quarta-feira, junho 25, 2014

SCUTS: a Administração Fiscal actua ( legalmente) como cobrador do fraque.

Depois de ver este video...



É favor ler isto para perceber melhor o que a RTP não consegue explicar em imagens e texto de reportagem:

Imagine alguém que em 2011 tinha um carro cuja morada no livrete estava registada como sendo em determinado local diverso da residência habitual.
Imagine que empresta esse carro a alguém, durante uns dias, e esse alguém, em Julho de 2011, vai dar uma volta e passa em determinado local que acciona o registo de passagem em portagem sujeita a custo para o utilizador, por conta da Ascendi, uma empresa que logrou umas chorudas PPP´s quase na mesma altura. Custo da passagem: 70 cêntimos.
O utilizador ocasional esquece-se de pagar o custo ( porque o carro não é seu e não tem "dispositivo") e começa a saga em que a Ascendi vai ganhar um balúrdio, apenas por causa da circunstância de o proprietário do veículo não ter alterado a morada no respectivo livrete.

O caso merece atenção porque envolve prescrição de procedimento contra-ordenacional que está na ordem do dia.

Em 2011, a Ascendi conclui rapidamente que não foi paga a taxa de portagem no tempo devido que é de alguns dias após a passagem do carro e da matrícula que fica fotografada e registada e envia a comunicação ao Inir, um instituto público fantástico que tem um conselho directivo.

Este instituto tem uma tarefa ingrata: processar o auto de notícia e a contra-ordenação, porque a passagem sem pagamento oportuno, transforma-se em ilícito administrativo passível de coima, conforme determinam os artigos 5º, 6º e 7º da Lei 25/2006 de 30 de Junho.

E tem a tarefa de notificar o transgressor coimado na bonita soma de 25 euros porque é o mínimo para quem não pagou os 70 cêntimos devidos, segundo o critério do artº7º daquela inefável lei. O máximo seria o quíntuplo do valor mínimo da coima, ou seja, 125 euros.

O Inir é generoso com os infractores e coima-os pelo valor mínimo. Mas...atenção! O valor dos custos administrativos ( processamento da contra-ordenação, expedição de carta registada primeiro e depois simples e expedição para as Finanças, posteriormente) disparam com esta actuação do bravo instituto público: primeiro 46 euros; depois, se ainda assim não houver pagamento, os custos duplicam: 92 euros. Se isto não é uma segunda coima, não sei o que seja. Se isto não é um abuso de posição dominante e um castigo suplementar não compreendo o que seja, porque custos assim, não me parece que sejam.
 Evidentemente, estes "custos administrativos" estão devidamente suportados numa Portaria fantástica também: 75 euros, mínimo de custos para recalcitrantes que não sabem que o são. Como o não sabem, não podem usufruir da generosa redução do montante desses "custos", para metade (!)  pagando logo que notificados da decisão, no prazo generosamente concedido para tal. Como o recalcitrante não sabe sequer que foi coimado, pimba! Castigo, pagando o dobro dos custos, naquele "montante mínimo". Grande Portaria assinada pelo ministro Mendonça, em 2010.

Portanto, o recalcitrante que nem sabe que foi coimado, tem já às costas virtuais um procedimento contra-ordenacional que passou de 70 cêntimos para qualquer coisa como 120 euros, somando, mais coisa menos coisa, a taxa, os custos administrativos  ( sim, mas não os do Inir...pelo que devem ser os da Ascendi em enviar a comunicação para o Inir) que importam em quase 4 euros e a que se somam 92 euros dos tais custos administrativos do Inir, agora sim que custa muito ser funcionário administrativo nesse instituto.


E que fez o Inir para merecer aqueles custos administrativos e aplicar a coima? Decide em Outubro de 2012 ( ou seja mais de um ano depois...o que é curioso porque andam agora no Parlamento a querer saber como é que o BdP demorou dois anos e quatro meses para fazer a mesma coisa num processo com outra dimensão e complexidade)  e manda  a Ascendi notificar o recalcitrante que o faz dali a um mês, sem o notificar realmente porque a morada do veículo não é a mesma do coimado.

