sexta-feira, agosto 04, 2017

A Visão dos hippies na mistela habitual



 A revista Visão destaca na capa desta semana um artigo sobre “O Verão do Amor que mudou as nossas vidas”. 
Será caso para perguntar desde logo a que vidas se refere a autora ( Rosa Ruela) e se a palhaçada hippie que se exprimiu com maior intensidade na cidade americana de São Francisco, no Verão de 1967 foi de algum modo catalisador de alguma mudança importante na sociedade, americana e não só, apenas por isso.   
O artigo começa por enunciar o cronograma do fenómeno como se a autora o tivesse vivido e soubesse de cor o que aconteceu. Nem uma referência a fontes, nem um sinal da sua razão de ciência que pode muito bem jazer num qualquer artigo de internet. Citam-se profusamente declarações vindas de algures de contemporâneos dos acontecimentos, como se a autora os tivesse ouvido ela própria, para a reportagem. Dá-se conta de música da época que se duvida que a mesma a tenha ouvido como deve ser. Enfim, um artigo escrito de cor e naturalmente copiado nas suas fontes de informação não reveladas mas facilmente detectáveis: escritos alheios.  Uma vergonha, como é habitual.
Há muitos anos que o historial do “movimento hippie” foi apresentado ao público leitor, muito antes do aparecimento da internet e até em Portugal se traduziu, em 1973,  uma boa história do fenómeno, no livro O Mundo da música pop, do escritor e publicista alemão Rolf-Ulrich Kaiser, escrito originalmente em Dusseldórfia, em 1969 ( esta informação fui buscar à Wiki…)
A cereja no topo deste bolo fora de prazo assenta porém num outro assunto relacionado: “os hippies portugueses”. Apanharam-se dois protagonistas contemporâneos que assentaram arraiais em Londres, no verão de 1967 e em Luanda, em ano incerto. Ambos testemunham  os efeitos do fenómeno hippie tipicamente americano da segunda metade dos anos sessenta. O primeiro por ter ouvido falar em Londres, no mantra “peace and love”; o segundo por ter ouvido vagamente de uns americanos aterrados em Luanda, novas sobre as flores de São Francisco. Em 1971, este mesmo “colono” veio   à Metrópole e “apercebeu-se de que o movimento hippie já se fazia sentir, embora tímido”. Enfim, quatro anos depois da sua eclosão será caso para pensar que a Metrópole ( que não a colónia) era mesmo um atraso de vida…
O pequeno apontamento mistura depois tudo o que veio a seguir, amalgamando o  “hippismo”  com a corrida às lojas Porfírios, apresentadas como símbolo destes hippies de imitação que se manifestam, no entender da autora no festival de Vilar de Mouros, em Agosto de 1971.

Tudo isto tem importância diminuta ou até mesmo tributária da palermice estival, mas ainda assim uma capa destas com o destaque nos quiosques deveria ferir a inteligência média do leitor nacional. E daí o comentário a seguir.
Quem quiser escrever bem sobre estes fenómenos com 50 anos em cima, ou deve saber do que fala por os ter vivido ou então, após ter lido vários livros, artigos e reflectido no que dizer. Por outro lado, como tudo isto recende a cultura anglo-saxónica que importámos a quilo de papel e vinilo, na época,  o melhor será ler a imprensa indígena, mesmo agora em época de efeméride.
De resto, em 50 anos pouco ou nada se modificou em Portugal relativamente ao modo como se faz este jornalismo: copiar pura e simplesmente o que se escreve lá fora, misturando uns depoimentos avulsos de indígenas para disfarçar o plágio. Era o que sucedia em 1967 e é o que sucede hoje em dia, agravado pela praga de artigos copiados via internet.

A britânica Uncut publicou um número especial sobre o assunto em Junho passado e os temas musicais que elencou, na sua esmagadora maioria não eram conhecidos em Portugal na época, nem sequer nos anos vindouros.




Estes artigos do género que a Visão publica são por isso um pastiche mal feito de ideias alheias e factos recolhidos algures, sem fonte conhecida. Um exercício lastimável porque se nota o efeito da nostalgia inventada e da memória falsificada porque inexistente. 





Em Portugal, no ano de 1967, a imprensa de maior circulação dava importância aos fenómenos culturais do estrangeiro ocidental e por isso os "hippies" ( termo cunhado pelo jornalismo, segundo aquele autor alemão) eram notícia que a Censura não cortava. 

Em  7 de Outubro de 1967 a revista Século Ilustrado publicou um desenho tirado do jornal inglês New Musical Express que mostrava a iconografia hippie no mundo da música pop, à volta do artista do momento, com um êxito que por cá também deu que falar e ouvir: "San Francisco ( be sure to wear flowers in your hair") . E merecido porque a melodia é intemporal.


Porém, em Portugal, nesse ano de 1967, o principal programa de rádio onde seria possível ouvir músicas dos "hippies" ou seja, enraizadas num pretenso psicadelismo inspirador, era o Em Órbita que passava música pop/rock desde 1965 e acompanhava todas as novidades vindas de Londres e outras paragens.
Como já aqui se escreveu,  o Em Órbita ligou muito pouco ao movimento hippie e música relacionada.

