domingo, fevereiro 19, 2017

Um livro com muitos anos de atraso

José Milhazes, um dos desiludidos do comunismo,  decidiu contar as suas aventuras na pátria do dito e publicou agora um livro sobre os russos, com factos que aparecem com um atraso de várias décadas.

O Observador conta, citando passagens do livro:


Aterrámos no Aeroporto Sheremetiev de Moscovo às 20 horas e 40 minutos (17 e 40 em Portugal continental) do dia 10 de Setembro de 1977. A primeira grande surpresa foi o controlo de passaportes e bagagens à porta do «Paraíso». Depois de um olhar demorado e severo (sorrisos era coisa que não existia nos rostos da guarda fronteiriça) para a nossa cara e documentos, carimbavam o passaporte, sendo a fase seguinte a revista das bagagens, ainda mais longa e meticulosa. Uma das estudantes portuguesas que viajavam comigo teve de abrir as malas. Fiquei tão espantado com o conteúdo – lençóis bordados, camisas de noite, pensos higiénicos, camisolas, camisas, vários pares de sapatos, etc., etc. –, que comentei se aquilo não se tratava de um enxoval para o casamento. Só mais tarde vim a saber que ela era sobrinha de uma dirigente da Associação Portugal-URSS que ia bem prevenida.
Encontrei imediatamente razões para justificar vigilância tão apertada e enxoval tão rico. A primeira era a defesa contra as artimanhas do imperialismo norte-americano e da CIA e, a segunda, a proteção contra tiques pequeno-burgueses.
À nossa espera estava Luís Vieira, estudante madeirense que tinha chegado à URSS no ano anterior e já falava fluentemente russo. Depois de algumas horas de espera no aeroporto, fomos levados num velho autocarro para o Hotel Universitet, onde fiquei instalado num quarto em que já dormiam diversas pessoas. Deitei-me numa cama de campanha, pois era o único lugar disponível.
De manhã, levaram-me a uma consulta médica e fizeram-me análises clínicas, após o que recebi senhas para refeições. Quase tudo era novo e quase tudo feito pela primeira vez. Num refeitório estudantil começou a minha prova gastronómica da Rússia. Papas que nunca tinha visto na vida, tomates com natas, pepinos com a mesma coisa, kefir, uma bebida gelatinosa (kissel), chá, pão preto, etc. Fui para o pão branco, ovos e salsichas cozidos, e um copo de uma bebida que fazia tenuemente lembrar café. Ao almoço, um choque semelhante, mas mais intenso: sopa com natas, carne com molho também feito à base de natas. Resumindo, repeti os ovos cozidos e as salsichas.

Milhazes chegou à URSS em 1977, com 19 anos. Não foi desterrado nem obrigado, mas sim porque acreditava no comunismo e os comunistas achavam que era um bom militante.

Talvez por isso não teve tempo de ler este livro que saiu precisamente no ano em que Milhazes chegou à URSS e conta precisamente o género de episódios que Milhazes agora conta, com 40 anos de atraso...





Sabe, caro Milhazes: eu li o livro na altura e não precisava de o ler para saber algumas coisas que lá vêm, contadas por um jornalista do New York Times: anedotas sobre a vida quotidiana na União Soviética. Tão tristes e amargas que só me espanta como pessoas como Milhazes, então com 19 anos não se dessem conta do logro que os esperava e afinal descobriram bem cedo...

Ainda hoje há pessoas como o então Milhazes. Estas, por exemplo...



Não há nada como a fé em alguma coisa para tudo passar a um relativismo impressionante. 

Questuber! Mais um escândalo!