sexta-feira, fevereiro 10, 2017

Memórias catalogadas




Pacheco Pereira numa entrevista ao i de hoje discorre sobre memórias arquivadas em papéis. O raciocínio é interessante para reflectir sobre a natureza dessa mesma memória que assim fica arquivada.
Para além da anedota que é definir o “populismo” como a “hipervalorização da expressão da opinião e do voto, subvalorizando-se o primado da lei e os mecanismos democráticos”, o resto lê-se com algum interesse.
A confissão acerca do “hábito de guardar coisas” é acompanhada de uma explicação racional dubitativa: é uma “luta contra o tempo”, uma “permanente luta contra a erosão do tempo. Com a noção de que qualquer pessoa de História sabe que isso é impossível”.
Não é só qualquer pessoa de História mas qualquer pessoa que não seja totó, porque é do senso comum.
Porém, é a frase seguinte que suscita atenção particular: “ Mas que, de qualquer maneira pode ajudar a transportar uma memória colectiva para além da geração que viveu os acontecimentos e isso é relevante”.

Ora que memória colectiva será esta? Quem interpreta a memória colectiva imersa em documentos escritos, mormente papel de jornal?
Como não sou Historiador estou certo que o problema será corriqueiro para quem estudou tal matéria e por isso questiono: quem é que possui a chave-mestra para a interpretação de factos e acontecimentos do devir histórico?  Pacheco Pereira? Será, mas com as suas idiossincrasias.
Quem lê ou ouve a interpretação que Pacheco Pereira ( e outros porque no caso o indivíduo é apenas o exemplo) fica a conhecer a sua interpretação particular e não a suposta “memória colectiva” cujo desiderato propõe.
A “memória colectiva” se for alargada a todo um povo não pode ficar circunscrita a um grupo que acaba por se reconhecer no retrato a sépia, óleo ou fotográfico.
A sociedade, qualquer sociedade, não se reduz a um grupo e muito menos a um grupo que viveu durante décadas na clandestinidade das opões políticas fundamentais ou à margem dos valores comuns e mais gerais.
A  nossa memórica colectiva não é apenas a da Esquerda, entendida em modo geral, abrangendo por isso toda a franja de oposição a um Estado Novo ou a um regime que tinha os seus valores definidos numa Constituição de 1933 ou numa Concordata com a Santa Sé.
A memória colectiva deve incluir essas pessoas, das quais Pacheco Pereira faz parte e também as demais que são muitas e provavelmente em maior número que aquele e não guardam o mesmo tipo de "memória colectiva" catalogada do modo apresentado pelos pachecos pereiras ( incluindo os rosas&flunsers e outros idiossincráticos da Esquerda).
 Estas memórias ausentes faltam, por isso, no panorama que temos, em que a Esquerda que Pacheco representa, domina completamente o sistema de transmissão de conhecimentos e da tal "memória colectiva" truncada à mercê de uma visão parcelar do devir histórico. 

A realidade histórica nacional nos primeiros setenta anos do séc. XX não foi apenas a dos opositores à Igreja Católica ou dos opositores ao regime de Salazar/Caetano. Foi também a dos apoiantes e as razões por que o fizeram merecem igual destaque e atenção que evidentemente é esquecido por Pacheco Pereira e outros ou completamente desvirtuado por interpretações erradas ou ignorantes da sua essência. 

Um dos casos mais interessantes que se pode apresentar como exemplo foi citado por outro prócere da Esquerda triunfante. José Afonso, em entrevista à revista Cinéfilo ( que Pacheco com toda a certeza terá em arquivo) de 21 de Novembro de 1973 dizia algo que nunca mais vi alguém repetir, mencionar ou sequer perceber, nos media que temos nos últimos 40 anos: a mudança operada pelos mesmos media na mentalidade de um povo, em particular, a mudança de linguagem antiga, castiça e de sabedoria ancestral  para uma nova, asséptica e desvirtuada de conhecimento.


Amputar uma memória histórica, como Pacheco e outros fazem,  é truncar a realidade e contar uma historieta de Portugal. Tem pouco interesse e vale pouco a pena ter um arquivo colossal para no final de contas  ser usado apenas desse modo anquilosado.

11 comentários:

Ricciardi disse...

