O intelectual A. Araújo na entrevista abaixo publicada teceu algumas considerações genéricas e particulares sobre aspectos da nossa vida contemporânea. Uma opinião, mesmo fundamentada ( o que não é o caso de Araújo) é sempre uma opinião, revestida do subjectivismo próprio e por isso relativamente insindicável no âmago do entendimento.
Porém, há afirmações de Araújo que suscitam reparos por denotarem entendimentos peregrinos cuja origem é desconhecida.
Quando afirma que o disco de Rui Veloso, Ar de Rock, tem a grande novidade de ser cantado em português, exemplificando assim o paroquialismo, não percebo o paralelismo.
O disco de Rui Veloso é um dos que se seguiram a outros publicados nos anos sessenta, pela Filarmónica Fraude ou pelos "conjuntos" que vieram depois, como a Banda do Casaco ou ainda o autor Júlio Pereira ou mesmo José Afonso em certos temas ou Fausto ou Sérgio Godinho, todos cantantes na língua materna e que nada tinham de paroquial ou provinciano. Paroquial e provinciano, no bom sentido, era um Artur Garcia ou um António Mourão que depois deram em Marcos Paulos e outros Antónios Calvários. E o celebrado poeta-barbeiro de Braga, Variações, copiador de estilo Sparks e glitter variado não deixava por isso de o ser também.
Ar de Rock só é novidade por misturar géneros musicais estrangeiros, como o blues ou o rock n´roll, já abastardado, com palavras ditas em português. Antes disso, o português já tinha sido muito usado no Brasil, por compositores como Rita Lee ou Raul Seixas, no mesmo estilo de adaptação sonora de géneros anglo-saxónicos. E esses brasileiros não eram paroquiais.
Quando o Salvador Sobral canta em português no festival da Eurovisão segue a tradição de décadas porque normalmente os países cantam nesses festivais na sua língua materna. A novidade de Salvador Sobral não reside nisso mas na habilidade e arte em cantar as palavras e conjugar uma melodia notável numa pequena cançoneta muito bem feita. Tudo menos paroquialismo porque a música é universal.
Torna-se por isso pedante citar um tal Sudhir Hazareesing para comprovar um ponto inútil e esta mania das citações é típica destes intelectuais enlivrados em leituras avulsas.
Depois toma por assente a afirmação do entrevistador de que no tempo de Salazar nunca houve a preocupação com a elevação da cultura nacional". Elevação da cultura nacional?! Mas o que é isso, exactamente? Elevação para onde e a partir de quê?
Araújo não explica e cita Eduardo Lourenço ( et pour cause) que teria dito ( se o disse não foi o primeiro nem foi original, porque já Augusto Abelaira o tinha dito na Vida Mundial) que depois de 25 de Abril a produção intelectual e literária estiolou quando havia liberdade para se desabrochar nos entusiasmos proclamados por um Ary dos Santos e outros pândegos.
A verdade, verdadinha é que os autores que Abril abriu eram medíocres, simplesmente. Mas havia alguns que o não eram, por exemplo um Alexandre O´Neill ou um Cardoso Pires que já vinham de antes e eram de esquerda liberal. Depois disso, nicles e a culpa não era do Salazar, mas eventualmente da nossa pobreza intelectual de que A. Araújo é agora um exemplo bem concreto.
Ao dizer que se "produzem muitos livros sobre Salazar, a sua governanta e as criadas, coisas mais de voyeurismo em vez de análises sérias ao regime" está precisamente a situar-se nesse limbo de patetice porque não compreende que a análise de um regime faz-se também pela análise concreta e o entendimento concreto dos actos, pensamentos, palavras e omissões dos seus protagonistas directos. O que era a Dona Maria, enquanto governanta de Salazar, na casa que este ocupava, de função e repartida entre andares que serviam a função pública e outros que estavam reservados à vida privada? Araújo compreende? Saber que Dona Maria criava galinhas no quintal não é apenas uma anedota ou se se entender como tal, a atitude será semelhante à do tolo que olha o dedo que aponta a lua...
O que diriam A. Araújo e outros intelectuais semelhantes desta pequena foto de um pequeno quarto de dormir e do que ela representa?
A foto foi publicada no O Diabo de ontem, num artigo sobre "os veraneios de Salazar no Forte de Santo António", de Fernando de Castro Brandão e é de um livro do jornalista Miguel Pinheiro.
Como é que A. Araújo interpretaria o que tem esta foto e o contexto da mesma, na época dos anos sessenta? Nesta cama dormiu Salazar que ficou neste quarto com um crucifixo a encimar, uma pequena mesa de cabeceira e eventualmente um "bacio" que não se mostra mas que era usual...
Outra foto a merecer comentário destes intelectuais é esta, do cemitério do Vimieiro, na actualidade. Bastaria que se pronunciassem sobre o estilo das campas, como foram feitas e qual o significado...comparando-as com o magnífico exemplar, ao fundo, da arte contemporânea nos cemitérios. Ou mesmo da lápide encostada à parede, junto à campa de Salazar, já agora.
Gostava de ler uma análise intelectual deste cenário, mas não terei sorte porque afinal seria um exercício de puro voyeurismo. Felizes aqueles que sabem ver...nos sinais que sendo visíveis estão ocultos a muitos.
Um sinal desse oculto que não se percepciona é a afirmação já recorrente de A. Araújo no sentido de o regime de Salazar ser intrinsecamente corrupto no tráfico de influências como agora se diz, nas "cunhas, compadrios e colocação em cargos" . Por muito que estudem sinais aparentes só conseguem ver a superfície da realidade que lhes é mostrada e não descobrem mais porque nem sequer procuram.
