Esta semana, a propósito de uma revisitação a Vilar de Mouros, por ocasião da efeméride dos 50 anos do mais célebre e antigo dos festivais de Verão de música, em Portugal, o Público através de Vítor Belancio e Rui Bebiano, publicou dois artigos sobre o assunto. Assim:
O que estes artigos denotam é uma grande dificuldade de quem os escreveu em relatar, mesmo em modo subjectivo, os acontecimentos do festival de Vilar de Mouros em 1971 ( e também em 1982 no caso do artigo de Belancio).
A minha dúvida principal advém da circunstância de ambos escreverem agora, mencionando factos de então que não me parecem correctos, quiçà inventados pelas memórias sobrepostas dos escribas. Dizer que em 1982 "Portugal abria-se lentamente ao mundo depois da ditadura" é um disparate, a meu ver. Mesmo em 1971, Portugal era uma "ditadura" política soft, com censura mediática muito por causa da guerra no então Ultramar e repressão política do comunismo esquerdista, mas em que os costumes, mormente entre a juventude, eram já próximos dos de outros países europeus e tal não era necessariamente consequência do sistema de regime que existia. Basta ver as imagens dos jovens no festival, as roupas, poses e atitudes que apresentam para concluir que "a liberdade estava a passar por aqui" e já há alguns anos.
Veja-se uma imagem que vale mil palavras, retirada daqui:
O Portugal de 1971 não era, nesse aspecto, o mesmo de meia dúzia de anos antes, porque com a chegada de Marcello Caetano ao poder político, o ambiente tinha mudado, a par dos costumes importados cuja proveniência, aliás, nunca tinha sido filtrada e muito menos proibida.
Há um relato repetido na imprensa da época e que refere a "apatia" do público jovem presente, perante a prestação do espectáculo musical de um Elton John. Este músico estava então quase no início de carreira ( tirando um ou dois êxitos, Your Song e Friends, as melhores canções de Elton John apareceram depois desse ano) ou dos Manfred Mann, quase relíquias dos sessenta e que nessa altura já nem existiam na formação original e nunca mais se destacaram musicalmente como antes.
Tal "apatia" pode muito bem representar apenas o fenómeno de não exposição da juventude da época aos concertos de música popular que noutras paragens eram mato, tal como se pode ler nas revistas e jornais da especialidade que tenho por aqui e mostro se necessário.
Por cá, em 1973, a vinda de um grupo musical de segunda linha- Vinegar Joe- foi um acontecimento televisionado. Ainda em 1975, a vinda dos Genesis a Cascais, foi um acontecimento musical de maior importância, porque eram provavelmente o grupo de rock com maior projecção a tocarem por cá, até então.
Ao contrário do que sucedia noutros países europeus ( mas apenas os maiores e mais desenvolvidos que eram aliás quase todos...) os concertos de música popular eram raros, porque não havia capacidade económica para suportar o risco de não se encher uma sala de concertos e pagar o respectivo cachet cobrado. Assim, os grandes grupos da época passaram todos ao lado e só se ouviam no rádio ou em discos, alguns deles importados ( os americanos). O Jazz era excepção ( nesse mesmos ano, em Novembro, esteve cá Miles Davies, por exemplo) porque era mais barato, uma vez que era música de nicho, ainda nessa altura. Tal durou até aos anos oitenta e as bancarrotas de 1976 e de 1984 não foram alheias a tal escassez. A história desta escassez conta-se por aqui.
O que era proibido mostrar publicamente em Portugal, nessa altura, não era muito diverso do que se podia ver em França, o que aliás os emigrantes portugueses que por lá estavam sabiam muito bem. Nos costumes, em França, era possível ver um ou outro filme proibido por cá, ( Laranja Mecânica estupidamente ou Último Tango em Paris, incompreensivelmente, por exemplo), ler um ou outro livro proibido por cá, ouvir uma ou outra música proibida por cá, mas apenas as que se referiam explicitamente à "guerra colonial" ou de propaganda comunista expressa ou então algo demasiado escandaloso, em matéria de costumes . Ou seja, muito poucas e em França também não eram populares. Na Inglaterra ou nos EUA, o âmbito de proibição de músicas consideradas impróprias para consumo público, por causa dos costumes, provavelmente seria mais elevado do que por cá, uma vez que as letras de certas canções eram melhor compreendidas do que por cá. Por isso, falar de censura nesse aspecto é relativo.
