e relacionado com a gestão prática dos tribunais. Para escrever sobre isto é imperioso conhecer os princípios, a filosofia, as regras, o costume, a tradição e a história dos tribunais portugueses e do seu modo de funcionamento.
Pode discordar-se do sistema e há quem o faça neste caso concreto ( da gestão dos "seus funcionários"), mas é preciso em primeiro lugar entender porque existe a actual solução e perceber se a alternativa é efectivamente melhor. Basta dizer que os funcionários dos tribunais são dependentes de um organismo próprio e corporativo, o Conselho de Oficiais de Justiça, relativamente à gestão de quadros e regras de inspecção.
Os magistrados deixaram de ter poder inspectivo sobre os mesmos e deixaram de poder escolher "os seus funcionários" por razões que provavelmente o articulista não entende. Se tais regras fossem alteradas, provavelmente no sentido que o mesmo já entende ( como ocorre num departamente governamental de assessoria, por exemplo) então ocorreria uma revolução nos tribunais portugueses e revoluções em meios conservadores é coisa de vulto, como é bom de ver e pressentir. Aliás, basta comparar a situação com a que ocorreria numa direcção-geral, por exemplo, em que os funcionários, públicos, passassem a depender directamente do director-geral, tal como acontece numa empresa privada...

Portanto, falar em "gestão do sistema" e apontar este exemplo como revelador do que anda mal, é sinal de incompreensão do sistema ou de ausência de alternativas para a sua regeneração.

E o que escreve a seguir denota e reforça esta asserção. Diz assim:

"Por cá, a opacidade da justiça é enorme- vejam-se as sucessivas e contraditórias notícias sobre o folhetim Freeport. E ninguém responde publicamente por coisa alguma na área da justiça."

O que significa esta frase, escrita assim? O que é a opacidade da justiça? O segredo de justiça nas investigações criminais é parte desta opacidade? E é um mal, per se? O jornalismo que viola sistematicamente esse segredo de justiça actua em conformidade com a lei, contrariando essa tal opacidade?
O que pretende o articulista exprimir com esse tal conceito de opacidade? Não estou a ver e torna-se-me verdadeiramente opaco o raciocínio, mas presumo que há por aí grande confusão entre a obrigação de guardar segredo de justiça e o direito a uma informação em ampla liberdade.
Sobre as tais "sucessivas e contraditórias notícias sobre o Freeport" a culpa de tal acontecimento é da opacidade do sistema de justiça ou será antes da profunda incapacidade dos jornalistas em entender o tal sistema, as suas incongruências e disfunções reais e não apenas as imaginárias e supostas no escrito?

Quando se noticiou o caso Freeport, na TVI e no Sol ( onde Sarsfield Cabral escreve) a notícia era cifrada e segundo lembro colocava-se em primeira página o facto de as autoridades inglesas suspeitarem de um político português, envolvido em actos de corrupção. Esta notícia é da responsabilidade das autoridades judiciárias portuguesas? Não é e Sarsfield Cabral sabe-o ou deve-o saber. Então porque cita este caso para erigir um paradigma sobre a Justiça, esquecendo a origem das tais contradições?

O que esperava Sarsfield Cabral do sistema judicial português, particularmente do MP e da polícia, neste caso concreto? Uma investigação a fundo e em forma, certamente. Saberá se tal ocorreu e porque razões concretas e definidas? Não sabe, provavelmente. Mas devia saber antes de escrever o que escreveu porque a seguir diz outra enormidade que precisa de esclarecimento.

Diz que " os magistrados do MP não podem ser autónomos em relação à hierarquia do próprio Ministério Público, cujo responsável máximo deve responder ao país sobre as perplexidades suscitadas pelo seu departamento."
Não podem ser autónomos porquê? Aliás, não devem ser autónomos por que razão específica? Só é apresentada uma: a da responsabilização. Politica, naturalmente porque outra não pode estar no espírito do articulista nem seria susceptível de crítica porque já existe e é eficaz ( há um estatuto e uma lei que devem ser observados sob pena de responsabilidade, uma vez que os magistrados do MP são efectivamente responsáveis ao contrário dos juizes).
Mas o que entenderá o articulista por essa tal autonomia que critica? Saberá ao menos para que serve?
Se lhe disserem que os magistrados do MP não actuam nem podem actuar nos processos como "corporação" e que são individualmente responsáveis pelas decisões que tomam que devem estar sempre em conformidade com a lei existente ( princípio da legalidade) e que os políticos modificam regularmente e ainda que têm um dever de estrita objectividade que impede a discricionariedade e se orienta pelo princípio geral da igualdade de todos os cidadãos perante essas leis, o que responderá, depois do que escreveu?