Por muito que leiam histórias reais sobre empreendimentos, obras públicas, realizações do tempo de Salazar, conseguem sempre enquadrar tais feitos, num período relativamente curto de 40 anos, num ambiente de corrupção por causa das "cunhas, compadrios e influencias na colocação em cargos".
Estas pessoas que assim pensam são as mesmas que depois desvalorizam a corrupção autêntica em que se vive, no regime democrático e recusam analisar e comparar tais fenómenos com o que era antes.
Bastaria ler pequenos apontamentos sobre o que foi a vida pública de Salazar, compilados por alguns dos seus próximos como Franco Nogueira e outros.
Em jeito de anedota e porque Vasco Pulido Valente anda ausente de lides de escrita no Observador, gostaria de ler um comentário seu à palermice de o citar como usando a palavra "indígenas" com o sentido que Araújo lhe atribui...
Por outro lado ao dizer que há "dezenas de livros sobre a PIDE, a censura e as torturas" não me parece que o exagero possa justificar-se na hipérbole de estilo. Conheço muito poucos livros sobre a PIDE e duvido que passam a dezena.
Estes dois foram publicados logo nos meses a seguir ao 25 de Abril de 1974 e são catarses dos protagonistas que estiveram intramuros a expiar crimes de subversão ao regime, ou seja comunistas que fariam aos então fassistas, se tivessem o poder o mesmo que fizeram nos gulags e das prisões da STASI. Alguém duvida desta moralidade dúplice? Então o melhor é falar nisso, também, para se entender a objectividade dessa gente.
De resto, Araújo repete outra vez a citação de Milton Nascimento sobre "todo o artista tem de ir aonde o povo está" e fica-lhe mal. Porque o que diz sobre Salazar e o seu tempo não inclui o povo que esteve lá, nessa época que Araújo resolutamente não compreende e por isso nem pergunta, apenas afirma.
Sobre a "nova Direita" que segundo a tese peregrina de Araújo surgiu nas páginas do Independente de Miguel Esteves Cardoso, bastaria dizer que MEC não é de direita alguma e nunca o foi. MEC é um indivíduo que se formou numa cultura urbana e sem raízes de fundo. Com mãe inglesa e pai embarcado formou-se, como suspeito que Araújo se formou, a ler coisas e loisas. Enfim, dá no que dá, esta formação. Saberá o que é um caniço? Ou o que é mondar? E chegou a cheirar alguma vez a bosta das vacas nos currais de antanho que ficavam por baixo dos quartos de dormir dos donos? Conhecer o imaginário rural de antanho é essencial para se entender o povo português que não se reduz aos habitantes das cidades. Conhecer os hábitos e costumes de sempre e de séculos que se desvaneceram em décadas também. Sem isso, chapéu! Podem saber muito bem o percurso do 28 ou do 15 mas não conhecem os trilhos da memória desta pátria.
Finalmente, embora a entrevista tenha muito mais que se lhe diga: a revista Olá, do jornal Semanário, surgido no início dos anos oitenta ( 1983) é apresentado por Araújo, em obra anterior e agora como o sinal do "renascimento da direita", por mostrar o ambiente social do país que "era impensável no imediato do 25 de Abril, quando as elites tinham fugido para Espanha". A Olá do Semanário era uma revista que "mimetizava a Hola espanhola".
Em primeiro lugar a Hola espanhola não era representante ou sinal da "direita". Não era então e não o é hoje em dia. Era sim, representante de um estilo de vida de festas e de burguesia decandente e não só, num ambiente fustigado pelo turismo de várias costas del sol. Como a Espanha ainda é uma monarquia torna-se de algum modo compreensível que apareçam condes e viscondes de lá quando por cá tínhamos a da Asseca e pouco mais. Ou seja, Portugal nunca teve matéria-prima para Holas, nem antes nem depois de 25 de Abril, apesar da dinastia de Bragança ter feito um casamento e arromba, subsidiado de vários modos na época áurea da Olá.
Porém, afirmar como Araújo o faz que em Portugal era impensável no imediato 25 de Abril ter uma revista de feição socialite é manifestamente exagerado e esquece um fenómeno que apareceu ainda antes de 25 de Abril e continuou por muitos e bons anos: a Gente da editora Sepura, na praça de Alvalade em Lisboa.
Reduzir a a imprensa "social" à Olá e acantoná-la ao seu aparecimento nos anos oitenta é sinal de pouco estudo da contemporaneidade portuguesa. Um sinal preocupante para quem se doutorou na matéria...
Esta Gente deu origem, em 1976 à Nova Gente do empresário do social Jacques Rodrigues, fundador de outras publicações pindéricas e destinadas à populaça.
Esta Gente que aqui se mostra é de 8 de Outubro de 1974 e já ia no 48 número semanal. Ou seja, muito antes de 25 de Abril de 1974 e basta dar uma rápida olhadela aos sítios de venda de coisas usadas para ver fotos de números anteriores que atestam a qualidade pró-Hola da mesma revista que continuou muito depois do 25 de Abril de 1974, até aos dias de hoje em que se multiplicam tais títulos.
A Gente de Outubro de 1974 acompanhava o ar do tempo e dos nos personagens aparecidos na ribalta política e mediática.
Começaram a aparecer os Barrosos do clã Soares a que seguiram depois os de outros clãs da nova nomenklatura, os empresários de sucesso no futebol regional, os artistas que estiveram sempre, sempre ao lado do povo a cantar 25 de Abril, sempre, fascismo nunca mais! e outros que tais que não vestiam apenas chita. Do mundo exterior sempre chegaram novidades da socialite, mas com uma explicação necessária: só a partir de meados dos anos setenta se começou a dar importância mediática e alargada às notícias sobre "celebridades".
Quando vejo e leio estas coisas tenho pena do A. Araújo e modero a minha irritação inicial.