Sejamos claros: quem se atrever a escrever algo em Portugal
sobre a Justiça em geral e diga ou mesmo sugira que não está tão mal como a
pintam e que até já esteve pior é tomado imediatamente por estulto.
O discurso dominante nos media e em geral é de “bota-abaixo”
como se costuma dizer e por vezes sem sentido real do que se diz.
Em 2009 a editora dom quixote publicou uma recolha de textos
de vários autores e actores do sistema de justiça, (“ Justiça à portuguesa-
retrato incómodo de um sistema que não inspira confiança” é o título sugestivo de tal obra recolhida)
sob a direcção de um irmão das Santas Casas de Misericórdia, Fernando
Contumélias que pelo apelido responderá a um progenitor inserido no jornalismo.
De esquerda, como convém.
O índice do livro não podia ser mais revelador, assim como o será a maioria dos entrevistados que falaram no assunto magno.
De Marinho e
Pinto a um tal José Alho, agente da GNR, na brigada de trânsito, todos malham
no sistema de Justiça como dantes em centeio verde. E no entanto malham de um modo demasiado
idiossincrático e pessoalizado em exemplos anódinos ou desgarrados de um
contexto. Por exemplo aquele Alho refere em determinado ponto do seu depoimento
( a fls. 436) que “ no caso dos agentes
da autoridade, quando apanhamos um infractor, um criminoso, até temos medo de o
deter porque levamos anos e anos de idas a tribunal e se faltarmos temos de pagar,
no mínimo, 3-4 UC; isso chega ao fim da vida de um militar da Guarda e não é
positivo, é traumatizante.”
E não fica por aqui, o Alho da GNR. Logo a seguir extrapola para o sistema
americano em que “nos Estados Unidos, seja ele juiz, seja ele um trabalhador
das obras, quando um agente o manda sair do carro, tem de levantar as mãos.
Agora, imagine, aqui em Portugal, apontarmos uma arma a um senhor doutor ou a
um senhor político, ou revistar-lhe o carro sem autorização. O guarda era
imediatamente despedido da GNR ou da Polícia. Como é possível? (…) Onde é que falha a Justiça portuguesa? Na
instauração dos processos, no julgamento dos juízes? “Penso que falha ao nível
do Ministério Público. Os bandidos hoje, que mataram, se calhar, três, quatro
pessoas, têm o direito de tapar a cara. Nos Estados Unidos ou na China, por
exemplo, são descobertos e expostos; isso é a maior vergonha, a maior
condenação é eles serem expostos aos órgãos de comunicação social e ver-se-lhes
a cara. “ É assim que o guarda Alho explica o seu ponto de vista que não
difere muito do de um taxista ou de um comentador do programa de tv da Fátima
Lopes ou da outra que grita que se farta.
Mas tem razão num ponto, o guarda Alho: “ Mas o Ministério
Público resguarda-se, fecha-se em sete portas e não vai connosco para o terreno”.
Ora aí está um ponto importantíssimo em que o guarda Alho
marca pontos e dá cartas de sabedoria. Quem é que já falou nisto como um
aspecto importante no panorama da justiça penal? Quase ninguém e de certeza
ninguém com responsabilidades de mando executivo. Ora aqui está um ponto que me
parece essencial para entender uma parte da verdadeira crise da Justiça, quando
existe. Não foi certamente o sociólogo
António Barreto que eventualmente defenderá o contrário disto.
Do lado da barricada dos que vilipendiam a
Justiça todos os dias, tendo responsabilidades acrescidas pelo cargo que ocupa,
está Marinho e Pinto, um jornalista que se formou em Direito, advogou pouco e
tornou-se bastonário dos Advogados ( hoje os jornais noticiam que se prepara
para alterar os estatutos que lhe permitam ficar no cargo mais um mandato, pelo
menos…à boa maneira chavista). Marinho vocifera contra a justiça e os
magistrados, essencialmente. As razões que invoca quase sempre aparecem
travestidas de motivos políticos inconfessáveis.
