José Milhazes, um dos desiludidos do comunismo, decidiu contar as suas aventuras na pátria do dito e publicou agora um livro sobre os russos, com factos que aparecem com um atraso de várias décadas.
O Observador conta, citando passagens do livro:
“Aterrámos no Aeroporto Sheremetiev de Moscovo às 20 horas e 40
minutos (17 e 40 em Portugal continental) do dia 10 de Setembro de 1977.
A primeira grande surpresa foi o controlo de passaportes e bagagens à
porta do «Paraíso». Depois de um olhar demorado e severo (sorrisos era
coisa que não existia nos rostos da guarda fronteiriça) para a nossa
cara e documentos, carimbavam o passaporte, sendo a fase seguinte a
revista das bagagens, ainda mais longa e meticulosa. Uma das estudantes
portuguesas que viajavam comigo teve de abrir as malas. Fiquei tão
espantado com o conteúdo – lençóis bordados, camisas de noite, pensos
higiénicos, camisolas, camisas, vários pares de sapatos, etc., etc. –,
que comentei se aquilo não se tratava de um enxoval para o casamento. Só
mais tarde vim a saber que ela era sobrinha de uma dirigente da
Associação Portugal-URSS que ia bem prevenida.
Encontrei
imediatamente razões para justificar vigilância tão apertada e enxoval
tão rico. A primeira era a defesa contra as artimanhas do imperialismo
norte-americano e da CIA e, a segunda, a proteção contra tiques
pequeno-burgueses.
À nossa espera estava Luís Vieira, estudante
madeirense que tinha chegado à URSS no ano anterior e já falava
fluentemente russo. Depois de algumas horas de espera no aeroporto,
fomos levados num velho autocarro para o Hotel Universitet, onde fiquei
instalado num quarto em que já dormiam diversas pessoas. Deitei-me numa
cama de campanha, pois era o único lugar disponível.
De manhã,
levaram-me a uma consulta médica e fizeram-me análises clínicas, após o
que recebi senhas para refeições. Quase tudo era novo e quase tudo feito
pela primeira vez. Num refeitório estudantil começou a minha prova
gastronómica da Rússia. Papas que nunca tinha visto na vida, tomates com
natas, pepinos com a mesma coisa, kefir, uma bebida gelatinosa (kissel),
chá, pão preto, etc. Fui para o pão branco, ovos e salsichas cozidos, e
um copo de uma bebida que fazia tenuemente lembrar café. Ao almoço, um
choque semelhante, mas mais intenso: sopa com natas, carne com molho
também feito à base de natas. Resumindo, repeti os ovos cozidos e as
salsichas.
Milhazes chegou à URSS em 1977, com 19 anos. Não foi desterrado nem obrigado, mas sim porque acreditava no comunismo e os comunistas achavam que era um bom militante.
Talvez por isso não teve tempo de ler este livro que saiu precisamente no ano em que Milhazes chegou à URSS e conta precisamente o género de episódios que Milhazes agora conta, com 40 anos de atraso...
Sabe, caro Milhazes: eu li o livro na altura e não precisava de o ler para saber algumas coisas que lá vêm, contadas por um jornalista do New York Times: anedotas sobre a vida quotidiana na União Soviética. Tão tristes e amargas que só me espanta como pessoas como Milhazes, então com 19 anos não se dessem conta do logro que os esperava e afinal descobriram bem cedo...
Ainda hoje há pessoas como o então Milhazes. Estas, por exemplo...
Não há nada como a fé em alguma coisa para tudo passar a um relativismo impressionante.