No entanto, para todos os efeitos, o Inir considera na fundamentação da decisão que a data de notificação nos autos fora em Março de 2012.
Essa decisão condenatória deveria obrigatoriamente ser proferida no prazo de um ano, a partir da passagem do carro sem pagamento da portagem, ou seja até Julho de 2012. Sob pena de prescrever...como as do BdP.
A lei - IMOS- a regulamentação geral das contra-ordenações, aplicável porque aquela Lei 25/2006 assim o prevê, também fixa no artº 27º,  que o prazo de prescrição é de um ano, a contar do facto, claro. Porém, nos termos do artº28º do mesmo diploma  "a prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade."
Quer dizer, que o Inir teria que despachar a decisão até Janeiro de 2013 ( um ano e seis meses depois de Julho de 2011).  Despachar e notificar o recalcitrante, claro está.E ainda prevê a mesma lei no artº28º alinea d) que "com a decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima" se interrompe o prazo de prescrição.
Porém, nunca poderá esquecer-se que em Janeiro de 2013 tudo prescreverá irremediavelmente. 

Sabendo tudo isto o que faz o bravo Instituto pago por todos nós e que debita custos administrativos régios?

Através da Ascendi, tenta notificar o coimado da coima, no mesmo lugar que presumivelmente deveria já saber que o não vai encontrar, avisando-o que em caso de novas diligências infrutíferas se seguirá a cobrança coerciva, a cargo das Finanças porque assim o prevê a lei, que manda aplicar subsidiariamente, a estes casos, o RGIT, o regime geral das infracções tributárias. Tal ocorre em Novembro de 2012, já muito perto do términus da prescrição. E ocorre igualmente sem notificação porque a morada é fantasma, para o infractor, o que devia ser já de conhecimento presumido da Ascendi.

O artº 70 deste RGIT remete para outro diploma-o Código de Procedimento e Processo Tributário- CPPT . o que se refere a notificações e já vimos que o problema reside todo aqui, na notificação do infractor que não reside na morada indicada no livrete do carro que não mudou, mas tem outras moradas que o Inir se quisesse mesmo poderia saber.

A Ascendi e o Inir e as entidades administrativas subsequentes não procuram a morada do infractor nas bases de dados disponíveis, mas apenas numa: a do livrete. Pelo nome do infractor, desde logo, há várias bases de dados. As das Finanças são privativas, por causa de um sacrossanto sigilo fiscal; as demais são ignoradas porque o Inir e a Ascendi têm um trunfo: precisamente o RGIT que reenvia para o CPPT e que no artº 43º estabelece o princípio de que os "interessados" têm o dever de alterar o seu domicílio. Se o não fizerem não podem invocar tal facto junto da administração que os coimar...ou pior.
E portanto, que se lixe o coimado. Mesmo que a Ascendi pudesse indagar a eventual morada actual do infractor noutras bases de dados, não o fará porque tem a seu lado esta fantástica lei que garante uma Justiça fiscal impecável: coimar ausentes e ignorantes que tenham sido negligentes na actualização das moradas, mesmo que pudessem ser encontrados noutras moradas decorrentes do BI, das bases de dados da segurança social, das finanças ( a quem poderiam pedir informação porque o passo seguinte seria o de remeter o procedimento a essas mesmoas Finanças, etc etc). Não o fazem e assim uma taxa de 70 cêntimos se transforma numa coima com custos faraónicos e cujo total atinge 140 e tal euros, porque entretanto se somam também os "custos administrativos" do Fisco, com os juros de mora, em valores calculados ao cêntimo.

Passo seguinte: o Inir, tal como ameaçou na notificação que o coimado nunca recebeu, envia o procedimento para as Finanças da residência do mesmo, para cobrança coerciva, através de procedimento executivo, com aquele valor: 147 euros..
E é nesta fase que o coimado toma conhecimento do processo todo e de toda este emaranhado legislativo.
Primeiro através de um sobrescrito postal que aparece na sua caixa de correio ( e não naquela para onde foi enviado o procedimento do Inir e da Ascendi) porque o coimado tem uma residência fiscal diversa e correspondente ao seu domicílio real.
Mas tomará mesmo conhecimento de todo o processo? Não. Só do sumário. Se quiser saber o que foi todo o processo...não sabe. A não ser que vá ao Fisco e pergunte porque o Inir e a Ascendi remetem ao Fisco informação exclusiva e que não é remetida ao executado. Este que se mexa, se quiser saber e assim se fundamentam estes actos administrativos lesivos para o contribuinte.
A partir daqui está tramado fiscalmente porque a citação que recebe, nos termos do tal CPPT é para a execução. E como se pára uma execução fiscal? Não pára a não ser que se preste uma garantia, para a discutir em tribunal.