No livro é transcrito um escrito em que o mesmo assegura que
“A Justiça em Portugal é má. É lenta, é
cara e, muitas vezes, não é justa. (…) A Justiça está em roda livre. Por isso
está no estado caótico em que está e cada vez será pior”.
Em certa altura o jornalista das Santas Casas da
Misericórdia adianta que “Mas…se os juízes têm poder a mais, se o MºPº tem
poder a mais, porque é que não se emenda a situação? Marinho e Pinto não hesita
na resposta à pergunta- “Em certa medida temos, em muitos aspectos, o poder
político refém do poder judicial porque não há coragem política.”
O título do seu texto é “os juízes já nasceram no trono”, o
que dá o mote adequado para a idiossincrasia de Marinhe e Pinto: uma mente
perturbada por um poder judicial que não entende.
Entre as proclamações do guarda Alho e as do bastonário
Marinho há um mundo de diferenças que são todas misturadas quando surge o tema
da “crise da Justiça”.
Aquele género de proclamações tomadas sempre como expressão
de uma verdade inquestionável são
simplesmente fantasiosas, mentirosas até e contribuem em elevado grau para uma
imagem que pretendem dar de um sistema que afinal parecem não compreender apesar
de com ele lidarem diariamente.
A soma deste tipo de depoimentos de um exagero sem limites
de caricatura, atira qualquer sistema organizacional para um caixote de lixo
histórico e se os media os seguem, sem contraditório para com os vilipendiados,
como geralmente acontece, temos então um sistema de Justiça paralelo para
julgar o sistema de Justiça, com mais distorções e entorses, até democráticos,
do que aqueles de que acusam o sistema propriamente dito.
E portanto, o que dizem os magistrados do sistema?
No livro aparece um magistrado dos tribunais ( sim ,porque
há alguns que não frequentam diariamente os tribunais e geralmente falam em
palanques mediáticos), José Calheiros da Gama, então com 51 anos ( em 2009).
Sendo magistrado prático tem obrigação de saber como funcionam os tribunais “por
dentro”. E que diz Gama?
Fala da corrupção endémica como um fenómeno social que
atravessa o ambiente geral. “A maioria das pessoas não dá importância a estes
comportamentos, relativamente àqueles que “roubam mas fazem”. Muitas vezes,
estes casos não são punidos nos tribunais porque não se consegue fazer prova.”
Tomemos este pequeno exemplo de impunidade prática
relativamente a um crime importante e corrosivo, precisamente o da corrupção.
Há crise da Justiça penal no combate à corrupção? Há e não
há. Há na medida em que até a directora
do DCIAP proclamou em público que em Portugal não havia tanta corrupção como
isso. Há crise na medida também em que as leis penais não ajudam a esse combate,
por se tornarem demasiado exigentes em matéria de prova ( o guarda Alho não
entende porque é que um polícia não pode revistar um carro de alguém, por
exemplo, sem mandado judicial) e por garantirem demasiados direitos a suspeitos
que não deveriam merecer tanta consideração. Há legislação noutros países
democráticos que é menos deletéria e mais eficaz. Portanto, há crise da Justiça
neste aspecto. Mas suponho que não é desta crise que falam os que falam da
crise.
Por outro lado, nunca como agora estivemos tão bem
apetrechados tecnicamente para tentar descobrir onde param os corruptos e o que
fizeram ao dinheiro que assim ganharam. Os meios processuais ao dispor das
polícias e do MºPº são tão bons ou melhores do que sempre foram, com excepção
dos peritos necessários e colaboradores das polícias e do MºPº, mas…haja vontade e até esse aspecto fica
resolvido.
Há trinta ou mais anos, a investigação da corrupção de alto
coturno não eram melhor que hoje. Por exemplo, o caso do fax de Macau não foi
bem investigado e julgo que hoje seria melhor…
O juiz Calheiros da Gama fala ainda de outros fenómenos de
corrupção nos partidos, com a angariação de fundos e sacos azuis e a
necessidade de actuar rapidamente junto de um político “para se apurar
rapidamente se ele praticou ou não praticou determinados actos, para continuar,
ou não continuar, no exercício de funções.”