A memória colectiva assente em relatos num regime que censurava a opinião e filtrava a realidade não vale um tostão furado.
.
Eu posso garantir que o estado novo era um regime extremamente corrupto. Bons negócios se faziam com altos funcionários do estado como sócios sombra.Sem sócios sombra do regime era difícil vingar um negócio.
.
Nas contas e projectos das empresas já se contava com uma verba para as denominadas gorduras. Untar as mãos para não atrapalharem era prática comum. Uma questão de sobrevivência. Sem gordura não se obtinham as autorizações necessárias.
.
Por outro lado como o funcionalismo público era mal pago, socorriam-se do poder para sacar massas. Os policias recebiam notinhas embrulhadas nas cartas. Os fiscais um envelope.
.
Esse período é muito semelhante ao que ocorre em angola com as gasosas. O regime era ditatorial mas a corrupção, luvas, e impostos particulares estava bem democratizado.
.
De acordo com a dimensão dos negócios a corrupcao ia subindo na hierarquia do regime. Os ficais recebiam envelope e arranjavam empregos para os filhos, vizinhos, amigos. Mais acima na escala membros do aparelho queriam parte nos lucros. Bancos, indústrias, etc.
.
Os jornalistas não podiam denunciar estes casos porque havia censura e o lápis azul fazia o resto do trabalho. Os denunciadores mais corajosos eram imediatamente presos.
.
Rb
.

Floribundus disse...

o problema do pacheco dos papéis
reside no facto de nem a geringonça o ter convidado para ministro

ainda não compreendeu que a politica de esquerda não é para gente inteligente e culta

josé disse...

Só falta é dar voz, mesmo de memória, aos que o faziam e por que o fariam.

Para se defenderem de ignomínias como as relatadas.

josé disse...

Para relatos de pretensas vítimas do fassismo já temos po pacheco, rosas& flunser, Lda.

josé disse...

Quem exige provas para factos evidentes deveria evidenciar algo mais que a matéria de acusação como prova.

zazie disse...

O relato do pascácio que gatinhava no 25 de Abril é o relato familiar-marrano.
Há que dar um desconto. Eles estão sempre a projectar nos outros os maus hábitos que têm.

joserui disse...

A memória colectiva nacional recente está estragada, julgo que para sempre. Não faltam por aí anti-fassistas desde pequeninos, nascidos nos anos 80 e 90, cheio de memória colectiva.
A propósito li esta semana no Guardian um artigo sobre a banda Raincoats que se calhar não conhece, onde a vocalista/guitarrista Ana da Silva fala dessa memória colectiva que nem sequer pode ser dela. É verdade que Londres lhe pareceu um local onde tudo era possível (onde cá podia assistir a um concerto dos Sex Pistols iniciais?), mas é uma falácia completa (colectiva) dizer-se que uma banda daquelas não saiu daqui por causa do Estado Novo. Nem do estado novo, nem da democracia — aliás julgo não me enganar se disse que Ana da Silva é madeirense (ainda me lembro do programa de António Sérgio onde as ouvi pela primeira vez), da Madeira, nunca saiu nenhuma banda assim e não sairá nos próximos 100 anos.
As pessoas ficam muito admiradas com as memórias de Vilar de Mouros que o José aqui divulgou, porque colide directamente com a memória colectiva. É triste.

josé disse...

Raincoats?


Meu caro, tenho cá ainda vários jornais New Musical Express e Melody Maker, para não falar dos primeiros números da Face...

Sobre Vilar de Mouros e a memória perdida de alguns, fala bem porque vou publicar recortes.

Para assinalar as memórias perdidas.

joserui disse...

Mas mais triste é este Ricciardi não ver um boi no presente e saber exactamente como era antigamente. Um regime que nem o mais empedernido dos comunas consegue criticar por essa via; um regime que até um Otelo já veio elogiar na pessoa de Salazar, tal é a pouca vergonha dos Sócrates e comandita. É bizarro. Realmente a ponte de Salazar foi um descalabro, já a outra diz que correu tudo muito bem, fora o resto.
A comparação com Angola de hoje, só entendo como trollice, porque de outra forma não seria possível. Grande troll.

joserui disse...

Raincoats… acabei por não percebe se conhece :) . Isto é anos 80, essas revistas devem apanhar claro… Eu tenho uns discos, já não ouvia há anos, ouvi esta semana.

josé disse...

As Raincoats é grupo de que já ouvi falar e terei ouvido alguma música, mas não me lembro. Nem sei se virá nos NME ou MM que tenho.

E lembro-me por causa da tal portuguesa.

O Público activista e relapso