A citação recebida em Março de 2014 explica sumariamente: tem trinta dias para pagar ou bufar, em oposição deduzida no tribunal fiscal. Mas se o pretender fazer, por exemplo para alegar a prescrição do procedimento- e já vimos que seria caso disso porque a partir de Janeiro de 2013 este procedimento contra-ordenacional extinguiu-se legalmente por prescrição- terá ainda mais dissabores passíveis de afastar qualquer um de se meter nas andanças dos tribunais fiscais.


O desgraçado que assim se veja nestes preparos administrativos, -e devem ser milhares e milhares por esse Portugal fora- tem uma alternativa ao pagamento: deduzir uma oposição no tribunal fiscal. Onde? Em Lisboa porque a Ascendi assim o quis ( ou alguém do governo por ela ou por outros concessionários de scuts) e fizeram-lhe a vontade em lei.
E que mais tem que fazer? Em primeiro lugar e naquele mesmo prazo de 30 dias, prestar "garantia" que é superior ao valor a pagar. Para um montante de 147 euros, a garantia será de um pouco mais de 220 euros.

Paga logo, senão nem sequer é atendida a oposição. Que é escrita, evidentemente e com todos os ademanes próprios das becas, com debruados semânticos nas fímbrias da legislação e exceléncias a eito para pedir justiça básica.  Depois, pode constituir advogado, mas atendendo ao valor nem será preciso ( mas quantas pessoas saberão Direito para argumentar perante a Administração Fiscal e o Tribunal Fiscal, sem advogado?) e terá naturalmente que lhe pagar se o contratar. Chegarão 500 euros para o trabalho jurídico? Depende. Se forem ter com o Sérvulo não se sabe muito bem, mas pelas contas do Banco de Portugal a tarifa é ao minuto e milhares de euros em taxímetro de firma, a contar.
Depois vem o mais incrível e insidioso nisto tudo: para dar entrada em tribunal de qualquer acção, neste caso de uma Oposição à Execução em que alega prescrição ( que devia ser de conhecimento oficioso do Fisco... sob pena de condenação) o autor tem que pagar a quantia mais incrível que pode haver nestes casos: uma taxa de justiça inicial, com um valor mínimo absurdo: € 306,00
Este valor é a prova de que só acede à justiça, nestes casos, quem for rico ou quem for muito pobre e tiver direito a apoio judiciário. Quem for remediado, evita. Não vale a pena e  assim funciona a Justiça em Portugal. Só esta medida afasta dos tribunais fiscais, milhares e milhares de processos. E mesmo assim, os TAF´s estão atrasados e muito.

Quer dizer tudo isto que para alguém se opor a uma execução derivada de uma coima de 140 e poucos euros, não paga em função daquelas circunstâncias, terá que pagar a um advogado, se não souber Direito; terá que pagar 306 euros de taxa de justiça inicial e terá que aguardar a decisão do tribunal fiscal durante meses ( ou anos...), e mesmo que tenha a certeza de que a contra ordenação está prescrita o melhor que tem a fazer é pagar e não bufar.
Penso que todos perceberão porquê. Isto será Justiça num país democrático?

Em aditamento ao texto que escrevi em 21 de Março de 2014 devo dizer o seguinte:

Todo este procedimento kafkiano e vergonhoso para qualquer Estado que se diga de Direito e que tenha a Justiça como meta, poderia ser evitado com uma simples alteração legal:  as concessionárias das SCUTS, beneficiárias de PPP´s ruinosas para o erário publico e ainda beneficiárias do favor legal que obtiveram do Estado, no tempo de José Sócrates, em que se permitiu legal e escandalosamente o frete de ser esse mesmo Estado pago pelo cidadão, a cobrar as dívidas privadas, com acrescentos obscenos e monstruosamente desproporcionais, deveriam ser obrigadas a indagar por todos os meios legais as moradas alternativas dos automobilistas que passaram nas SCUTS sem pagarem a portagem. Designadamente obrigar tais concessionárias a indagar previamente toda e qualquer morada que exista em base de dados disponível ( devendo ser-lhes facultadas as moradas fiscais porque tem toda a lógica que assim seja uma vez que se servem da A.T. para lhes servir de cobrador de fraque). Só depois disso é que as concessionárias deveriam ter o direito de remeter às Finanças as certidões de dívidas para processamento das contra-ordenações e execução fiscal correspondente.
Se tal acontecesse, ou seja, se as concessionárias não se limitassem a processar as dívidas apenas com base na morada que consta do livrete do automóvel em causa, nada disto sucedia ou sucederia em muitissmo menor escala.

