Nesse ano, Salazar adoeceu e Marcello Caetano sucedeu-lhe, em Setembro. Antes tinha acontecido em França o Maio de 1968, cujos ecos por cá conduziram a novel jornalista a fazer uma reportagem em Paris, um ano depois.
Os apontamentos de tal reportagem foram publicados em parte no Diário de Lisboa e depois num livrinho de 132 páginas, consistindo basicamente em pequenas entrevistas a diversos protagonistas dos acontecimentos, com citações avulsas de outros.
Tal livrinho foi proibido pela Censura da época ( "apreendido pela Pide" é o termo usual para definir a acção censória) eventualmente por causa do título de capa que pedia isso mesmo. Quem o lesse, agora como dantes, ficaria com uma pálida ideia do que foi o tal movimento mas ao mesmo tempo muito bem informado sobre os mitos que povoavam aquela cabecinha pensadora de jornalista.
Tais mitos começam no livrinho com uma entrevista ao cineasta Godard que inclui até uma pergunta sintomática: "acha que o socialismo será possível em França?" logo seguida de " "quando você ataca a burguesia pensa poder fazer filmes sem o seu concurso?" que denotam a matriz ideológica da autora e definem o mote esquerdista da revolução permanente.
No fim da pequena entrevista citam-se os filmes em exibição em Paris nesse tempo de 1969. Três filmes! "A terra em transe" do brasileiro Glauber Rocha; "A quelques jours près" de Yves Ciampi e "Z" de Costa Gravas. Este último lembro-me de o ver em Portugal, logo a seguir ao 25 de Abril de 74. Versava a ditadura grega da época. O fascismo grego...em modo policial e trepidante de acção.
No intervalo dessa primeira entrevista a autora fora ver uma exposição sobre a Bauhaus, no museu de arte moderna ( Beaubourg). Acaba por citar os estudos correntes na Universidade livre de Vincennes, sobre Rosa Luxemburgo, a comunista alemã que fazia as delícias da nossa esquerda de compagnons de route de então.
A seguir Jacques Brel, o cantor belga que desfia ideias sobre os temas das suas canções mais as de Leo Ferré e George Brassens que "valem como testemunhos de uma contestação cujo processo remonta anos atrás". É preciso não esquecer que por cá foi nessa época que começaram os "baladeiros" com Manuel Freire e outros que já foram citados por aqui e apareciam todos na revistinha Mundo da Canção, comunista, lançada em Dezembro de 1969.
Depois de Brel um apontamento sobre a pílula...e como a autora confessou já ter abortado o tema só não apareceu porque seria demasiado chocante. Mas a realidade estava lá...
Siné, o caricaturista, mais Françoise Giroud, da revista L´Express, que conversa sobre Cohn Bendit "um rapaz muito inteligente" que acabou expulso de França por ser alemão. Sauvageot, o outro jovem líder do movimento também acabou por falar à repórter intrépida com citações prévias de Herbert Marcuse para dizer que não falava à imprensa e a seguir o nosso António José Saraiva que estava em Paris, justamente.
Este teve direito a citações de Rosa Luxemburgo e Makhanovitsi: "camarada! Reflecte sobre com quem estás e contra quem combates. Nunca sejas escravo. Sê um homem"...
O trabalho intelectual de investigação de AJS era "feito em casa e na Biblioteca Nacional" e a entrevista passou-se quase toda nas esplanadas dos cafés do Quartier Latin, "a caminho do Luxemburgo" ou seja dos jardins do dito. Saraiva tinha acabado de publicar um livro sobre a Inquisição em Portugal que vendera já mais de dez mil exemplares e era um intelectual popular que tinha aparecido na capa da revista Vida Mundial.
Sobre Maio de 68 Saraiva sabia pouco - "olhe, o movimento de Maio é um acontecimento que ainda hoje desafia as explicações", mas a jornalista tinha lá ido, um ano depois precisamente para entender o que Saraiva que tinha lá estado o ano todo ainda não entendia.
Tal como agora, com esta história do Trump.
Quem não conhecer isto e o contexto em que foi gerado terá sempre alguma dificuldade em entender toda a natureza da Geringonça que nos governa bem como o modo como apareceu.
Isto apareceu em 1968-69 e não foi certamente obra de Salazar. Ou antes, surgiu durante o salazarismo dos últimos anos por uma razão muito prosaica: a Censura e a Pide que esta gente invoca sempre como sinais do obscurantismo vivido, nunca os impediu de lerem o que bem quiseram, optarem pelo que bem entenderam e militarem como sempre o fizeram pelo "socialismo" e comunismo.
Faziam-no no meio intelectual português, com destaque na imprensa e que desde os anos 40, como afirmou um deles- Eduardo Lourenço- tinha um predomínio de esquerda.
O que aconteceu logo a seguir a 25 de Abril de 1974 foi apenas uma pequena revolução que germinava há décadas na clandestinidade que lhes era permitida e acalentada.
Os efeitos perversos dessa pequena revolução sentimo-los todos nós, portugueses, nos anos vindouros.
As nacionalizações de 1975 foram preparadas por eles e a mutação ideológica que publicamente assumiu contornos até na linguagem corrente é obra deles.
É esta a minha explicação para os nossos males presentes e passados.