Como investigar, acusar e julgar os factos e actos que eventualmente praticaram e que eram contrários ao proclamado sistema do novo regime, dito democrático, mas com estruturas revolucionárias que apenas anos mais tarde desapareceram?
Em primeiro lugar, o novo regime tinha que estabelecer regras penais de acordo com princípios. Uma das regras básicas do Direito Penal é a do nullum crimen sine lege, ou seja, não há crime se inexistir lei que o preveja como tal. Logicamente, não poderia haver uma lei até Abril de 1974 que punisse factos e actos cometidos pelos representantes desse regime que vigorou até então e tinha a sua legalidade que não sendo "democrática" era legítima e constitucional. Este o primeiro problema.
A seguir, o enquadramente dos factos e actos eventualmente criminosos teria que se fazer ao abrigo de uma tipicidade, de uma previsão legal e típica que existisse já à época do antigo regime.
As prisões e penas aplicadas aos agentes "subversivos", mormente comunistas que atentaram contra o regime tinham sido aplicadas pelos tribunais e de acordo com o Direito existente e que proibia formal e penalmente tais actividades. Etc etc. numa sucessão de dificuldades que o advogado Joaquim Pires de Lima resumiu citando Marx: "quando uma revolução triunfa podem enforcar-se os seus inimigos, mas não deve pronunciar-se contra eles uma sentença judicial".
O aparente impasse, para não seguir à letra o dito de Marx ( afinal éramos de brandos costumes) foi resolvido com uma lei- Lei 8/75 de 25 de Julho ( depois actualizada quanto a recursos etc. por outra) que era assim e foi feita e aprovada pelo Conselho da Revolução, ainda sem estatuto Constitucional ou coisa que o valesse. Porém, em 25 de Abril desse ano, já tinha havido eleições para a Assembleia Constituinte...:
de 25 de
Julho
1. É do
conhecimento geral que a extinta Direcção-Geral de Segurança e polícias
políticas que a precederam, entre 28 de Maio de 1926 e 25 de Abril de 1974,
constituíram autênticas organizações de terrorismo político e social, com o
objectivo de impedir o livre exercício dos direitos cívicos no nosso país.
2. Essas organizações visaram, durante a sua
existência, a prática sistemática de crimes contra o povo português e o
arbítrio e a desumanidade de que deram sobejas provas sempre mereceram a
condenação da opinião pública nacional e internacional.
3. As actividades terroristas das mencionadas
organizações, que fizeram do crime institucionalizado a sua razão de ser,
desenvolviam-se na mais completa impunidade dos seus agentes, já que era o
próprio regime fascista que lhes dava cobertura.
Daí que, não permitindo as leis vigentes sob o
fascismo, como é óbvio, a incriminação e punição desses indivíduos, haja que
publicar legislação que, assente na legitimidade revolucionária do poder
democrático instituído pelo Movimento das Forças Armadas, corresponda à
profunda exigência sentida pela consciência colectiva dos Portugueses da
punição dos elementos responsáveis pela repressão fascista.
Só assim se poderá reparar a histórica injustiça que
constituíram as actividades criminosas exercidas durante dezenas de anos contra
o povo português pela extinta polícia política e seus directos responsáveis.
4. Sublinha-se ainda que a prolongada existência das
mencionadas organizações, bem como os métodos de repressão que utilizavam - dos
quais avultavam os vários processos de sistemática tortura física e psicológica
exercida sobre os presos -, constituíam factos públicos e notórios, por tal
forma que a nenhum dos seus elementos, do quadro ou colaboradores, era lícito
ignorar o carácter essencialmente criminoso das suas actividades.