É claro que há crise de Justiça neste aspecto da celeridade
na actuação deste género, e tal será imputável à estrutura do Ministério
Público e polícia Judiciária, mas quando ouvimos certos políticos a falar mal
da Justiça não é a queixarem-se desta falta de celeridade e nos media ninguém
se queixa disto…
Há ainda outro aspecto focado por Calheiros da Gama: a
justiça nos grandes processos mediáticos em que aparecem figuras gradas da
sociedade política e não só. Aí, o que sucede é simples de enunciar: é uma
Justiça de ricos que aparece, porque os advogados envolvidos ( frequentemente
os que dizem muito mal do sistema judiciário, como Proença de Carvalho, Galvão
Teles, Magalhães e Silva e outros que tais ) procuram dilatar no tempo o máximo
de oportunidades de safarem os clientes. Aconteceu isso por exemplo no caso dos
hemofílicos ( Proença de Carvalho que adiou, adiou, com expedientes processuais
até à prescrição ocorrer) e no Casa Pia em que os advogados arrolaram centenas
de testemunhas abonatórias para dilatarem no tempo o máximo de oportunidades de
prescrição. No Freeport, outro caso
citado, o processo esteve parado na PJ por motivos esconsos e nunca
esclarecidos.
É de agora este fenómeno? Nem tanto. O processo das FP 25 de
Abril durou, durou que se fartou até se amnistiarem crimes graves. De quem a
responsabilidade concreta e prática? Da crise da Justiça? Não, dos mesmos de sempre: a lei processual
penal do tempo vinha já de 1929, com alguns remendos de 1975. Os processos
podiam espalhar-se por várias comarcas do Norte ao Sul e como se tratava de uma
organização criminosa, lá vinham os volumes todos para Barcelos, Braga,
Setúbal, Lisboa, Porto e por aí fora. Cada tribunal que tinha de apreciar os
factos locais tinha de ler tudo…e os advogados daqueles esquerdistas que agora
cantam a Grândola sabiam a lição toda.
Portanto, os ricos advogados têm meios para defender os
ricos clientes que lhes podem pagar principescamente. É esse sistema que está
em crise? Se sim, e devemos conceder que há muitas melhorias a introduzir no
processo penal ( e algumas delas já o foram agora, com esta ministra), então
concorda-se que a crise da Justiça, neste aspecto é uma crise do legislador e
ética, dos advogados. Não é uma crise
dos tribunais e da Justiça tout court que lá se procura fazer. António Barreto
sabe disto?
Sobre outra questão magna da justiça penal: o segredo de
justiça famigerado. Repito o que já disse inúmeras vezes. O segredo de justiça
é importante para preservar a eficácia da investigação. O resto, a outra
vertente de assegurar a presunção de inocência, pela não revelação de factos é
acessório por um motivo: é impossível esconder da opinião pública determinados
casos com impacto mediático, como foram todos aqueles em que foi violado
segredo de justiça, para grande incómodo e indignação dos do costume, os
suspeitos habituais mai-los seus advogados de feição. E por isso mesmo, a
violação de segredo de justiça nesses casos e com essa dimensão é apenas um mal
menor que não põe em crise a Justiça, mas pode pôr outras coisas…
Outro dos entrevistados para o livro e que não passa o tempo
a dizer mal da justiça é Armando Leandro, que foi director do CEJ e é juiz há
muitos anos e uma pessoa com uma dimensão que poucos conhecem mas é
impressionante de humanidade. Atrever-me-ia
a dizer que é um modelo de juiz e um homem bom.
O que diz Armando Leandro, agora que já tem mais de setenta
anos? O melhor é passar integralmente o que diz porque é expressão de uma
sabedoria que já não se vai vendo por aí.
E para terminar esta primeira abordagem centrada na Justiça Penal,
outro assunto, porventura o mais relevante de todos os que se queixam da
Justiça: a morosidade.
É demorada a Justiça, em Portugal? Depende. A Justiça penal
não é. Já não é. Melhorou muito nos últimos anos. Está melhor que nunca nesse
aspecto. Alguém duvida?