Seja como for, o principal problema do país não era o da propalada "liberdade" que faltava aos comunistas para propagandearem os regimes de Leste ( com as consequências evidentes e com repressão da liberdade muitíssimo mais lata e eficaz...) mas sim o relativo atraso económico que aliás poderia resolver-se em poucos anos, a meu ver muito melhor do que sucederia na década seguinte, até ao festival de 1982, se não tivesse existido o 25 de Abril de 1974 como existiu, com o domínio da esquerda comunista e socialista, nas principais estruturas económicas e políticas do país. A nossa tragédia foi essa e não o "antigo regime" cujo fim estava anunciado no subconsciente colectivo e que aliás poderia ter sido protagonizado pelo próprio Marcello Caetano, como se dá a entender numa entrevista ao Sol desta semana, do filho daquele Miguel Caetano.
Daí que aquela afirmação seja um autêntico disparate. Até me atrevo a dizer mais: a evolução social e económica em 1971 tinha um ritmo mais pujante e positivo do que aquela que aconteceu na década seguinte, por causa do esquerdismo nacional preponderante. A juventude de 1971 tinha um futuro mais radioso do que a juventude de 1982, prestes a enfrentar outra bancarrota, depois da experimentada meia dúzia de anos antes. E isso é que me parece um facto e nem sequer uma opinião.
Na música popular, em 1971, já escrevi por aqui como era, do que me lembro e não vejo escrito nestas memórias agora publicadas, referências certeiras ao que foi.
As memórias de um dos participantes no festival de Vilar de Mouros de 1971, Rui Bebiano é exemplar do esquecimento e distorção reminiscente. No seu escrito refere inevitavelmente o "tempo da ditadura" e aposto que na altura nem sequer tinha consciência de tal ditadura, como agora tem. O tempo de Marcello Caetano não era já o de Salazar de uma dúzia de anos antes e apesar da perspectiva da guerra, para os jovens irem para o Ultramar, o ambiente social e político não era pesado, com excepção para os poucos, muito poucos, milhares de comunistas militantes e para uma extrema-esquerda maoista ( a dos pachecos pereiras intelectualizados nas burrices francesas sobre mao).
Assim, escrever "sociedades fechadas como a portuguesa, onde as autoridadaes estimulavam o imobilismo" é outro disparate, a meu ver.
A sociedade portuguesa de então era muitíssimo mais aberta do que as sociedades que os movimentos esquerdistas e comunistas queriam então para o nosso país e tal contradição nunca é destacada nestes artigos com memórias inventadas.
Nos países de Leste não havia "festivais de Vilar de Mouros" nem sequer abertura alguma para a cultura popular ocidental, julgada e proclamada decadente.
Os comunistas portugueses viam as manifestações culturais como a de Vilar de Mouros, como oportunidade de combate ao regime, apenas. A prova? Basta ler a revistinha Mundo da Canção da época para se perceber bem onde queriam chegar, com as críticas ao festival e a insinuação acerca do significado do mesmo.
Por exemplo o editorial da revistinha de 20 de Agosto de 1971 que destaca a importância do festival como "germe de um movimento" e realça a comparação com o festival da ilha de Wight ( em 1970) e nem sequer refere Woodstock ( de 1969), porque efectivamente a comparação é mais adequada com aquele do que com este:
A referência aos que " na Rádio e na Imprensa, sistematicamente, tentam ( mas não o conseguirão por franca incapacidade) ridicularizar os jovens e as suas opções musicais" destina-se aos programas que eram então os equivalentes aos que os marcos paulos, antónios calvários e mesmo amálias, de então e agora protagonizavam. Porém não era por isso que o melhor da música popular teria dificuldade em se ouvir por cá, como mostra este anúncio da revistinha, de Julho desse ano de 1971:
Por isso mesmo o escriba do artigo do Público refere o programa Em Órbita, mas com infelicidade manifesta, mais uma vez. Tal programa de rádio, marcante para a juventude mais curiosa da época, teve o seu início deste modo e terminara de modo infausto, deste modo, mas não por causa de qualquer censura mediática, apenas porque o seu autor principal ( Jorge Gil) se fartou da música popular e enquistou-se na música, clássica de expressão barroca. Portanto, em Agosto de 1971 Rui Bebiano já não poderia ouvir o Em Órbita. Podia, isso sim, ouvir o Página Um, de qualidade correspondente.