A responsabilização reclamada, mesmo em função da tal autonomia, existe já e está bem definida: nos processos concretos, cada magistrado é sindicado pelas "partes", ou seja pelas vítimas, pelos arguidos, advogados, etc. ( até depois, pelos inspectores que verificam o serviço concreto nesses processos). Cada magistrado, precisamente porque assume essa condição, não é um funcionário superior da administração pública, cuja responsabilidade directa incumba a um "chefe" nem tem que ser assim.
Por uma razão que Sarsfield Cabral compreenderá: se tiver um processo em tribunal não vai certamente gostar da perspectiva de decisão de um magistrado em concreto poder vir a ser alterada subjectiva e discricionariamente, por um qualquer superior hierárquico obedecendo a uma "cadeia de comando" vinda directamente de um ministério qualquer, quiçá de um primeiro-ministro. Isso é muito simples de entender e é precisamente por isso que existe a tal autonomia interna no MP.
Se um superior hierárquico do MP quiser interferir directamente num processo a cargo de um determinado magistrado ( realço novamente este conceito de magistrado em diferenciação com o de funcionário...) poderá fazê-lo apenas nos termos da lei de processo. Para isso terá de escrever as razões para tal facto e justificar. Este conceito de autonomia não é desresponsabilizante porque responsabilida efectivamente quem decide nos processos. Responsabiliza os magistrados individualmente e não se deve conceber uma "cadeia de comando" nestes casos, pelas razões expostas e simples de entender.

O que Sarsfield Cabral e outros pretendem dizer, afinal, pode ser outra coisa: a responsabilização política da cabeça de comando do MP pelo que sucede particularmente nos processos que envolvem figuras mediátias, mormente políticos. Sim, porque do cidadão comum, ninguém se incomoda.
Mas será admissível uma responsabilização política por decisões de algum modo jurisdicionais ( mesmo em sentido impróprio)?
Não devia ser e o exemplo do juiz Rui Teixeira cujo Conselho Superior da Magistratura procurou objectivamente prejudicar profissionalmente, por interferência directa dos seus componentes políticos ( uma delas é nora de Jorge Miranda, professor universitário e constitucionalista), deveria fazer pensar melhores estes pensadores em artigos de jornal.
Essa é que é a verdadeira e perigosa politização da justiça e não li muita gente a denunciar este perigo para a democracia, vinda do próprio seio do órgão de gestão dos juizes. Ninguém se incomoda com este tipo de coisas quando há a famosa "responsabilidade" do MP a tratar urgentemente como questão prioritária.
Que os entalados da política o façam por intermédio dos papagaios habituais ou comentadores residentes ou ainda os apoderados da advocacia de regime, compreende-se perfeitamente.

Que outras pessoas descomprometidas com este sistema mostrem o mesmo grau de preocupação, torna-se intrigante.

7 comentários:

Domingos disse...

O sr F.S.Cabral há muito deixou de poder ser incluído na categoria de pessoas descomprometidas com o sistema.
Não sendo um papagaio genuíno é certamente da família das araras no que diz respeito ao porte e à independência das suas ideias.

100anos disse...

Tenho dele a imagem de pessoa séria, embora reproduzindo algumas ideias feitas nem sempre defensáveis, o que não facilita, mas enfim, neste universo de penas alugadas e de discursos encomendados ainda parece ser dos poucos que tenta pensar com lucidez.
Se o consegue ou não, isso é outra questão.

Manuel Pereira da Rosa disse...

O sr S. Cabral não sabe o que são essas coisas, mas também não sabe o que é um sistema.
Vou explicar. Sistema é um conjunto de seres concretos ou abstractos intelectualmente organizado com um determinado objectivo. É um substantivo abstracto. O sistema judicial (artificial porque criado pelo homem) tem como ambiente a sociedade, recebe (in) pedidos de justiça e produz (out) decisões justas. O sistema digestivo (natural porque criado pela natureza)recebe alimentos (in) e produz(out)a renovação celurar e a merda.
Ambos encontram-se nos cérebros de quem os intelectualiza, mas tem os seus aparelhos inseridos na realidade. O aparelho judicial composto por regras, instituições e homens encontra-se disseminado na sociedade, mas para funcionar necessita que o sistema funcione dentro da cabeça de cada um. Os aparelhos digestivos dos homens e muitos outros mamíferos utilizam o mesmo aparelho digestivo. O mal do Dr. S. Cabral e ter o sistema digestivo no abdómen e quando abre a boca para falar dele sai aquela coisa mal cheirosa atrás referida.
O sistema judicial português não funciona porqiue prevale a anulação do output ao prórprio output.
Melhor, funciona como funcionaria o sistema urinário de um algaliado tetraplégico cujo responsável pela algália fosse um sádico e estivesse constantemente a oturá-la.

Unknown disse...

É nora de Jorge Miranda ou do ministro Rui Pereira?

JS

josé disse...

É nora de Jorge Miranda. Enganei-me e já corrigi.

Streetwarrior disse...

Olá José.
Notando que o josé é um cidadão atento a estas questões e outras,dê lá uma vista de olhos no meu Blog.
Gostaria de saber, se tem conheçimento disto e claro de ouvir a sua opinião acerca do mesmo assunto.

Nuno

josé disse...

Streetwarrior:

Não concordo com esta frase: "Decretos-Lei não são lei".

Decretos-lei são mesmo leis e nunca se transformam em leis porque não precisam disso...

O Público activista e relapso