Nestes termos, e no uso dos poderes conferidos pelo
artigo 6.º da Lei Constitucional 5/75, de 14 de Março, o Conselho da Revolução decreta e
eu promulgo, para valer como lei constitucional, o seguinte:
Artigo 1.º Serão punidos com a pena de prisão maior de
oito a doze anos:
a) Os membros do Governo (Presidente do Conselho de
Ministros e Ministro do Interior) responsáveis directos pelas actividades
criminosas da Direcção-Geral de Segurança e da sua predecessora Polícia
Internacional e de Defesa do Estado;
b) Todos os funcionários da Direcção-Geral de
Segurança, pertencentes às categorias de pessoal dirigente e pessoal técnico de
investigação criminal, superior e auxiliar, até chefe de brigada, inclusive,
nos termos constantes do mapa I anexo ao Decreto-Lei 368/72, de 30
de Setembro, e bem
assim os funcionários da sua antecessora Polícia Internacional e de Defesa do
Estado, das categorias de pessoal de direcção e investigação, até chefe de
brigada, inclusive, conforme o mapa I anexo ao Decreto-Lei 39749, de 9
de Agosto de 1954.
Art. 2.º - 1. Serão punidos com a pena de prisão maior
de quatro a oito anos todos os demais indivíduos que pertenceram aos quadros de
investigação das polícias mencionadas no artigo 1.º 2. Os médicos que prestaram
serviço nas mesmas polícias, e acerca dos quais existam provas de terem
excedido as suas funções de assistência aos doentes, para colaborarem nas
actividades criminosas daquelas organizações, ficam sujeitos à pena prevista
neste artigo.
Art. 3.º A pena de prisão maior de dois a oito anos
será aplicada a todos os demais funcionários do quadro da Direcção-Geral de
Segurança e das polícias políticas suas predecessoras, bem como aos professores
da respectiva escola técnica, desde que existam elementos comprovativos da sua
participação nas actividades repressivas fascistas.
a) A todos aqueles que, por sua iniciativa ou mediante
remuneração, colaboraram com a Direcção-Geral de Segurança e polícias políticas
que a precederam, formulando denúncias ou prestando informações sobre
actividades políticas;
b) Aos que utilizaram os serviços dessas polícias
causando prejuízos morais ou materiais a qualquer pessoa física ou jurídica.
Art. 5.º Todos os indivíduos abrangidos pelo presente
diploma que exerçam quaisquer actividades visando a perturbação, por meios
violentos, do processo revolucionário iniciado em 25 de Abril de 1974 ficam
sujeitos à pena de quatro a doze anos de prisão maior.
Art. 6.º - 1. Na graduação da pena ter-se-ão em conta as
actividades desenvolvidas pelo arguido, bem como a gravidade da culpa, e ainda
o grau da sua responsabilidade hierárquica e funcional.
2. As penas aplicadas, nos termos deste diploma, aos
indivíduos referidos nos artigos 1.º, 2.º e 3.º não prejudicam o apuramento de
responsabilidades pelas actividades criminosas como tal definidas na lei penal
e que igualmente tenham sido praticadas pelos mesmos indivíduos.
Art. 7.º As penas previstas neste diploma não podem
ser suspensas na sua aplicação, nem substituídas por multa, sendo, no entanto,
passíveis de atenuação extraordinária.
Art. 8.º Na pena aplicada será levado em conta, por
inteiro, o tempo de prisão do arguido, posterior a 25 de Abril de 1974.
Art. 9.º - 1. Serão julgados à revelia, como se
estivessem presentes a todos os termos do processo, incluindo a audiência de
julgamento, os indivíduos que, abrangidos por este diploma e encontrando-se em
liberdade à data da sua publicação, não se apresentarem até à data do
julgamento.
2. O réu julgado nos termos do número anterior não
poderá requerer que se proceda a novo julgamento pelos mesmos factos por que
tenha sido condenado.
Art. 10.º - 1. Verificando-se a prática de diversas
actividades criminosas pelos indivíduos abrangidos no presente diploma, as
penas serão graduadas pela seguinte forma:
a) Se forem julgados no mesmo processo, a pena
correspondente ao crime mais grave sofrerá aumento não inferior a metade da
pena máxima prevista para cada um dos outros crimes;
b) Se forem julgados em processos diferentes, a pena
correspondente ao crime mais grave sofrerá aumento não inferior a metade da
pena efectivamente aplicada no processo anterior.
