Ainda a propósito do livro sobre "o Pide que morreu duas vezes" há duas histórias que denotam bem a suprema estupidez da Censura no regime anterior e que porventura suscitava reacções de índole reviralhista em quem sofria os respectivos efeitos directos.
Na primeira o autor conta o episódio ocorrido em 15 de Novembro de 1965 com uma capa do Diário Popular. O paginador ocasional do jornal, Jacinto Baptista, encadeou uma pequena notícia sobre Salazar e uma recepção a um embaixador com outra ilustrada de um cabeludo em pose de "ié-ié", moda musical em vias de aparecimento no panorama nacional, importada do estrangeiro anglo-saxónico dos Beatles e Rolling Stones mais os Kinks e outros Byrds.
Tanto bastou para que toda a administração do jornal tivesse que dar explicações detalhadas sobre o assunto que diminuía objectivamente a respeitabilidade do presidente do Conselho, ao associá-lo a uma moda de "chinfrim", sabendo que havia instruções precisas para que os jornais não cometessem tal delito de imprensa.
O segundo episódio narrado ainda é mais caricato: um pequeno anúncio de algumas linhas, no interior do jornal, suscita reparos à Censura devido a um putativo despropósito com o nome do presidente do Conselho que não devia ser beliscado em tom de achincalhamento.
Isto que agora parece ridículo, na época tinha um contexto que é preciso referir e não omitir para desvirtuar a interpretação: não era permitido diminuir o prestígio das instituições de forma aleivosa ou cretina e a Censura velava por isso, principalmente no que ao representante máximo do Governo, Salazar, dizia respeito.
Os dois exemplos mostrados mostram isso mesmo: o modo iconoclasta, de achincalhamento implícito, no tratamento de ambas as notícias é evidente e os autores sabiam tal conduta proibida, mas arriscavam a rebeldia armando-se em espertos. A forma como a Censura actuava remete para o policiamento da chico-espertice que ambas as notícias representam e o modo estúpido no respectivo controlo acaba por dar razão aos que faziam o mal e depois a caramunha- e ainda continuam a fazer.
Em vez de assumirem a frontalidade da oposição sofrendo eventuais consequências, estes pequenos tartufos preferiam jogar ao gato e ao rato, armando sempre pequenas chico-espertices para amesquinhar quem politicamente não apreciavam. E ainda se gabam disso, passados estes anos todos.
Por outro lado o Regime de algum modo contemporizava com estas pequenas canalhices porque as consequências eram suportáveis- e por isso os mesmos as repetiam sempre que podiam. O que é que o próprio Salazar pensaria disto? Contemporizava também com a estupidez Censória, o que não deixa de ser uma tristeza.
Hoje em dia, por exemplo no Expresso alguém se atreve a estas pequenas canalhices? Atreve, mas só há um exemplo para contar: um jornalista do semanário que agora é presidente da República uma vez chamou "lélé da cuca" ao patrão que é o tal que aparece nestas histórias, o Francisquinho. Parece que este não gostou mas não se sabe o que fez para se vingar. Como não havia censura ficou tudo no ambiente reinadio das redacções...
Tenho pena é que o autor do livro aparentemente nem se tenha dado conta destas coisas e tenha escrito a obrinha, aliás muito bem escrita, para colocar na lapela a badana do antifassismo primitivo e assim assegure um lugar no gotha do politicamente correcto na actual corte de Lisboa .
A propósito da iconoclastia, de liberdade de expressão conjugada com o "respeitinho" a figuras institucionais e da censura, um dos melhores exemplos ocorreu quase na mesma altura em França.
Aí supostamente havia democracia, com liberdade para o partido Comunista propagandear livremente as ideias que peregrinavam desde quase o início do século XX e o herói da Resistência ao nazi-fascismo, De Gaulle, era o chefe dos franceses.
Pois bem. Quando morreu, em 9 de Novembro de 1970, um semanário satírico, L´Hebdo Hara-Kiri ( "mau e estúpido") fez assim uma capa, tendo ao lado a que se lhe seguiu...:
O Hara-Kiri foi censurado, proibindo-se a publicação, o que originou o aparecimento do semanário Charlie Hebdo, alvo de atentados terroristas mais de 40 anos depois.
A Censura operou através de uma lei...
La plus scélérate est sans doute la Loi de 1949 pour la protection de la jeunesse, conçue sous Vichy, et qui permit à Raymond Marcellin d’interdire, le 15 novembre 1970, L’Hebdo Hara Kiri, qui avait salué la mort du général De Gaulle par un titre aujourd’hui un peu cryptique : « Bal tragique à Colombey – 1 mort ». Il fut retiré de la vente pour… pornographie ! Hara Kiri répliqua en lançant un nouvel hebdomadaire en supplément de son autre mensuel, Charlie, éditrice des Peanuts, dont le titre devint… Charlie Hebdo
- celui-là même que l’on défend dans les prétoires aujourd’hui !
Devant le tollé des médias, choqués par cette interdiction, le ministre
de l’Intérieur, Raymond Marcellin, intervint au journal de 13 heures
pour annoncer que « ... l’objectif [de l’interdiction] a été dépassé » et qu’il n’avait pas l’intention d’interdire Charlie Hebdo dont le N°1 titrait alors ironiquement : « Il n’y a pas de censure en France »
Portanto, censuras há muitas.