Não havia nessa altura, em Portugal, falta de divulgação de música popular de qualidade. E por isso quem foi a Vilar de Mouros em 1971 para ver e ouvir Elton John ou Manfred Mann, como grandes artistas da música popular, provavelmente não era ouvinte de tais programas.
O significado de tal festival é outro: é uma manifestação da evolução social da época, na juventude. Não é de modo algum o expoente de qualquer revolução cultural ou social, mas apenas um acontecimento importante para a juventude de então, já preparada mas ainda não habituada para tal. Acontecimento cultural de relevo, na altura tinha sido o programa de tv Zip Zip. E os festivais anuais da canção ligeira tinham sido tomados integralmente pela esquerda, mesmo comunista. Os baladeiros aparecidos no tempo do Zip foram outra expressão relevante do fenómeno cultural nascente. Por isso é que o Festival foi apenas um sinal de tal mudança em curso e não foi revolução alguma. Quando muito uma "evolução na continuidade", iniciada anos antes, em 1968, com as manifestações estudantis, copiadas do que acontecera em Paris, em Maio desse ano.
Há outra menção pessoal, aliás num artigo demasiado parco em tais referências e engordado por escritos alheios dos jornais da época, que merece destaque: o autor apanhou dez "boleias" de carros para chegar ao local. A "boleia" era um modo de transporte muito utilizado pela juventude de então: à beira das estradas ainda em alcatrão que aquecia demasiado no Verão e cristalizava ao gelo do Inverno, postava-se quem pretendia ir ao longe ou ao perto, eventualmente com alguns cartaz com o destino escrito ou apenas esticando o polegar, solicitando a caridade alheia. Muitas vezes me servi de tal meio de transporte, sem problema algum. E como eu milhares de jovens e eram muitos os que paravam e deixavam entrar desconhecidos, sem receio de serem atacados ou de sofrerem acidentes pelos quais poderiam ser responsabilizados. Era outro tempo e outros costumes, de facto.
É por isso que outro artigo aparecido esta semana na Visão relata mais memórias inventadas, neste caso por quem nem sequer as terá e as pede emprestadas.
A publicação do artigo parte do pressuposto que ladrão que rouba a ladrão... (pelo menos uma foto, a da revistinha Mundo da Canção é de uma revista que tenho por cá, cuja imagem já publiquei aqui). Por isso aqui vai:
Refere-se, claro, um imaginário ambiente "influenciado pela cultura hippie mas ainda amordaçada pelo regime marcelista..." e o anacronismo sobre o "Woodstock português" que desafiou "os anacrónicos cânones morais impostos pela ditadura".
Um dos protagonistas do festival de 1971, o maestro António Victorino d´Almeida, também não parece muito sintonizado com a época ao declarar que " o festival de Vilar de Mouros abalou por completo os alicerces políticos e sociais do país".
Enfim, tal dislate nem merece grande comentário, a não ser mencionar que o maestro na altura estava bem respaldado pelo regime porque estava por Viena, desde estudante bolseiro do Instituto de Alta Cultura ( e depois, em 1974, Adido Cultural) e era colaborador da RTP, onde aliás tinha um programa cultural de grande sucesso, etc.
Quanto a José Cid, diz ser o Quarteto 1111 " a maior banda nacional" o que é muito discutível. Por várias razões que resumo nestas: nem em terra de cegos musicais quem tinha um olho e ouvido para tal, conseguia ser rei. O Quarteto 1111 teve um sucesso relativo, em 1971, como aqui se mostra, com a Ode to the Beatles, com a parolice habitual da letra em inglês, o que diz muito mais sobre os costumes do que todo o artigo da Visão e desvaloriza o que Cid diz ...
Em resumo: as pobres memórias destes autores, infelizmente, relatam apenas aspectos parciais e de uma subjectividade emprestada. Triste, a meu ver.
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