2. O cúmulo das penas autónomas aplicadas é
obrigatório, mesmo que as decisões respectivas tenham transitado em julgado,
fazendo-se sempre a discriminação das penas parcelares.
3. O tribunal competente para efectuar o cúmulo das
penas, no caso da alínea b) do n.º 1 deste artigo, é o da última condenação.
Art. 11.º O procedimento criminal pelos factos a que
se refere o presente diploma é imprescritível.
Art. 12.º Da sentença que condene qualquer dos
indivíduos abrangidos pelos artigos 1.º, 2.º e 3.º, pelos motivos aí referidos,
cabe recurso com o único fundamento de erro de identidade do réu.
Art. 13.º - 1. Compete a um tribunal militar o
julgamento dos indivíduos abrangidos por este diploma, para apuramento dos
factos criminosos nele assim definidos.
2. Com o fim de garantir a necessária celeridade
processual, serão definidos em lei própria o funcionamento e as normas
processuais a adoptar no julgamento a que se refere o número anterior.
3. O mesmo tribunal militar será também competente para
julgar os indivíduos abrangidos por este diploma pela prática das
actividades criminosas a que se refere o n.º 2 do artigo 6.º 4. Nos casos
mencionados no número anterior serão observadas as normas processuais que
regulam o processo criminal militar.
Art. 14.º A execução das sentenças proferidas nos
termos deste diploma compete às autoridades militares e regula-se pelas
disposições do Código de Justiça Militar.
Art. 15.º Este diploma entra imediatamente em vigor.
Vista e
aprovada em Conselho da Revolução.
Promulgada
em 22 de Julho de 1975.
Publique-se.
O Presidente da República, FRANCISCO DA COSTA GOMES.
Esta Lei foi classificada por Marcello Caetano, em 1978 ( em anotações à nova Constituição portuguesa), como sendo, "sem dúvida a lei mais monstruosa de toda história do Direito Português":
Nenhum Consitucionalista de topo; nenhum jurista de relevo, na época de 1975 ou depois, se atreveu a qualificar esta lei. Silêncio cúmplice que lhes deve pesar como chumbo de caixão. Mais: alguns juízes do Constitucional actual, na altura eram comunistas. Portanto...
E porém, houve por aí uns flibusteiros do Direito que entenderam na época esgrimir argumentos jurídicos para mostrar a plena validade de tal monstro jurídico. Um deles, já morto, foi o célebre Candal que mostra os seus excelsos conhecimentos de direito penal neste escrito, assim, no O Jornal de 22 de Outubro de 1976.
Na altura, um juiz de primeira instância tinha julgado tal lei inconstitucional, pura e simplesmente. Porém, o Candal não se dava por vencido e também o Supremo tribunal militar ( foro próprio para aplicação dessa lei) decidiu depois que era...constitucional. Parece que foi um juiz desse tribunal militar ( seria formado em Direito, acho, mas duvido) que assim disse, um tal Acácio Vítor Ferreira, já então juiz conselheiro do STJ ( e portanto mesmo formado em Direito) e com decisão sufragada por outros juízes ( eventualmente formados em Direito) tomada no dia 25 de Novembro de 1976.
Na altura o Vital Moreira mais o Jorge Miranda mai-los outros todos, incluindo o Marcelo Rebelo de Sousa ficaram caladinhos. Que eu saiba porque nunca li nada sobre o assunto, da respectiva lavra.
Nem Freitas do Amaral. Ou outros figurões.
Portanto, sobre Constituições, constitucionalidades e monstruosidades jurídicas estamos conversados, há décadas. Sobre o tribunal constitucional, já ficamos a propósito do Conselho da Revolução e da Comissão Constitucional da altura.
A História repete-se. Agora é a época da farsa.