Não é preciso vir mostrar os casos do BPN, do Freeport e do
Apito Dourado e outros, como agora o Face Oculta, para tentar provar que assim
não é, porque a generalidade dos casos que correm em todas as comarcas do país
está melhor agora do que nunca esteve.
Outro assunto, diverso, é o da justiça cível, administrativa
e fiscal. Mas fica para a próxima oportunidade.
11 comentários:
Muito claro.
Um tsunami de factores!
as tvs fazem quanto podem para estragar o bom ambiente social.
10 labregos do be são o povo.
a generalidade dos 80% dos iliteratos
não percebe que as leis são feitas por políticos e aplicadas por juízes.
só vai para político que não sabe nem quer fazer mais nada
como na maçonaria os 'tudólogos' para nos 'xingarem' estão sempre «de pé e à ordem»
por essas razões «em mar de piranhas, jacaré nada de costas»
"Um tsunami de factores!"
Se vier com as ondas certas até as irei surfar...
Até agora só li flats.
José, do ponto de vista das relações comerciais e económicas a justiça portuguesa está bastante mal.
Portugal é dos países onde não pagar o que é estipulado contratualmente é visto com maior naturalidade. Isto é um dos maiores flagelos da nossa economia.
No mundo prático todos sabem que por dívidas inferiores a 5000 euros não vale a pena ir a tribunal excepto as grandes empresas (telecomunicações, etc)
Num país em que o salario medio são 777 euros, 5000 euros são mais de 6 meses de trabalho.
Outro problema é o da execução das próprias sentenças, que muitas vezes não são levadas "à prática" por pormenores formais totalmente irrelevantes.
Cumprimentos
Relativamente ao comentário anterior poderá dizer que é um problema da legislação, ou seja que quando fala de qualidade da justiça, estava a referir-se à isençao e qualidade dos meios humanos.
Aí concordo consigo, a maioria dos magistrados e procuradores que conheço são de facto exemplares e acredito terem uma boa qualidade técnica. Contudo tendo em conta o país em que vivemos, continua a ser um dos sectores mais bem pagos e com maiores regalias, (o que não é sinónimo de qualidade nos recursos humanos que eu acredito que de facto existe)
Relativamente ao comentário anterior poderá dizer que é um problema da legislação, ou seja que quando fala de qualidade da justiça, estava a referir-se à isençao e qualidade dos meios humanos.
Aí concordo consigo, a maioria dos magistrados e procuradores que conheço são de facto exemplares e acredito terem uma boa qualidade técnica. Contudo tendo em conta o país em que vivemos, continua a ser um dos sectores mais bem pagos e com maiores regalias, (o que não é sinónimo de qualidade nos recursos humanos que eu acredito que de facto existe)
Rui:
Concordo consigo. Porém, o meu postal versa sobre a justiça penal.
A cível, administrativa e fiscal virá depois, quando tiver disposição.
Porque razão ninguém, mesmo aqueles que conhecem o dia-a-dia dos tribunais, fala de uma questão crucial para o bom funcionamento destes e que impede maior celeridade e qualidade no trablaho dos juízes?
Refiro-me ao "expediente diário".
Atrás da qualidade da legislação, este problema, se resolvido, operaria milagres.
Quantos sabem que 9/10 do trabalho diário de um juiz é dedicado a justificar faltas, a autorizar o pagamento de custas em prestações (os chefes das repartições de finanças fazem o mesmo), a tentar remover uma miríade de obstáculos que se levantam no agendamento do mais simples dos julgamentos, etc, etc?
Peço desculpa mas não consigo corrigir os erros de ortografia no comentário anterior. Como se faz?
Para corrigir os erros? Não se faz. Fica assim porque não importa muito. Nos comentários é assim mesmo: não interessa a forma mas a mensagem. E a que apresentou é bem lembrada porque é um dos pontos críticos do sistema.
Quando me der ao cuidado de escrever sobre os "cíveis", administrativos e fiscais a ver se me lembro disso.
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