O  melhor disco do ano de 1967 foi naturalmente o dos Beatles, Sgt Peppers, com alguns temas "psicadélicos" mas nem por isso escolhido como tal, porque os concorrentes imediatos vinham da terra dos hippies mas a música era outra, mesmo recendendo psicadelismo avulso: o disco de Simon & Garfunkel, Parsley Sage Rosemary and Thyme, seguidos dos discos de Peter Paul and Mary, Jefferson Airplane ou dos Byrds, com Younger than Yesterday.
Nos singles, discos pequenos que eram o alimento mais comum dos famintos de música popular, a que ficou em primeiro lugar, para os votantes do programa e com 217 pontos, foi Hazy Shade of Winter dos  Simon & Garfunkel, seguida de Penny Lane com 213 pontos e Nights in white satin dos Moody Blues, com 208.   Os Procol Harum, com o sucesso desse ano, Whiter shade of pale ficaram num pálido e recuado 15º lugar, recolhendo uns meros 111 pontos.
A piorzinha desse ano, para o Em Órbita, seria a canção vencedora do festival da Eurovisão, Puppet on a string, cantada descalça por Sandie Shaw. Critérios do snobismo da época...que se nota demasiado nas escolhas idiossincráticas que deixaram de lado o fenómeno do Verão hippie, o summer of love, sintetizado na canção de Scott MacKenzie, San Francisco, saída em Maio desse ano ou os discos dos Pink Floyd ( The piper at the gates of dawn) ou dos Beach Boys ( Smiley Smile) ou mesmo dos Love ( Forever changes).

Portanto, em 1967, em Portugal, no meio dos connoisseurs o fenómeno hippie foi um epifenómeno, apenas. E não admira, com estes engravatadinhos jovens a orientarem o programa que foi seguramente um dos melhores de sempre, senão o melhor,  do rádio, em Portugal.


Porém, em 9 de Março de 1968, surgiu em Lisboa uma manifestação do fenómeno de imitação dos hippies, em época de Carnaval. o que denota que o assunto não era estranho aos portugueses urbanos da escola de artes António Arroio, ouvintes certamente o Em Órbita:


Portanto, o fenómeno até nem chegou demasiado tarde a Portugal. O que nunca chegou, aliás, foi o "pathos" necessário e suficiente a tal eclosão socialmente visível, mesmo macaqueada.
Em Agosto de 1968 a mesma revista publicava uma série de artigos sobre a música pop em Inglaterra e falava da "invasão hippie" através da influência musical do "San Francisco sound".


Passados três anos do San Francisco de Scott McKenzie, a melhor expressão dessa época, a revista que lhe consagrou a capa na edição de 17.10.1970, dava conta já de outros fenómenos na música popular, particularmente os festivais como o da ilha de Wight, em 1970,  o mítico festival começado em 1968 e que naquele ano congregou bandas e  músicos como os The Who, The Doors, Chicago, Ten Years After, Moody Blues ( que eram os preferidos dos engravatadinhos do Em Órbita), Jethro Tull ( considerados como "espantosos"), Jimi Hendrix, para além de dois brasileiros exilados em Londres: Caetano Veloso e Gilberto Gil. 
A revista ( reportagem de José Carlos Oliveira)  nem menciona os grupos The Who cuja actuação mereceu um filme, nem os ELP e outros o que denota bem a relativa importância que se dava essa música na altura. 


Assim, a menção ao festival de Vilar de Mouros em 1971 como sendo uma manifestação serôdia dos hippies é manifestamente exagerada. 

Vilar de Mouros não é produto dos hippies mas da cultura pop de que aqueles fizeram parte efémera num Verão, em 1967. Nada mais.

Século Ilustrado de 14 de Agosto de 1971, reportagem sobre o festival de Vilar de Mouros. 


Os fenómenos sociais que surgiram entre a juventude portuguesa dos anos setenta em diante, vindos naturalmente de trás, incluindo Vilar de Mouros ou os Porfírios fazem parte de um movimento mais vasto e mais extensivo do que os pobre hippies de S. Francisco que carregam com a culpa de tudo, na visão distorcida da revista Visão. 
Esta maneira de apresentar fenómenos sociais reduzindo-os a expressões minimalistas tem assento também na apreciação do regime da época e se a autora do artigo, desta vez, conseguiu fugir ao síndroma do fassismo ( apesar da referência fugidia e inevitável à "guerra colonial" ) como pedra de toque explicativa de todo o nosso atraso, por outro lado não apresenta o panorama estereoscópico necessário a uma boa compreensão do que foi a realidade portuguesa em 1967 e nos anos a seguir. 
Mau jornalismo, por isso.

Quanto à "droga, loucura e morte" que se apresenta como resquício dos " hippies em Portugal" é  igualmente inexacto. O assunto foi apresentado já nos anos setenta, e até a capa do Século Ilustrado de 4.3.1972 lhe fazia referência.


Questuber! Mais um escândalo!