Isto que actualmente sucede é um escândalo público, a vários títulos. Um deles é o facto de a Administração Tributária proceder à cobrança de dívidas prescritas, como poderá acontecer e por o contribuinte não ter interesse em deduzir oposição a execuções fiscais cujo custo mais que triplica o montante em dívida e no caso do contribuinte assinalado na reportagem da RTP1 se torna desproporcional e obsceno.

Se o Governo não actua rapidamente para pôr cobro a esta pouca-vergonha, com epicentro nos concessionários das SCUTS, rendeiros de PPP´s e que contrataram com o Estado dos paulos campos e quejandos, será tempo de os contribuintes se revoltarem porque isto é de facto inenarrável.

10 comentários:

Floribundus disse...

'estamos muitíssimo bem aqui' Tito Lívio

'estamos aqui para ficar' Gabriel d'Annunzio

'metis' era a inteligência com capacidade para gerar truques, estratagemas, caminhos tortuosos

inicialmente era a 1ª mulher de Zeus que a comeu para ficar mais inteligente que os outros deuses

os keynesianos já estão no terreno prontos para tomar conta do poder e aumentar a dívida

lusitânea disse...

O Sócrates e o Costa não só importaram a africanidade como a nacionalizaram na hora.E não contentes africanizaram todo o zé povinho como se vê pelo arrasto fiscal que por aí anda e sem garantias nenhumas
Vergonha de democracia na mão destes FDP...

lusitânea disse...

E no Imposto de circulação?Que uma lei também jeitosa apanhou centenas de milhar que tinham "vendido" o carrinho nas teias do fisco?E mesmo que se queira guardar o automóvel para colecção continua a pagar IC e se não vai a outra invenção democrata:as inspecções ui ui ui...
É uma autêntica asfixia democrata...

lusitânea disse...

Mas pode-se continuar no IMI um verdadeiro arrasto fiscal por via administrativa em que a rapaziada avalia por cima para recolher mais.Mas muito por cima...
E ainda por cima os meninos incentivam a desvalorização dos imóveis com as pinturas ditas arte urbana, as hortas rurais urbanas mas em que o IMI nunca é atingido...

Floribundus disse...

como se pode ver nos mitos de Zeus e outros
os gregos praticavam a antropofagia em época histórica

por cá nos novos mitos suburbanos
cospe-se contra o vento

e todos pensam estar a erguer cavalos de Tróia como se fossem Ulisses-Odisseus

Ljubljana disse...

Tudo isto seria evitável se as concessionárias fossem justamente obrigadas a cobrar as portagens nos locais da prestação do serviço.

Linha Recta disse...

Isto em Portugal é Kafka para todos os lados. Qual é o processo judicial que neste país não descambe em anedota ou arquivamento sumário?
E noutro capítulo, já se debruçou sobre os pré-Bolonha que tentem voltar a estudar?

Carlos Medina Ribeiro disse...

Então aqui fica o que, recentemente, se passou comigo e com a Ascendi:

Recebi uma contra-ordenação da Autoridade Tributária e Aduaneira intimando-me a pagar uns 12€ por, supostamente, ter passado, 2 anos antes, em Guimarães sem pagar a portagem na ex-SCUT.
Ora isso não era possível, por 2 motivos:
1º, porque tenho Via-Verde; depois, porque não vou a Guimarães há 30 anos.
Fui à Via-Verde reclamar (pedindo a suposta foto), e remeteram-me para a Ascendi.
Depois de muitas tentativas, lá consegui falar com eles.
Tendo em conta o local, o dia e a hora da suposta passagem, lá foram ver a foto do infractor e - evidentemente - viram que era engano e pediram-me desculpa.
--
Já agora: pesquisas no Google em «Erros Ascendi» dão imensas respostas... Quem tem Via-Verde apanha, com frequência, com débitos falsos.

José disse...

Essas situações de erro são as melhores para quem é vítima, embora desagradáveis. Melhores no sentido em que se resolvem a contento.

As demais, ou seja as que cito no postal não são nada agradáveis e são muito penalizadoras para os cidadãos que muitas vezes nem são os autores das infracções. Basta emprestarem o carro a alguém...

José disse...

Há um comentário no Blasfémias de um homónimo que assina josé e que afirma que se assim não fosse todos os chico-espertos se safavam.

Não concordo. Por dois motivos: o primeiro é que as concessionárias deveriam ser obrigadas a pesquisar as moradas várias dos condutores porque a lei que as protege é demasiado rígida e permite estes processos kafkianos.
Por outro lado, as Finanças actuam por vezes fora da legalidade, quando os factos já prescreveram.

Depois e por último o Estado não deveria proceder a estas cobranças difíceis de empresas privadas.

O Público activista e relapso